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Um rochedo no meio do caminho do Brexit

O Rochedo de Gibraltar visto de La Linea de la Concepcion, perto da cidade espanhola de Cadiz. Foto: Jorge Guerrero / AFP (Foto: )

O imponente Rochedo de Gibraltar marca a separação do Mediterrâneo paro Oceano Atlântico, a antiga Coluna de Hércules que dividia o mundo dos gregos do mundo desconhecido. Por controlar essa importante via marítima, Gibraltar mudou de dono diversas vezes na História. O nome atual é uma corruptela do árabe Jebel Tariq, Monte Tariq, de quando o território era parte do império islâmico. E mesmo hoje, séculos depois, Gibraltar ainda é centro de uma contenda, e tema espinhoso nas conversas do Brexit.

Entre 1501 e 1704, Gibraltar foi posse do reino da Espanha. Após a Guerra de Sucessão Espanhola o território passou para controle britânico, sacramentado do Tratado de Utrecht, que também continha mudanças territoriais na América que influenciaram a formação do que hoje é o Brasil. Desde então, está sob domínio do Reino Unido, apesar de tentativas espanholas de retomada pela força, como durante a Guerra de Independência dos EUA.

Nacionalismo no discurso

Por mais de dois séculos, os espanhóis não podiam sonhar em alguma opção que não fosse aceitar o domínio britânico sobre Gibraltar. Isso mudou apenas com o pós-Segunda Guerra Mundial. O governo fascista espanhol de Francisco Franco adotava uma política de “integridade territorial”, um discurso irredentista que agradava seu público nacionalista. Além do discurso, firmava uma política contra independências e separatismos.

O caso mais célebre e visível é o do País Basco, entretanto, nesse momento, o foco era no processo de independência de Marrocos, que os espanhóis demoraram a aceitar e negociar. Até hoje a Espanha possui enclaves no Norte da África, como Ceuta e Melilla. Também controlava o Saara Ocidental. Curiosamente, todos esses territórios são reivindicados em política de “integridade territorial” similar por parte do Marrocos.

Gibraltar tornou-se um foco interessante dessa política territorial do governo Franco. Gibraltar foi posse espanhola; está geograficamente conectado ao território espanhol; é um território ibérico não governado por uma nação ibérica; no pós-guerra o domínio britânico não era mais do poderio que já havia sido. Finalmente, existiria uma questão de orgulho pessoal de Franco. O ditador alegava que recebeu a promessa britânica de, caso mantivesse a neutralidade na guerra, receberia Gibraltar como compensação. A existência desse suposto acordo nunca foi comprovada.

Desde então, o governo espanhol reivindica a posse de Gibraltar. Por sua vez, o Reino Unido afirma que o território posse ultramarina sua e que conta com autogoverno, ou seja, a soberania do território depende também das autoridades locais. Desde 2006, Gibraltar possui uma constituição própria e alto grau de autonomia, com matérias exteriores, como defesa e fronteiras, sob responsabilidade de Londres. Justamente o que pode ser afetado pelo Brexit.  

Força e economia no interesse

Geopolítica parece algo de um passado remoto para muita gente. Desconsiderá-la foi o pecado capital de muitos setores nos anos 1990, e um erro que ainda persiste em algumas visões. Achar que tudo pode ser resumido à questões ideológicas, choques culturais e salvação de civilizações é, no mínimo, incompleto. O caso de Gibraltar é um bom exemplo dessa importância de questões geopolíticas ainda no século XXI.

Por um gargalo de treze quilômetros de largura passa um terço do comércio naval mundial. O norte da Europa é conectado à Ásia via passagem por Gibraltar, depois pelo Canal de Suez. Um dos pilares da economia do território é justamente o fornecimento de serviços portuários, como reabastecimento de combustível. O fato de ser um porto importante torna o lugar parada para navios de cruzeiro, então, o combo turismo e jogatina legalizada trazem mais uma fatia gorda de divisas para o território. Belezas naturais e locais históricos, como fortalezas medievais, são alguns dos atrativos turísticos.  

Lojas de marcas de luxo compõe um complexo de lojas duty free muito bem frequentado. Nos últimos anos, devido uma legislação permissiva, Gibraltar também tornou-se um centro mundial de empresas online. A população de pouco mais de trinta mil habitantes constitui então uma economia de mais de dois bilhões de libras esterlinas por ano. A renda per capita estaria entre as dez maiores do mundo, no caso de um país independente. De fato, a economia do território é tão dinâmica que ele possui sua própria moeda desde 1934, lastreada na libra esterlina.   

Para proteger essa importantíssima via marítima, a Marinha Real britânica estabeleceu ali uma de suas mais importantes bases navais. É importante frisar que, ao falar da Marinha Real britânica, estamos falando de uma escala muito grande, ainda mais historicamente; em outras palavras, uma base importante para eles é algo realmente significativo. Hoje parte da base foi privatizada e a empresa Gibdock fornece serviços de estaleiro. Ainda assim, submarinos nucleares britânicos contam com Gibraltar em sua logística.

Gibraltar é a chave para a proteção naval por regiões vitais para o comércio mundial. Uma chave, literalmente, está presente na bandeira do território, simbolizando o Rochedo. Hoje, outra “chave” em Gibraltar está no fato de ser um importante ponto na rede de inteligência britânica, a UKSIGINT, com radares e redes de comunicação baseados no território. Isso permite a coleta de informações por boa parte do Norte da África e do tráfego marítimo do Mediterrâneo.

