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Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo

Explicações para os principais acontecimentos da política internacional

Política da pandemia

Os verdadeiros motivos do uso do termo “vírus chinês” pelos EUA

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Presidente dos EUA, Donald Trump, se refere ao novo coronavírus como o "vírus chinês" (Foto: Drew Angerer/Getty Images/AFP)

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Uma videoconferência dos ministros de relações exteriores dos países do G-7 terminou no dia 25 de março sem chegar a um acordo quanto a uma declaração única. Ministros de  Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido debateram, é claro, a pandemia do novo coronavírus e medidas em conjunto para mitigar suas consequências, inclusive seus efeitos econômicos. A declaração, entretanto, ficou travada logo em sua gestação, por uma questão de nomenclatura. O governo dos EUA insistia em chamar a pandemia de “vírus de Wuhan” ou “vírus chinês”, enquanto os outros países defendem a nomenclatura padronizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), Covid-19. Parece picuinha, mas existem motivos para essa insistência dos EUA.

Primeiro, deixe-se claro todos os problemas da origem da pandemia. A China é um país com um governo autoritário, unipartidário, sem judiciário independente, militarizado e com censura ao trânsito de informação. O governo chinês provavelmente subestimou o possível impacto do novo coronavírus, seja por razões políticas ou por ignorância. A China possui altíssima densidade populacional e o consumo de animais selvagens faz parte da cultura de algumas regiões até hoje, o que favorece que doenças “pulem” de animais para humanos. Importante lembrar que essa densidade populacional e proximidade com animais selvagens passam longe de serem coisas novas. São, inclusive, a origem das epidemias de peste bubônica, uma das doenças mais mortais da História.

A grande disputa internacional

Uma dessas epidemias, a de Justiniano, surgiu na maior cidade européia de então, Constantinopla, e ceifou milhões de vidas. A mais conhecida, a Peste Negra, no século XIV, matou 25 milhões de chineses até chegar na Europa, levada pelos mongóis. Só que não são esses fatores que sustentam a ideia do “vírus chinês”. É apenas o que é usado para vender o rótulo.

O discurso do “vírus chinês” utilizado pelo governo de Donald Trump e papagaiado por seus apoiadores, partidários e aliados tem duas reais funções. A primeira é conquistar os corações e mentes para as disputas entre EUA e China, que são geopolíticas, tecnológicas e econômicas. O leitor mais fiel sabe que esse tema é frequente aqui e que um dos principais conselheiros de Trump é Michael Pillsbury.

Ele é autor de The Hundred-Year Marathon, livro que aborda a ascensão mundial chinesa e como isso seria ameaça aos EUA. O termo “vírus chinês”, então, ajuda em caracterizar a China e os chineses como os novos inimigos. Já foram os árabes, os russos, oras, até os britânicos e os mexicanos. É criar uma simbologia do que deve ser repudiado. O caso atual é facilitado, já que vilanizar a China socialista bebe no antigo “perigo vermelho”. Isso é uma ferramenta característica das disputas entre as potências e “faz parte do jogo”, por assim dizer, é importante destacar. Franceses retratavam alemães de forma pouco lisonjeira, italianos vilanizavam os austríacos, e assim por diante. Não se trata de julgamento moral, mas de apontar a verdadeira finalidade do uso do rótulo “vírus chinês”.

Pode-se ainda alegar que o termo “vírus chinês” é apropriado, mesmo dissonante das regras de nomenclatura de doenças, para determinar a origem da doença e poder, então, analisar e corrigir os problemas que proporcionaram a pandemia. Seria perfeito, se não fosse balela. A plataforma do governo dos EUA e de boa parte de seus simpatizantes é de negacionistas da ciência, pessoas que transformaram os termos “pesquisador”, “especialista” e “professor” em palavrões. No caso de um vírus, algo que não discrimina cor, religião ou fronteiras, é impossível analisar uma pandemia sem cooperação internacional, cujos órgãos são repudiados desde a medula ideológica que motiva setores do governo dos EUA e de seus aliados.

No fundo, boa parte do executivo de Washington não está nem aí da onde veio o vírus ou como a pandemia se desenvolveu. Se surgiu na China, chame-o de “vírus chinês”. Da mesma maneira, autoridades chinesas acusaram o vírus de ter sido levado à Wuhan por militares dos EUA, por ocasião de jogos militares, e o governo de Pequim tenta reforçar sua imagem positiva ao cooperar no combate ao novo coronavírus pelo mundo. É disputa num grande tabuleiro mundial. E usar o termo “vírus chinês” sob o mantra de “é a origem da pandemia, que precisa ser estudada”, nesse momento, não faz muito sentido na ordem dos fatores. Pouco se sabe, em qualquer lugar. Não se determinou ainda com precisão quais as sequelas do vírus, como ele pulou para seres humanos, dentre outras questões.

