As relações entre Ucrânia e Polônia andam atribuladas nas últimas semanas. A Polônia integra tanto a União Europeia, a UE, quanto a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a OTAN, e tem sido aliada ucraniana desde a invasão russa, em fevereiro de 2022. Por uma série de razões, entretanto, os dois países estão em dissonância. Uma dessas razões é quase incontornável, a História.
Até o início do presente mês, somando ajuda militar, financeira e humanitária, a Polônia contribuiu com valores de cerca de quatro bilhões e meio de dólares aos ucranianos. Em números brutos, a Polônia é o sexto país que mais contribuiu com o esforço de guerra ucraniano. Em proporção ao PIB, a Polônia torna-se o quarto colocado, atrás apenas dos pequenos países bálticos, Estônia, Letônia e Lituânia.
A Polônia também é o principal ponto de contato entre a Ucrânia e o chamado Ocidente. Pela fronteira entre os dois países, pessoas buscaram refúgio e transitam materiais bélicos e produtos ucranianos, que entram no mercado europeu. Também é pela Polônia que viajam as autoridades internacionais que visitam a Ucrânia: normalmente chegam de avião ao território polonês e viajam de trem até a capital ucraniana.
Ou seja, é perfeitamente possível dizer que a Polônia é um aliado de primeira hora para a Ucrânia. Essa relação, entretanto, está se desgastando. Um dos desgastes é na frente econômica e não envolve apenas os poloneses. Diversos países do leste europeu e integrantes da UE começam a sofrer com a fadiga da guerra que se arrasta por um ano e meio, rumo ao seu décimo oitavo mês.
Agricultura
Um dos aspectos dessa fadiga envolve os agricultores e a produção agrícola desses países. A Ucrânia é uma potência agrícola. Um vasto território, o maior país localizado exclusivamente na Europa, com terras férteis e acesso à fertilizantes e outros insumos de produção. Com a guerra e o bloqueio do mar Negro, especialmente nos momentos em que não vigorou o acordo de cereais com a Rússia, essa produção é escoada via Europa.
No início, os países aceitaram isso de bom grado. Com o tempo, entretanto, o descontentamento interno cresceu. Os produtos ucranianos chegam com preços mais competitivos, tanto pela capacidade agrícola ucraniana quanto pelo fato de não precisarem seguir os padrões sanitários e de qualidade da UE. Além do preço, a quantidade de produtos praticamente inunda os mercados do leste europeu.
Em abril, o então ministro da Agricultura polonês, Henryk Kowalczyk, renunciou ao cargo devido aos protestos de agricultores poloneses e ao fato de que a Comissão Europeia estendeu as isenções de impostos dos grãos ucranianos até junho de 2024. O pedido havia sido feito por Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária e Eslováquia. No início de setembro, Polônia, Eslováquia e Hungria decidiram agir de maneira unilateral.
Os três países baniram as importações para os mercados domésticos. Produtos ucranianos poderão entrar nesses países apenas se estiverem em trânsito para outros destinos. O governo ucraniano, então, ameaçou tomar medidas retaliatórias e processar os três países em cortes europeias. Essas disputas dos últimos meses foram acompanhadas de declarações que só aumentaram a tensão.
“Ingratidão”
Um assessor do premiê polonês, Mateusz Morawiecki, afirmou que a Ucrânia estava sendo “ingrata” com toda a ajuda que recebeu. No dia 20 de setembro, o próprio Morawiecki afirmou que seu país não enviaria mais armamentos para a Ucrânia, “pois agora estamos a equipar a Polônia com armas mais modernas”; ou seja, não haveria mais material antigo soviético para enviar.
A declaração pegou mal e o presidente polonês, Andrzej Duda, tentou colocar panos quentes. Não adiantou muito. Em seu discurso na ONU, o presidente ucraniano na ONU, Volodymyr Zelensky, criticou os países do leste europeu pela disputa de cereais, afirmando que isso só ajudava a Rússia. Embora não tenha citado nomes, estava bem claro para quem era o recado.
Em um comício, Morawiecki afirmou que “quero dizer ao Presidente Zelensky para nunca mais insultar os poloneses, como fez recentemente durante o seu discurso na ONU”. Obviamente pegou mal afirmar que os poloneses estão “cooperando” com a Rússia, já que, além da ajuda bilionária citada, o que aproxima ucranianos e poloneses é justamente o antagonismo de ambos com a Rússia, potência que dominou ambas as nações.
“Para uma Polônia livre, é necessário uma Ucrânia livre, e vice-versa” é a versão atual de um antigo slogan nacionalista polonês do século XIX. Esse slogan pode ser visto de maneira extra-oficial durante o campeonato europeu de futebol de 2012, quando os dois países sediaram de forma conjunta a competição, quatro sedes em cada país, com o jogo de abertura em Varsóvia e a final em Kyiv, ou Kiev.
Na origem, o slogan implicava que poloneses e ucranianos ambos precisavam se unir contra a Rússia czarista. A Rússia foi uma das potências que participaram das partições da Polônia, além de diversos conflitos entre diferentes encarnações de ambos os Estados. Uma das principais foi a guerra dos Treze Anos, iniciada em 1654, que terminou com vitória russa e a ocupação de Kyiv.