Tentativa de harmonia

Seria razoável se, com tamanha importância e um domínio britânico consolidado, as relações tripartites entre Reino Unido, Espanha e Gibraltar fossem amistosas. Infelizmente, isso está longe da realidade. Apenas em 1980 um acordo preliminar sobre o trânsito na região foi assinado entre Londres e Madri. A fronteira terrestre entre a Espanha e o território foi aberta somente em 1984; a fronteira, no caso, é uma rua, já que há praticamente uma conurbação entre a cidade de Gibraltar e a cidade espanhola de Línea de la Concepción.

Apenas em 2006 ocorreu um acordo sobre o funcionamento do aeroporto internacional, conhecido por sua pista, literalmente, cruzar uma avenida. Em 2009, o primeiro serviço de balsas cruzando a enseada entre Gibraltar e a cidade espanhola de Algeciras foi estabelecido. Até as telecomunicações foram regularizadas apenas no século XXI, já que Franco interrompeu a criação de linhas telefônicas para o território, limitando o número de linhas disponíveis e barrando a criação de um código DDI próprio para Gibraltar.

E, apesar dos pequenos avanços, a retórica continuou quente. Visitas de dignitários canceladas em protesto, limitação aos navios pesqueiros espanhóis, propostas de criação de pedágios para cruzar a fronteira. Tudo isso piorou desde a votação que aprovou o Brexit, ao ponto de políticos espanhóis comentarem uma possível tomada militar do território. A resposta do político conservador britânico e membro da Câmara dos Lordes Michael Howard foi de dizer que May defenderá Gibraltar com a mesma vontade com a qual outra premiê britânica do Partido Conservador defendeu um pequeno grupo de britânicos contra um país falante de castelhano. Referência à Guerra das Malvinas de 1982.

E o povo de Gibraltar, os habitantes? Em 1967, um referendo perguntou aos habitantes se eles desejavam terem autogoverno dentro do império britânico ou tornarem-se cidadãos espanhóis. 99% optou pela primeira opção. Outro referendo, em 2002, perguntou se os habitantes desejavam uma soberania compartilhada com o governo espanhol. Novamente, 99% dos votantes rejeitaram os laços com a Espanha. Já o governo espanhol alega que os referendos não foram transparentes nem contaram com participação espanhola.   

E o Brexit?

O território de Gibraltar vive uma situação conflitante em relação ao Brexit. Primeiro, a população não quis sair da União Europeia. Dos seus eleitores, 83% foram às urnas e 95% deles disseram que desejavam permanecer na UE, uma vitória esmagadora. As consequências práticas para essas pessoas serão, primeiro, a questão do trânsito da fronteira. Embora a fronteira não seja livre, já que o Reino Unido não faz parte do Espaço Schengen, a saída criaria uma “hard border”, uma fronteira rígida, fiscalizada e mais burocrática.

Cerca de dez mil espanhóis cruzam a fronteira, um território neutro, diariamente. No lado espanhol, o desemprego gira na casa dos 30%; em Gibraltar, menos de 1%. Essas pessoas são quase metade da força de trabalho local, e uma ameaça à esse trânsito é um problema duplo. Cria déficit de mão de obra de um lado, e extingue os salários do outro. E a expansão da população de Gibraltar não é exatamente uma opção, em um território já extremamente demograficamente denso.

Segundo, o trânsito aéreo também seria afetado, precisando de acordos próprios e um possível gerenciamento conjunto do aeroporto internacional, já que ele está dentro da zona neutra fronteiriça. E esse meio de transporte é a principal ligação entre Gibraltar e as ilhas britânicas, com vôos diários para Londres e também voos semanais para outros destinos, como Manchester. Finalmente, com uma economia com grande fatia derivada do fornecimento de serviços online, como fica o acesso de Gibraltar ao mercado europeu?

Empresas já anunciaram que irão transferir suas sedes para fora de Londres, ou então criar uma nova sede na Europa continental. Como ficam as empresas sediadas em Gibraltar, que aproveitam o cenário fiscal positivo do território, mas agem dentro do mercado europeu? Financeiras, bancos e companhias de seguros também podem ser afetadas, negativamente, pelo Brexit. Muitas empresas com atividades na Espanha estão instaladas em Gibraltar para se beneficiar da baixa tributação. Todos esses fatores importantes explicam o fato de que, nas diretrizes para as negociações, qualquer acordo entre o Reino Unido e a UE sobre Gibraltar precisa passar pelo crivo espanhol.

Chega-se ao ponto principal, o “pulo do gato”. Sem aprovação espanhola, uma solução negociada para o Brexit fica muito mais difícil do que já imensamente é. O Reino Unido precisa agradar aos espanhóis, que possuem uma pesada arma de negociação ao seu lado. Uma arma que pode ser usada para trazer outros temas às conversas. Como, por exemplo, a soberania do território. Ao menos, uma soberania conjunta, ou maior ingerência espanhola sobre Gibraltar e sua economia.

Por isso as declarações por vezes contraditórias por parte do governo espanhol, uma tática de bate e assopra. Um mês atrás, o premiê afirmou que havia acordo entre Espanha e Reino Unido. Hoje, Marco Aguiriano, ministro espanhol, disse que Londres “apunhalou pelas costas” o governo espanhol, dando um prazo de 48 horas para uma nova decisão em temas relacionados à Gibraltar. Especialmente, a introdução, pelo governo britânico, de uma cláusula que coloca Gibraltar dentro de qualquer acordo comercial futuro entre britânicos e a União Europeia.

Ou seja, diminuiria o poder de barganha espanhol no futuro, que é onde estão os olhos espanhóis. É uma oportunidade única de, pelas negociações forçadas pelo voto da própria população britânica, a Espanha conseguir, progressivamente, aumentar sua influência sobre Gibraltar. De forma otimista, o início de um processo lento e gradual de retomada do território perdido pela força das armas. Já que não foi, nem será, pelas armas que os espanhóis reaverão o Rochedo.

 

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