Apenas algumas semanas atrás cientistas provaram de forma conclusiva que o vírus não foi obra de engenharia em laboratório, ou seja, não é uma arma biológica. Isso sem falar em dúvidas sobre questões políticas, que ainda vão demorar bastante tempo para virem a público. Novamente, o governo chinês provavelmente subestimou o possível impacto do novo coronavírus, seja por razões políticas, de segurança, por ignorância, ainda não se sabe; e, antecipando, possivelmente outros países também tentariam abafar uma nova doença, ao menos em um primeiro momento, por motivos similares ou pelo discurso de “evitar o pânico” na sociedade, palavras tão presentes. O que muda é que a China consegue abafar por mais tempo do que países com maior liberdade de informação.

O álibi

O segundo motivo da administração Trump usar o termo “vírus chinês” é para criar um álibi para a própria inação, algo seguido por alguns de seus aliados também. Se a China possui todas as características já citadas de uma ditadura, a Coreia do Sul declarou seu mais alto nível de emergência sanitária ainda no dia 23 de fevereiro. Um país democrático, aliado dos EUA e país de origem de mais de dois milhões de seus cidadãos. Diversos países imediatamente suspenderam viagens originárias da Coreia. Na mesma época, Trump estava tuitando que “a mídia e os democratas” estavam tentando “criar pânico nos mercados”. No dia 26 de fevereiro, Trump comparou o novo coronavírus à uma “gripe”, retórica copiada no Brasil pelo presidente Jair Bolsonaro.

Em 28 de fevereiro, uma montadora coreana fechou uma fábrica inteira por causa de um caso. Em primeiro de março, o governo de Seul pediu para que as pessoas ficassem em casa e suspendeu as aulas. No dia três, o governo da Coreia do Sul declarou “guerra à pandemia” e anunciou um pacote econômico de 30 trilhões de won, algo na casa de 124 bilhões de reais, para o combate ao vírus e aos seus efeitos socioeconômicos. Enquanto isso, Trump, em quatro de março, continuava com suas comparações com a gripe comum. Em 10 de março, Jair Bolsonaro disse que a pandemia era uma “fantasia”. Alguns podem dizer que a Coreia do Sul não seria um bom parâmetro, dada sua proximidade geográfica ao epicentro da pandemia, a China, quase vizinha.

Pois bem, olhe-se a Itália, também um país democrático e também um aliado dos EUA. País de origem de dezessete milhões de cidadãos dos EUA e de trinta milhões de brasileiros, mais de 10% da população. As sociedades do Brasil e dos EUA possuem profundos laços culturais e históricos com a Itália. A primeira morte por covid19 na Itália foi em 21 de fevereiro. Uma tentativa de argumento muito vista é a de que o “pânico” pelo novo coronavírus foi só depois do Carnaval, já que ninguém queria perder uma festinha ou por interesses econômicos. O carnaval de Veneza, talvez o mais famoso carnaval do mundo, foi cancelado ainda no dia 23 de fevereiro! No mesmo dia, autoridades regionais italianas determinaram quarentena e multas para quem as violasse.

A Itália, que hoje é o país que mais sofre com o novo coronavírus, passou pelos mesmíssimos fenômenos que hoje acontecem nos EUA e no Brasil. Quedas de braço entre poderes regionais, falta de consenso nacional e uma tentativa de preservar o funcionamento da economia antes de conter o espalhamento do vírus. Ao ponto de, no dia 19 de fevereiro, ter realizado o jogo de futebol entre Atalanta e Valência, na cidade de Milão, com um estádio lotado com 45 mil torcedores. Cerca de 40 mil desses voltaram para sua cidade de origem, berço da Atalanta, a cidade de Bérgamo – a que mais sofre com a epidemia, no que dificilmente é uma coincidência, segundo o cientista Francesco LeFoche, de Milão, ouvido por jornais italianos.

O governo italiano aprendeu a lição do jeito mais amargo e, no dia nove de março, impôs quarentena total no país e o fechamento de escolas, casas noturnas, bares, estádios, tudo. As cenas de caminhões do exército carregando caixões das vítimas rodaram o mundo. No dia seguinte, Trump disse que a pandemia “iria passar calmamente”, mesmo dia da declaração sobre fantasia de Bolsonaro. Em resumo, dizer que a China escondeu, mentiu, atrasou providências, nada disso muda o fato de que dois países aliados dos EUA deram quase um mês de alerta antecipado e de lições ao continente americano. Tempo e lições que foram desperdiçados. Não se trata de castigo divino, de algo inexplicável ou absolutamente inesperado, mas de inação, incompetência e escolhas erradas.

