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Protesto contra o presidente da Índia, Narendra Modi
Ativistas paquistaneses do grupo “Fórum da Juventude para a Caxemira” queimam um banner com a foto do presidente da Índia, Narendra Modi, e a bandeira da Índia| Foto: ARIF ALI/AFP

O governo indiano iniciou um processo que pode causar sérias repercussões no futuro próximo. O gabinete do premiê Narendra Modi e seu partido, o Bharatiya Janata, conhecido pela sigla em inglês BJP, cumpriram uma promessa de campanha e revogaram o artigo 370 da constituição indiana. Esse artigo conferia autonomia ao estado de Jammu e Caxemira; apesar do nome referenciar duas regiões, trata-se de apenas um estado, habitualmente chamado de “Caxemira indiana”.

Mudança de status

Essa autonomia era expressa em poder legislativo local, com leis diferentes para cidadania e propriedade, um ponto importante. Como mencionado, a mudança era uma promessa de campanha eleitoral e talvez a melhor expressão da vitória esmagadora de Modi e do BJP, o partido do nacionalismo hindu. A medida, embora delicada, foi legal. Das 545 cadeiras do parlamento indiano, 303 estão diretamente nas mãos do BJP, o que já é suficiente para uma maioria simples.

Alianças com partidos menores e regionais garantiram a maioria qualificada necessária para a mudança constitucional. Os poderes executivos do presidente revogaram ordens anteriores sobre o status da região. Lideranças políticas da oposição pretendem recorrer da decisão, alegando que o artigo 370 era uma cláusula que não poderia ser modificada; outro problema é o fato do estado estar sem governo próprio, sob intervenção. Independente da discussão jurídica, o plano do governo Modi é, a partir do atual estado, criar duas entidades.

Uma manterá o nome Jammu e Caxemira e outra chamada Ladaque. Ambas seriam membros plenos da federação indiana, totalmente integrados à União, sem as autonomias regionais. Isso se encaixa na retórica nacionalista do partido e usa o choque pela Caxemira como fator de unidade e demonstração de força política; foca o debate público do país em questões políticas, e não na estagnação econômica indiana; finalmente, permitirá que indianos possam adquirir terras e propriedades na Caxemira indiana.

Pelas regras de autonomia, apenas cidadãos da região podem ser proprietários na Caxemira indiana. O que parece um detalhe é, na verdade, algo importante. A mudança na constituição pode permitir uma política de colonização hindu no único território majoritariamente muçulmano dentro da federação indiana. A população do estado de Jammu e Caxemira é de cerca de doze milhões de pessoas; dessas, cerca de 68% são muçulmanas, 28% hindus, 2% sikhs e 1% budistas.

Além disso, o caxemire é o idioma mais falado na região, cerca de 20% da população usa o hindi em seu cotidiano. Uma política de colonização soa como algo do século XIX, entretanto, não é algo tão distante assim, especialmente em países com minorias étnicas. Isso seria feito não necessariamente por “malvadeza” ou “pureza étnica”, mas para garantir o controle do governo indiano sobre a região, diminuindo a possibilidade de um movimento por independência ou leal a “outros governos”.

Conflito e História

O conflito sobre a Caxemira é como vários outros conflitos já tratados aqui nesse espaço: sempre muito presentes na mídia e na mente das pessoas, mas pouco explicado ou compreendido. Todos sabem de um conflito na Caxemira, mas ninguém parece se preocupar em mostrar o motivo do conflito. Em essência, existem três razões para a disputa entre Índia e Paquistão pelo controle da região. Uma histórica, ligada ao processo de formação das nações independentes, e duas geopolíticas.

A região da Caxemira, somando as partes dominadas por Índia, Paquistão e China, corresponde, aproximadamente, ao principado de Jammu e Caxemira, governado por um marajá local desde o século XVIII. Um dos vários reinos indianos que possuía alguma autonomia, ao menos nominal, durante o período imperial britânico. Com a partição do Raj britânico durante as negociações para a independência da região, em 1947, cada parte do subcontinente indiano escolheria de qual país, Paquistão ou Índia, faria parte.

