A crise na África Ocidental se aprofundou nos últimos dias. Depois do golpe de Estado no Níger, que derrubou o presidente Mohamed Bazoum, foi anunciada a criação do Conselho Nacional de Salvaguarda da Pátria, uma junta militar para governar o país, liderada pelo general Abdourahamane Tchiani.
A importância geopolítica do Níger e a sequência de golpes de Estado na região motivaram uma forte reação internacional.
O golpe foi o tema da nossa coluna anterior. Recapitulando, é necessário termos em mente três aspectos para compreender e comentar o ocorrido. O primeiro é o local.
Trata-se de um dos países mais pobres do mundo, o antepenúltimo colocado no ranking mundial de Índice de Desenvolvimento Humano. A pobreza soma-se ao histórico político local, marcado por golpes militares e governos autoritários.
Um general potencialmente demissionário, então, decide prender o próprio presidente que deveria guarnecer, responsabilizando o governo pela pobreza e pela corrupção que assola o país.
O segundo aspecto é o regional. Os últimos anos foram marcados por diversas derrubadas de poder na África Ocidental, a maioria delas conduzidas por jovens oficiais militares. Nesse sentido, o sexagenário general do Níger é uma exceção.
Esses golpes de Estado são motivados tanto por uma perspectiva desenvolvimentista anticolonialista quanto pelo desgaste dos conflitos locais, seja contra grupos separatistas, contra o banditismo ou os jihadistas islâmicos.
Finalmente, o terceiro aspecto é o embate internacional entre potências, especialmente a Rússia, com sua crescente presença na África, e a França, cujo império dominou a região.
Intervenção francesa?
A principal questão nesse aspecto é o fato de que a economia francesa precisa do Níger.
Cerca de 5% de todo o urânio do mundo vêm do país, e o elemento abastece as usinas nucleares francesas, que fornecem cerca de 75% da energia elétrica consumida no país.
Desde o início do século, a França buscou diversificar seu fornecimento, mas cerca de 30% do urânio usado pela França ainda vem do Níger.
Não é surpreendente, então, que a França não tenha aceitado o golpe de Estado, assim como seus aliados europeus e também os EUA.
É importante destacar que, sob a justificativa de combater os jihadistas, os militares do Níger foram treinados e armados, nos últimos anos, justamente pelos EUA e pela França.
A França e a União Europeia já suspenderam a cooperação econômica com o país.
O Níger recebeu cerca de 120 milhões de euros em ajuda francesa em 2022, um valor que parece grande mas, pensando nas dimensões do país, não é suficiente para muito. Além de, claro, provavelmente ter sido em boa parte desviado para bolsos indevidos.
Já a suspensa ajuda europeia era prevista em cerca de 500 milhões de euros para um período de quatro anos, entre 2021 e 2024.
O governo Biden afirmou que “a forte parceria econômica e de segurança dos EUA com o Níger depende da continuação do governo democrática e do respeito pelo estado de direito e direitos humanos”.
Todos esses países citados se referem a Bazoum como o legítimo presidente e exigem a renúncia imediata dos golpistas e seu “governo provisório”. A principal articulação, entretanto, deve ser a regional.
A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) não reconheceu o golpe e suspendeu a parceria com o país. Dos quinze países-membros da comunidade, quatro estão suspensos atualmente, devido aos golpes militares.
Enquanto a CEDEAO manteve a postura de negociar com as juntas militares de Mali e de Burkina Faso, sua postura em relação ao Níger foi muito mais assertiva.
Guerra civil
Na prática, a CEDEAO impôs um ultimato aos militares nigerenses, exigindo o retorno do presidente afastado e insinuando o uso de uma força militar regional em intervenção.
Esse linguajar e essa pressão jamais seriam utilizados sem a anuência de países como os EUA e, possivelmente, a própria França. A junta do Níger também afirmou que a França poderia realizar uma intervenção em breve.
Nesse caso, a justificativa para a intervenção seria uma suposta autorização do “governo legítimo” de Bazoum. O governo francês, obviamente, negou essa possibilidade.
Do outro lado, o governo do Níger também adotou medidas e conquistou declarações de apoio. A junta militar suspendeu a exportação de urânio e de ouro para a França, embora seja improvável que isso afete as reservas francesas no curto prazo.
As juntas militares de Mali e de Burkina Faso afirmaram que uma intervenção no Níger seria encarada como uma “declaração” de guerra aos dois países e que as sanções econômicas são “ilegais, ilegítimas e desumanas”.
Principalmente, é especulado que a Argélia já começou movimentos para apoio aos militares do Níger, querendo evitar uma maior crise em um país vizinho. Além, claro, do apoio russo ao golpe militar.
Caso uma solução negociada para essa crise não seja alcançada, existe um tangível risco de guerra.
Pode ser uma guerra dos militares nigerenses, apoiados pelos vizinhos e pela Rússia, contra uma intervenção regional, apoiada por França e EUA. Também pode ser uma guerra civil nigerense, com um racha militar, já que muitos deles, como comentamos, possuem ligações com os EUA e com a França.
Outros países, como Emirados Árabes Unidos e Turquia, também observam os eventos no Níger, vizinho da Líbia, atualmente fracionada e com influência presente dos países citados.
O pobre e ignorado Níger pode ser, então, um barril de pólvora para um conflito de maiores proporções, em mais uma guerra por procuração entre as potências, dessa vez colocando Rússia e França em rota de colisão.
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