As lições

O selo “vírus chinês”, então, cria um álibi. Mortes? Desemprego? Crises institucionais? Oras, “culpa dos chineses, não tínhamos como fazer nada”. O que é mentira. Tampouco podem usar a partidarização como escudo. Políticos da direita italiana tomaram providências como quarentena, como a prefeita de Lodi, Sara Casanova, da Lega Nord. Benjamin Netanyahu, premiê de Israel e aliado de primeira grandeza de Trump, determinou políticas de quarentena, injetou recursos no sistema público de saúde e articulou a compra imediata de mais de milhão de testes, suficiente para cerca de 10% da população. Narendra Modi, que fez impressionantes recepções para Bolsonaro e para Trump, determinou uma quarentena nacional por 21 dias, mais de um bilhão de pessoas em suas casas.

Todos eles políticos de direita, todos eles com discursos nacionalistas. Talvez o melhor exemplo venha do Reino Unido, governado por Boris Johnson, que compartilha visões e estilo com Trump e com Bolsonaro. Inicialmente, o premiê britânico anunciou a adoção da política de “imunidade de rebanho”, ou seja, afetar o mínimo possível a vida normal, para deixar o vírus circular ao ponto de deixar a maioria da população imune. Quando apresentado com os custos econômicos, sociais e em vidas disso, mudou de ideia. Ouviu seus técnicos. O governo Boris Johnson, então, recuou da decisão e impôs a reclusão, ordenando até o fechamento dos pubs por trinta dias. Decisão essa que está sendo alvo de mentiras e distorções, inclusive.

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Começou a circular a notícia de que Neil Ferguson, médico do Imperial College que aconselha o premiê, teria “voltado atrás”, “revisto” ou “errado” sua previsão que determinava até meio milhão de mortes no Reino Unido. Isso é mentira, segundo o próprio em seu perfil do Twitter. Seu novo relatório diz apenas que, na manutenção do ritmo atual, com quarentena, testagem e acompanhamento intensos, a situação vai melhorar após o pico de contágios. Ele mantém que, caso não seja feito nada, como era a proposta inicial, a projeção ainda leva ao número de 500 mil mortes. Um ótimo exemplo de como é essencial que um governo ouça seus técnicos, seu cientistas e tome providências embasadas e no interesse da maioria da população.

E, ao contrário do chavão popular por vezes evocado, religião e ciência não necessariamente se contradizem. Meca, a cidade sagrada do Islã, foi fechada ainda no fim de fevereiro, para todo e qualquer peregrino, enquanto a Santa Sé fechou a praça de São Pedro no início de março e o Papa Francisco determinou que as celebrações de Páscoa evitarão aglomerações, pedindo para que os católicos orem em suas casas. A pandemia do novo coronavírus também serve de ótimo exemplo da importância de acompanhar o noticiário internacional, o que está sendo feito em cada país, de acordo com suas dinâmicas internas, sejam políticas, sejam sociais. Se a tecnologia pode ser usada para espalhar o pânico, também serve para difundir a informação.

Conscientizar, mostrar que não há discurso de “vírus chinês” ou de “gripezinha” que esconda o fato de que uma pandemia impõe a necessidade de medidas tomadas em um âmbito democrático e de cooperação. Que não há rótulo que esconda que as razões do termo “vírus chinês” são políticas, pragmáticas em uma disputa externa e que tentam esconder os problemas internos. Não são motivos geográficos ou científicos. O que afeta a sociedade dos EUA, hoje, fins de março, é tão culpa do governo chinês quanto é de seu próprio governo, um discurso que pode seduzir e atrair apoio de outros lugares. Só que não é hora de discursos sedutores, nem de confronto, nem de álibis, muito menos de negação. É hora de encarar o desafio apresentado por uma nova doença de rápido contágio.

PS: Caro leitor, escrevo esse PS no dia 27 de Março, 16 horas de Brasília:

Após terminar meu texto, o presidente dos EUA, Donald Trump, conversou por telefone com seu homólogo chinês, Xi Jinping.

Ao comentar a conversa no Twitter, Trump usou o termo "coronavírus", não o termo "vírus chinês". Por cortesia, talvez? Possivelmente, mas é mais um exemplo de como a terminologia é política, e não médica ou científica. É mera política.

Esse é o ponto do texto, como respondi em alguns comentários dos leitores. Apontar as oportunidades perdidas de aprendizado e a insistência em uma discussão sobre rótulo político. Não se trata de uma conspiração americana, tampouco.

Um abraço e obrigado pela leitura.

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