O marajá da Caxemira, Hari Singh, bem na fronteira da linha de partição, escolheu um terceiro caminho: ser independente, com boas relações com ambos os novos países. A origem dessa decisão está no fato de que a maioria da população era muçulmana, entretanto, a nobreza local era hindu. Preocupado com tais eventuais contradições, o então marajá decidiu pelo caminho da neutralidade. Não funcionou. Milícias locais de ambos os lados rapidamente se formaram e o Paquistão invadiu, alegando proteger sua população.

O governo local solicitou uma intervenção indiana. Esses eventos estão no cerne da Primeira Guerra Indo-Paquistanesa, logo após a independência, em 1947. Desde então dois conflitos foram disputados pela região, além de uma série de hostilidades menores, como as do início de 2019. Tanto Índia quanto Paquistão contam com o apoio de grupos militantes do outro lado de sua fronteira. A China, por sua vez, alega que teve parte de seus territórios “roubados” pelos britânicos no século XIX.

Como parte de sua política de unidade territorial, após a anexação do Tibete a China ocupou algumas porções da Caxemira; o Paquistão cedeu esses territórios em um acordo de fronteiras, que não é reconhecido pela Índia. Como em diversas disputas territoriais desse tipo, tanto Índia quanto Paquistão alegam que a totalidade do território em disputa é sua posse. Em outras palavras, para a Índia, o Paquistão cedeu território indiano aos chineses, sem ter autoridade para isso.

Conflito e geopolítica

O conflito pela Caxemira está, então, ligado de forma umbilical ao nascimento das duas nações. É um conflito por identidade, por orgulho nacional e por ambos os lados se verem com a razão em suas demandas pelo território. É importante lembrar que a História de Índia e de Paquistão se funde, dois povos irmãos separados por algumas diferenças mas aproximados por uma infinidade de aspectos e uma complexa, e rica, História. Lideranças como Gandhi não desejavam sequer uma separação, defendendo a união.

Ainda assim, dois fatores mais “mundanos”, puramente geopolíticos, afetam os interesses pela Caxemira. O primeiro deles é a localização da região, parte da ponte terrestre que une, e liga, o subcontinente indiano, o planalto iraniano, as planícies da Ásia Central, os desertos chineses e o platô tibetano. A Caxemira e o Afeganistão são como um alfinete que prende essas diversas regiões em conjunto. Por isso, o controle da Caxemira importa tanto aos planos indianos de infraestrutura quanto ao elo entre Paquistão e China.

Pela modernização da infraestrutura local, a Índia pode iniciar um projeto de expansão do seus elos ferroviários com a Ásia Central e seu parceiro iraniano; claro, algo ambicioso do ponto de vista econômico e político. Ao mesmo tempo, a Caxemira paquistanesa é parte essencial do corredor econômico que liga a China ao Paquistão, com importantes estradas e ferrovias. As relações entre paquistaneses e chineses é motivo de preocupação para os indianos, o que também explica as ações tomadas.

Finalmente, a Caxemira é importante por outro motivo. Água. Dali nascem importantes rios para os dois países, e o controle das nascentes fluviais é estratégico. Em 1960 foi assinado um acordo de partição das águas. O rio Indo, de enorme importância cultural, e seus dois afluentes ao oeste, Jhelum e Chenab, foram cedidos ao Paquistão. Já os três tributários ao leste, Sutlej, Ravi e Beas, são de uso indiano. As águas são importantes para a agricultura e também para a geração de energia hidrelétrica.

Nesse tema, a Caxemira também é o local de grandes geleiras que, no verão e na primavera, são fontes de água potável para a população. Em territórios de grande altitude e secos, esse recurso é valiosíssimo. Na soma total, a Caxemira não é apenas uma disputa por fronteira, mas também por recursos preciosos. Os motivos e interesses por trás da ação do governo indiano, embora compreensíveis, podem também elevar as tensões entre duas potências nucleares com histórico de conflitos.

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