A Romênia reelegeu seu presidente no último final de semana, sob o olhar atento de Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria. O presidente Klaus Iohannis levou o segundo turno com dois terços dos votos. A Romênia é um regime semi-presidencialista, o verdadeiro poder de governo está no primeiro-ministro, com o presidente ocupando funções muito mais cerimoniais. Mesmo com esse tímido impacto político concreto, a eleição ainda pode ser útil para a abordagem de um assunto pouco conhecido.
Klaus Iohannis é representante da comunidade germânica medieval que habita as atuais fronteiras da Romênia, chamados de saxões da Transilvânia, algo que, numa primeira vista, remete a vilões de filmes. Junto com as comunidades germânicas que surgiram durante a dominação dos Habsburgo, formam a expressiva minoria alemã que habita a Romênia. Ainda assim, essa comunidade já foi maior, indo de quase um milhão no início do século XX para algumas dezenas de milhares hoje.
A “salada” da Romênia
A expressividade não era apenas numérica. Nos cerca de setenta anos de monarquia romena, o país era governado por uma dinastia germânica, a Casa de Hohenzollern-Sigmaringen, um ramo da casa que governava a Prússia e o Império Alemão. Algo importante de se ter em mente é que a Romênia contemporânea é um país estabelecido de forma recente, com apenas cento e cinquenta anos de idade, aproximadamente, fruto da junção de diferentes territórios.
Como consequência, o país é uma “salada” demográfica e cultural, além de ter passado por décadas de mudanças territoriais. Enquanto as fronteiras terrestres brasileiras estão estabilizadas por mais de um século, a Romênia como existe hoje é fruto da Segunda Guerra Mundial. Perdeu territórios para a Rússia, o que tornou-se a atual Moldova, disputou fronteiras com a Bulgária e, principalmente, conquistou e perdeu territórios em uma série de guerras com a vizinha Hungria.
Essa “salada” e rica herança histórica é visível nos mapas eleitorais do país. As zonas que eram domínio do império Austro-Húngaro costumam votar de maneira mais conservadora; as zonas que formaram o núcleo da Romênia ao se libertar do jugo Otomano possuem um perfil eleitoral progressista. As comunidades germânicas costumam votar de forma distinta da ucraniana, enquanto a vasta comunidade húngara possui seus próprios partidos. Mais de um milhão de romenos reivindicam essa herança, 6% da população.
Importante destacar que, até a Segunda Guerra Mundial, esse cenário era ainda mais complexo. A ditadura de Nicolae Ceauşescu, sob o signo de superar a identidade nacional, na verdade realizou políticas de fortalecimento da identidade romena. Antes dele, germânicos, húngaros e eslavos foram deportados do país, seguindo as políticas de Potsdam de homogeneização demográfica das novas fronteiras, tema já abordado nesse espaço no caso da Polônia.
Essa política era tida como necessária para evitar as tensões irredentistas características das regiões centrais e orientais da Europa desde o final do século XIX. Os choques entre os diversos projetos de “grandes” nações; Grande Albânia, Grande Sérvia, Grande Croácia, Grande Hungria, Grande Bulgária, etc. Basicamente todo Estado formado dos escombros Otomanos ou Habsburgos tinha o impulso nacionalista e expansionista como parte de sua nova identidade.
A retórica de Orbán
E aqui entra Orbán. O líder húngaro, desde antes de sua chegada ao poder, adota bandeiras irredentistas. Inicialmente num tom mais moderado, de que o governo de Budapeste deve amparar a grande diáspora húngara em suas fronteiras, com minorias significativas na Sérvia, na Romênia e na Eslováquia, além de outras comunidades menores. Foi essa uma das bandeiras, inclusive, que permitiu a ascensão de seu partido nacionalista, o Fidesz.
Esse tom, entretanto, tem crescido. O governo Orbán criou uma nova data cívica, o Dia da Coesão Nacional, no dia Quatro de Junho. O motivo da data? O dia da assinatura, em 1920, do Tratado de Trianon, o acordo de paz ditado pelas potências aliadas da Primeira Guerra Mundial, que desmembrou o antigo Reino da Hungria, parte da monarquia dual Habsburga. Sob a premissa da autodeterminação dos povos, os húngaros perderam territórios para os vizinhos, a origem das comunidades citadas no parágrafo anterior.
Ano após ano, Orbán faz do Dia da Coesão Nacional uma data ainda maior, denunciando que o texto de Trianon “é injusto até o fim dos tempos, pois o tempo cura feridas, mas não cura uma amputação”, que a Hungria, apesar de ser uma suposta grande vítima, tem crescido em importância “econômica, cultural e militar”. São as palavras dele meses atrás, na cerimônia de 2019 da data. Curiosamente, existiu outro regime que tinha Trianon no centro de sua retórica identitária.
O regime de Miklos Horthy, que liderou a Hungria de 1920 até 1944, alinhando seu país aos interesses na Alemanha nazista; ambos os regimes buscavam a mesma coisa, questionar e revisar as fronteiras estabelecidas ao fim da Grande Guerra. Mesmo que o discurso vitimista de Orbán tente colocar a Hungria como uma vítima do nazismo, o fato é que a agenda irredentista húngara encontrava amparo em Berlim, com a formação de uma aliança ainda em Agosto de 1938.
E os primeiros anos foram proveitosos. A Hungria conquistou, ou recuperou, territórios que eram parte da Polônia, da Eslováquia e da Iugoslávia. E também da Romênia. Tanto húngaros quanto romenos consideram a Transilvânia, a terra de origem do atual presidente romeno e pano de fundo da lenda de Drácula, como suas. Mesmo com os dois países aliados da Alemanha nazista, foi necessário que Hitler praticamente ameaçasse uma invasão para que os dois rivais cooperassem contra a União Soviética.
Tensões em vista?
No parlamento húngaro, um belo prédio que emula o parlamento britânico, estão os brasões das “terras húngaras”; o brasão da Transilvânia está lá. Leitores podem achar que esse texto “força a barra”, como se a História pudesse ser encerrada, como se essas antigas feridas não fossem exploradas pelo atual governo húngaro de forma explícita. Um exemplo concreto mais contemporâneo. Em Junho de 2019, em um cemitério de combatentes da Grande Guerra na Transilvânia, romenos e húngaros entraram em choque.
Húngaros tentaram evitar que romenos entrassem no cemitério para homenagens religiosas. A polícia foi chamada, pedras foram jogadas, pessoas foram presas. Mais que isso, os respectivos ministros de Relações Exteriores trocaram acusações de que o outro lado estava “inflamando os ânimos” e apresentando “visões distorcidas da realidade”. Ao ponto em que o ministro húngaro convocou o embaixador romeno em Budapeste. O embaixador, por sua vez, recusou a reunião, algo incomum e considerado rude.
Não se trata de achar que Hungria e Romênia, hoje ambos integrantes da União Europeia e da OTAN, irão travar mais uma guerra no futuro próximo, mas de perceber que a retórica nacionalista húngara causa tensão inclusive com seus vizinhos e supostos aliados. O ano de 2020 será o ano do centenário do Tratado de Trianon, com grandes celebrações nacionalistas húngaras já previstas. Com um claro ponto focal, a História e a posse da Transilvânia, local de origem do ocupante da presidência romena por mais alguns anos.
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