Uma guerra é tudo o que Benjamin Netanyahu precisa politicamente nesse momento. Após grandes protestos e uma greve geral obrigarem ele a suspender sua reforma do Judiciário, que transformaria Israel em uma autocracia, Netanyahu ficou em posição delicada. Se sua principal pauta na última década, e também a de seu partido, é a questão da segurança, uma escalada de tensões serve como bóia de salvação política.
Kahanismo
Como explicado aqui em nosso espaço na semana passada, Netanyahu sofreu um dos maiores reveses de sua longeva carreira política. De um lado, as manifestações e a greve geral forçaram ele a recuar. Por outro lado, os partidos da direita religiosa, interessados na reforma do Judiciário, ameaçaram romper a coalizão de governo, o que causaria uma nova eleição, com a aprovação de Netanyahu em uma baixa histórica.
Para impedir o rompimento, Netanyahu teve que ceder a Itamar Ben-Gvir, ministro de Segurança Nacional e líder do Otzma Yehudit, o partido kahanista. O termo faz referência ao rabino Meir Kahane, condenado por terrorismo e assassinado em 1990. O Kahanismo é uma mistura de nacionalismo, racismo e teocracia, resultando em uma ideologia que é uma versão local do fascismo.
A concessão de Netanyahu foi a criação de uma guarda nacional sob comando de Ben-Gvir, uma polícia ideológica que será formada por colonos de assentamentos na Cisjordânia. O mesmo Ben-Gvir, em janeiro, fez uma aparição no complexo da mesquita de al-Aqsa, em Jerusalém, um dos mais conhecidos cartões postais da cidade, com o Domo da Rocha. O local é importante para as três religiões monoteístas abraâmicas.
Religiões
Para as três religiões, é onde está a Rocha Fundamental, o local primordial por onde começou a criação do mundo. Também é o local onde Abraão sacrificaria seu filho. Para os judeus, é seu local mais sagrado, onde foram construídos os templos de Salomão e de Herodes. Eles se referem ao local como Monte do Templo, onde está o popularmente chamado Muro das Lamentações, possível resquício do templo de Herodes.
O Monte do Templo também está ligado à chegada do Messias no judaísmo, e a construção do Terceiro Templo. No Cristianismo, o local possui também importância pelas passagens que envolvem a vida de Jesus Cristo ali. Finalmente, para os muçulmanos, que chamam o local de Esplanada das Mesquitas, foi dali que Maomé visitou o Paraíso, após ser levado de Meca na montaria Buraq.
A mesquita de al-Aqsa é o terceiro local mais sagrado do Islã e a mesquita é a segunda mais antiga da religião. Claro que isso é um resumo extremamente conciso de uma História que começou há mais de dois mil e quinhentos anos atrás. Não há pretensão de debater teologia ou arqueologia aqui, apenas apontar o fato que o mesmo local é sagrado para as três religiões, por diferentes motivos.
Nesses dias de abril de 2023, as três religiões também estão em momentos sagrados. Para o Judaísmo e para os cristãos, trata-se da Páscoa, a data mais importante do calendário judaico e, para algumas vertentes, também a data mais importante do Cristianismo. Para os muçulmanos, estamos no Ramadã, o mês que celebra a revelação divina para Maomé. O mês é variável no calendário religioso, determinado pelos ciclos lunares.
Provocações e incidentes
Um local já propenso à mexer com as paixões humanas torna-se, por uma coincidência do calendário, ainda mais importante e sensível. Essa breve explicação religiosa serve para explicar alguns comportamentos de pessoas comuns, não para justificar suas ações, muito menos podemos perder de vista que as ações e atos de lideranças políticas são movidos por cálculos, não necessariamente por paixões religiosas.
Na sexta-feira, dia 31 de março, um palestino foi morto em Jerusalém, perto da mesquita de al-Aqsa, após ser parado pela polícia e ter tentado tomar a arma de um deles, e barreiras policiais foram colocadas em Jerusalém após o incidente. Mais de duzentos mil muçulmanos estavam na região, e a sexta-feira é o dia sagrado da semana no Islã. No dia seguinte, mais um grande protesto foi realizado contra Netanyahu.
Em um sábado, o dia sagrado do Judaísmo, cerca de 150 mil pessoas protestaram em Tel-Aviv contra a proposta de reforma do Judiciário. Dois dias depois, a polícia israelense deteve um fundamentalista religioso judeu que pretendia realizar o sacrifício de uma cabra na Esplanada das Mesquitas, ou Monte do Templo. O sacrifício de animais faz parte da Páscoa de alguns judeus ultraortodoxos e o ato tinha como intenção ser uma provocação.
O Rabinato de Israel, inclusive, proíbe que judeus visitem o local, o que é desafiado pelos nacionalistas. Na quarta-feira, dia cinco, a polícia israelense prendeu cerca de 400 muçulmanos, incluindo cenas de agressões contra pessoas orando dentro da mesquita, assim como o uso de gás lacrimogêneo na Esplanada das Mesquitas. Segundo o governo de Israel, a polícia estava agindo contra um “tumulto”.
Na véspera, o Hamas orientou que palestinos muçulmanos fizessem uma barricada na mesquita, para impedir um novo plano de judeus ultraortodoxos realizarem um sacrifício no local. Após as orações, muçulmanos permaneceram dentro de al-Aqsa, de onde teriam disparado fogos de artifício contra os policiais, segundo as autoridades israelenses. As imagens da polícia israelense dentro da mesquita circularam rapidamente.
Não foi o primeiro incidente de segurança dentro da mesquita, mas talvez o mais grave. A Jordânia, custodiante dos locais sagrados do Islã em Jerusalém, protestou formalmente, assim como a Turquia e o Egito. O ocorrido é uma mistura de questões religiosas, provocações nacionalistas e violência de forças estatais, em um dos locais mais sensíveis do mundo, em um contexto ainda mais complicado.
Após o incidente, no dia seis, foguetes foram disparados da Faixa de Gaza contra Israel, ou pelo Hamas ou pela Jihad Islâmica Palestina. No mesmo dia, cerca de trinta foguetes foram disparados de território libanês, possivelmente por células locais dos mesmos grupos palestinos. Três civis israelenses ficaram feridos e ainda está incerta uma eventual participação do Hezbollah no ataque.
Reação de Israel e Netanyahu
O premiê libanês, Najib Mikati, condenou os ataques e afirmou que o governo libanês não autoriza o uso de seu território para essas ações. Como ordena a constituição libanesa, ele é muçulmano sunita, ou seja, não conta com o apoio do Hezbollah. Como consequência dos ataques, as forças israelenses atacaram alvos em Gaza e em Tiro, no Líbano. É a maior escaramuça envolvendo Israel e Líbano desde 2006.
Netanyahu publicou fotos da reunião de seu Conselho de Defesa e usou sua conhecida retórica, e capacidade de oratória, sobre a necessidade de defesa de Israel contra seus inimigos. Se não é possível afirmar com todas as letras que as ações da polícia israelense foram calculadas para gerar uma crise de segurança que poderia beneficiar Netanyahu, é inegável que uma situação dessas favorece politicamente o premiê.
O pilar de seus governos e de suas campanhas eleitorais é a questão da segurança. Tanto que ameaçar o ministro de Defesa de demissão, dez dias atrás, foi um dos principais danos na imagem de Netanyahu. Não se sabe ainda se teremos uma guerra ou uma continuidade das hostilidades, mas o premiê de Israel está em sua situação favorita para reverter suas derrotas, a de colocar a si mesmo como o defensor que Israel não pode abrir mão.
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