O leitor pode ter achado estranho, mas, do século XIV ao século XVII, a capital ucraniana e todo o território ocidental da atual república era parte da Comunidade das Duas Nações, ou Comunidade Polonesa-Lituana, um república aristocrática de confederação entre o Reino da Polônia e o Grão-Ducado da Lituânia. Para muitos nacionalistas poloneses e ucranianos, as “terras pátrias” de seus países incluem territórios do outro.
Segunda Guerra Mundial
Salvo o antagonismo mútuo com a Rússia, ucranianos e poloneses também são antagonistas históricos entre si. São séculos de desconfianças, massacres, invasões e ocupações, nada que seja solucionado da noite para o dia. Inclusive pelo fato de que é justo no ocidente da Ucrânia, a região historicamente chamada de Rutênia, que nasce muito do atual nacionalismo ucraniano.
O motivo dessa retrospectiva histórica se dá na última sexta-feira, dia 22 de setembro. Zelensky foi convidado para discursar no parlamento canadense. Na cerimônia, ele citou o “histórico de luta pela libertação” de seu país da Rússia e da União Soviética, já que o nacionalismo, habitualmente, anda de mãos dadas com o anticomunismo. E Anthony Rota, presidente do Parlamento do Canadá, pediu uma salva de palmas para um idoso ali presente.
O idoso é um ucraniano que se chama Yaroslav Hunka e mora no Canadá desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Ele foi voluntário da 14ª Divisão das Waffen-SS, a ala de combate da Schutzstaffel, as SS, a principal organização paramilitar e ideológica do Partido Nazista alemão. A divisão é, comprovadamente, uma das mais criminosas e bárbaras das já criminosas Waffen-SS.
Seus alvos, além de judeus, povos roma e prisioneiros de guerra soviéticos, eram habitantes poloneses da região da Volínia, uma das regiões divididas por Polônia e Ucrânia, e reivindicada por ambos os nacionalistas. Trata-se de mais de cem mil vítimas, dessa unidade e dos nacionalistas do Exército Insurgente da Ucrânia, liderado por Stepan Bandera, também colaboracionistas dos nazistas.
O nome de guerra da 14ª Divisão das Waffen-SS era Galizien, referência à Galícia, outra região fronteiriça disputada entre poloneses e ucranianos, dentre outros povos na História. Não há relação com a Galícia ibérica, hoje parte da Espanha. O próprio Yaroslav Hunka nasceu na cidade de Urman, que foi do império russo, da Polônia e, hoje, é da Ucrânia. Quando de seu nascimento, a cidade era parte da Polônia.
Assim que o histórico do idoso ovacionado veio à público, diversos políticos canadenses tentaram se desvincular do ato. Outros trouxeram o debate de que nem todo colaboracionista da Segunda Guerra Mundial era simpatizante do nazismo, algo válido e que aconteceu. Não é o caso da 14ª Divisão das Waffen-SS, uma unidade voluntária da mais ideológica organização nazista.
Também não é o caso do Exército Insurgente da Ucrânia, uma organização que era aliada tanto por conveniência quanto por congruência com os nazistas. Bandera, hoje, é um herói nacional ucraniano e a bandeira vermelha e preta de sua organização é utilizada por vários grupos nacionalistas de extrema-direita, como o Pravy Sektor. E aqui é necessário deixar algo muito claro.
Existem neonazistas na Ucrânia e existe a admiração aberta por ícones do colaboracionismo com o nazismo, incluindo criminosos de guerra e responsáveis por atrocidades. Isso não significa que a invasão do país pela Rússia é justificada, tampouco que a intenção de Putin é “desnazificar” o país, como diz sua propaganda. Voltando ao caso no Canadá, uma reação precisa ser destacada, a do embaixador polonês no Canadá.
Eleições
“Lideranças do Canadá e da Ucrânia, no parlamento, aplaudiram um membro da Waffen-SS Galizien, notória formação militar ucraniana da II Guerra Mundial responsável pelo assassinato de milhares de poloneses e judeus. A Polônia é o melhor aliado que a Ucrânia tem e nunca concordará em encobrir tais vilões! Como embaixador polonês no Canadá, espero um pedido de desculpas.”
Essas foram as palavras do embaixador Witold Dzielski em uma rede social. A Polônia não vai deixar de apoiar a Ucrânia, claro, especialmente pelo já citado antagonismo mútuo com a Rússia. O fato é que, provavelmente, vai diminuir esse apoio, o que pode sim ser extremamente danoso aos ucranianos. E existe outro elemento nisso. O leitor notou que a coluna mencionou que o premiê Morawiecki estava em um comício?
A Polônia passará por eleições gerais no próximo dia 15 de outubro e, enquanto o governista conservador Lei e Justiça está em primeiro, corre o risco de perder assentos em comparação com o pleito anterior. Como parte de seu plano para evitar isso, Morawiecki precisa manter as chamas nacionalistas acesas. A Rússia não serve como alvo, já que não existe partido pró-Rússia no país. O alvo acaba sendo a Ucrânia.
Ou seja, o atual e complicado estado das relações entre Polônia e Ucrânia é fruto, também, de disputas econômicas e populismo eleitoral em meio uma guerra de agressão sofrida pelos ucranianos. É, também, consequência de um longo processo histórico marcado pela desconfiança e pela violência entre os dois vizinhos. E disso é muito difícil escapar, muito menos quando se homenageia um integrante de uma unidade criminosa de guerra.
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