O novo presidente peruano, Pedro Castillo, tomou posse na última quarta-feira, dia 28 de julho. Depois de quase um mês de verificação das queixas da derrotada Keiko Fujimori, alegando supostas fraudes, o tribunal eleitoral peruano reconheceu a vitória de Castillo. O evento contou com as presenças, dentre outros, dos presidentes da Argentina, do Equador, do Chile, da Colômbia e da Bolívia. Também esteve presente o rei da Espanha, Felipe VI.
Um dos tópicos mais discutidos do discurso de posse foi Castillo ter dito que irá propor ao congresso que seja eleita uma constituinte no país. Ao contrário do processo que ocorre no vizinho Chile, entretanto, a situação peruana é bem diferente.
Primeiro, fica o registro de que, dos países fronteiriços ao Peru, apenas o Brasil não foi representado por sua autoridade máxima. Infelizmente, mais um capítulo da política externa ideologizada de Jair Bolsonaro, que esteve presente apenas em posses de presidentes de direita, como no Equador, no Uruguai e no Paraguai.
No Peru, assim como na posse de Alberto Fernández na Argentina, o Brasil foi representado pelo vice-presidente, Hamilton Mourão. Quando da posse de Luis Arce, na Bolívia, sequer isso, sem representação do gabinete federal brasileiro, apenas com a presença do embaixador nacional em La Paz.
Essa política de ausência por ideologia fica ainda mais gritante, e negativa para o Brasil, quando se olha para outros presentes. Sim, Pedro Castillo é da esquerda radical e integrantes de seu partido possuem elos com o grupo guerrilheiro Sendero Luminoso. Ainda assim, o colombiano Iván Duque, o chileno Sebastián Piñera e o equatoriano Guillermo Lasso, todos de direita, estavam na posse. Um monarca castelhano da casa de Bourbon estava tanto na posse de Castillo quanto na posse de Luis Arce. Não há justificativa que não seja uma postura ideológica.
Aristóteles, tutor de Alexandre, avisou o pupilo que era importante distinguir “os amigos de Alexandre” dos “amigos do rei”, ou seja, separar o indivíduo Alexandre das funções do monarca. Jair Bolsonaro não precisa ser amigo de Pedro Castillo, mas o Presidente do Brasil precisa ser amigo do Presidente do Peru, uma distinção entre a pessoa e o cargo que Jair Bolsonaro não faz.
Ainda sobre a representação brasileira, Hamilton Mourão viajou ao Peru em um avião C-390 da Embraer. O uso de um avião cargueiro, com seu interior adaptado, do que um avião executivo, muito provavelmente foi motivado pelo uso da oportunidade como vitrine, já que a força aérea vizinha está em processo de substituir parte de sua frota de carga.
Constituição peruana
Sobre a constituição peruana, Castillo afirmou que deseja uma constituinte “plurinacional, popular e com paridade de gênero”, e chamou sua proposta de “assembleia constituinte do bicentenário”, dado o aniversário de duzentos anos da libertação peruana por José de San Martín, em 28 de julho de 1821.
O país andino era o último grande bastião realista pró-Espanha na América do Sul, e apenas com uma intervenção das forças dos países já emancipados que o Peru tornou-se independente. A força espanhola na política e na sociedade de Lima era tanta que apenas em 1869 o governo castelhano reconheceu a perda desse território americano.
À primeira vista, o óbvio é fazer um paralelo com a situação chilena, ao sul, que passa por uma constituinte nesse exato momento, para substituir a carta outorgada pela ditadura Pinochet em 1980 e aprovada via um referendo fraudulento. O paralelo, entretanto, é superficial e engana, tanto no contexto social, no contexto político e nas pautas envolvidas.
Iniciando pelo contexto social, a constituição de Pinochet, no Chile, era, de maneira quase unânime, ilegítima. Fruto de um período autoritário, não foi redigida via um processo democrático, tampouco aprovada de maneira aberta e transparente. Isso é parte da definição legal mais ampla chamada Vício de Origem, quando não importa o mérito da lei ou do elemento processual, mas o fato de sua origem ser ilegítima. Uma confissão obtida sob tortura é inválida por vício de origem, por exemplo, mesmo que a pessoa torturada tenha de fato cometido aquele crime.
Isso fica explícito ao olhar o resultado do plebiscito chileno, quando 78,2% da população afirmou desejar uma nova constituição. O mesmo consenso não existe no Peru, e, talvez, sequer possa existir. A constituição peruana é de 1993, já sob a ditadura Fujimori. Ainda assim, ela foi redigida por uma constituinte e aprovada via um referendo. Discute-se o quão democrática a constituinte teria sido, já que foi boicotada por alguns partidos e realizada em um contexto de instituições fechadas e suspensão de direitos básicos.
Erro político
Mesmo com tais debates, é uma situação muito distante da chilena, onde mesmo integrantes de partidos de direita, como o Renovación Nacional, apoiavam uma nova e democrática constituição.
O contexto político também é diferente. A proposta de um plebiscito constituinte veio do governo Piñera, cuja coalizão possui a maioria da Câmara dos Deputados. Castillo e seu partido, o Peru Libre, terão a maior bancada do congresso peruano, com 37 das 130 cadeiras. E essa maior bancada está muito longe de uma maioria, que está nas mãos dos partidos de direita e de centro.
A chance da constituinte ser aprovada pelo congresso peruano passa por Castillo conseguir apoio de parte da direita. Hoje, isso soa improvável, até pelo fato citado da constituição não ser tão malvista quanto ela era no Chile. É uma constituição que centraliza demais o poder no presidente, isso é fato.
Finalmente, as pautas envolvidas também enganam. Enquanto diversos constituintes chilenos pautam suas propostas em temas progressistas, como aborto de gestação, o governo de Pedro Castillo é, excetuando a defesa de pautas indigenistas, socialmente conservador. Ele é contra a descriminalização do aborto de gestação, contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, defende a pena capital e já se manifestou contra a “ideologia de gênero” na educação.
Pode-se imaginar uma “barganha” em que a direita aceita a constituinte em troca de apoio na manutenção dessas questões sociais. Isso não quer dizer muita coisa, já que, primeiro, os constituintes eleitos poderiam levantar tais bandeiras. Segundo, elas podem ser tratadas dentro do arcabouço constitucional existente.
Após explicitar todas as diferenças entre a situação chilena e a peruana, fica claro que a defesa de uma constituinte por Castillo é um erro de cálculo político. Achar que um político vitorioso em uma eleição apertadíssima e em país polarizado teria prestígio ou capital político para propor uma reforma tão profunda é ambicioso demais e, certamente, levantou resistências evitáveis ao seu nascente governo.