O presidente da Rússia, Vladimir Putin, aproveitou seu discurso anual de Estado da Nação para anunciar propostas de mudanças constitucionais. Falando perante uma sessão conjunta do parlamento russo, mais a presença do gabinete executivo, Putin abordou temas de defesa, de economia, crescimento demográfico, dentre outros, mas o que chamou atenção foi a questão constitucional. Especialmente pela reação causada: a renúncia de todo seu gabinete, incluindo o primeiro-ministro Dmitri Medvedev.
Propostas
Em suma, Putin propôs um fortalecimento da Duma, a câmara baixa do Parlamento. Ela deveria ter o poder de apontar, e não apenas aprovar, o primeiro-ministro. Lembrando que a Federação Russa é um regime presidencialista, o primeiro-ministro executa funções de uma espécie de "chefe de ministros". Fazendo uma analogia com a política brasileira, uma combinação de ministro-chefe da Casa Civil com vice-presidente. Além disso, "primeiro-ministro" é um termo informal, o título é Chefe do Governo.
Também foi proposto o aumento da autoridade do Conselho de Estado, um órgão consultivo da presidência russa formado pelos governadores e presidentes das entidades da Federação; lembrando que existem 22 repúblicas autônomas dentro da federação, que representam minorias regionais. Qual autoridade seria essa não foi especificada ainda. Também seria retirado o termo "consecutivos" do limite de mandatos presidenciais; ou seja, o limite seria de dois mandatos, ponto final. Putin está em seu quarto.
Finalmente, pessoas que obtiveram cidadania estrangeira ou residência permanente em países estrangeiros seriam barrados de serem candidatos à presidente. Para aprovar essas medidas, Putin mencionou um referendo popular. Claro que existe uma maior legitimidade em decisões tomadas pelo voto popular, porém, nesse caso, existe também uma possível esquiva da necessidade de uma assembleia constituinte. Isso pois os artigos que Putin propôs que sejam alterados só podem ser modificados via uma assembleia constituinte.
Claro que não faltarão interpretações jurídicas sobre poder originário e que um referendo é legítimo o suficiente. Como reação, o atual primeiro-ministro e todo seu gabinete renunciaram. Medvedev, ao lado de Putin, justificou sua postura como mera consequência lógica das mudanças constitucionais propostas; se a natureza do cargo será alterada, então, ele deve ser esvaziado, ocupado apenas interinamente, algo do tipo. Medvedev tem sofrido acusações de corrupção, ou seja, pode apenas ter se preservado.
Como prêmio de consolação, Medvedev chefiará o Conselho de Segurança Nacional, um órgão consultivo. Seu substituto como premiê será Mikhail Mishustin, ex-chefe da receita russa, responsável por um dos maiores processos de digitalização fiscal do mundo. Segundo o Financial Times, a queda na evasão fiscal foi tamanha que a arrecadação russa cresceu 64% entre 2014 e 2018, comparado ao aumento de 21% no consumo. Mishustin não era um nome conhecido, apenas um muito competente tecnocrata.
O que Putin quer?
Todas essas mudanças levaram a uma série de especulações, algumas mais embasadas, outras menos. O fato é que Putin, teoricamente, terminará seu atual mandato em 2024. Sua popularidade ainda é alta, mas está em queda. A economia continua devagar, a questão da Crimeia e do leste ucraniano ainda paira sobre o governo e a mais recente reforma da previdência não foi bem aceita. Todos se debruçaram no discurso para tentar entender o que ele significa sobre sua sucessão e seu futuro.
Primeiro, as mudanças sinalizam uma diminuição da concentração de poderes no presidente. Dar ao parlamento o direito de nomear o primeiro-ministro é uma maneira, ao menos aparente, de dar mais poder ao legislativo; claro, quando se pensa que a Duma é dominada pelo partido governista isso não faz muita diferença. Quais seriam os poderes do novo Conselho de Estado? Hipoteticamente, poderia ser incluído um poder de veto sobre propostas legislativas ou ações do presidente.
Limitar o número de mandatos impediria o surgimento de um "novo Putin", uma figura política que ocupasse a presidência por diversos mandatos, mesmo que não consecutivos. Impedir que russos com residência estrangeira evitaria que os diversos bilionários russos expatriados pudessem ter ambições políticas. Por exemplo, Roman Abramovich, que hoje tem nacionalidade israelense, ou Mikhail Khodorkovsky, residente em Londres. Ambos possuem recursos para serem alternativas de peso a Putin ou seu sucessor.
Ou seja, todas essas mudanças sinalizam na direção de evitar que Putin tenha um sério opositor como sucessor. Mesmo o ato de colocar um tecnocrata como primeiro-ministro, ao menos provisoriamente, pode ser interpretado como maneira de evitar de fortalecer um potencial rival. A renúncia de Medvedev, se combinada entre os dois, pode ter tido essa finalidade. Todos esses cálculos são focados no sucessor de Putin na presidência. E o futuro do próprio Putin?
O futuro de Putin
Difícil imaginar que ele simplesmente termine seu mandato e se retire para uma aposentadoria discreta escrevendo suas memórias. Tirar do presidente a tarefa de nomear o primeiro-ministro poderia ser uma maneira do próprio Putin ocupar esse cargo, via a Duma, embora seja pouco para ele. Um Conselho de Estado fortalecido, como na especulação da coluna sobre um possível veto, seria um lugar confortável para Putin, afastado das questões mundanas e cotidianas de um governo.
Ainda assim, ele teria autoridade para influenciar as grandes decisões de Estado, a política externa e a política de defesa, suas áreas de maior interesse. Essa foi a solução do mandatário cazaque Nursultan Nazarbaiev. Aos 79 anos, se aposentou da política do Cazaquistão, ocupando um cargo "consultivo" e ainda dotado de enorme prestígio com a população. Putin precisa tanto fazer um sucessor quanto manter-se no holofote, equilibrando isso com o desgaste natural de vinte anos de vida pública.
No fundo, essa coluna e todas as especulações buscam responder a pergunta: O que Putin deseja com essas reformas? E essa é a resposta, que por muitas vezes escapa. O desejo é o de causar essa confusão, essa onda de especulações, chacoalhar a situação. Tudo isso enquanto tira-se um pouco do foco da atenção pública da economia e da reforma da previdência. Como bônus, ele tateia o que pode ser melhor pro futuro dele, o que é tangível. Ele tem quatro anos de mandato garantido. Não está com pressa.
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Para os leitores que não tiverem lido na época, lembro de uma extensa coluna aqui nesse espaço, intitulada "Eleições na Rússia: por que o maior antagonista do ocidente continuará no poder". Modéstia de lado, recomendo a leitura para uma compreensão mais completa da figura de Putin.
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