As torres do World Trade Center em chamas após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001.| Foto: Jason Szenes/EFE/EPA
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“O antigo queima nas chamas, e o novo será forjado a partir das chamas em nossos corações.” (Joseph Goebbels, diante de uma pilha de livros prestes a ser incendiada por estudantes nazistas)

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“Os militantes da Al-Qaeda foram os primeiros a adotar a cultura do cancelamento, de se enfurecer contra o que ofende” (Brendan O’Neill)

Em janeiro de 2019, a revista Época publicou uma entrevista com Moira Weigel, pesquisadora de Harvard especialista em politicamente correto. Nas palavras de Weigel: “Para mim, politicamente correto é um sinônimo de educação. Essa é minha definição... Realmente não acredito que o politicamente correto exista. Você pode perguntar: mas, então, a que as pessoas se referem quando usam esse termo? É à linguagem que usamos e aos cuidados que temos quando falamos para não ofender ninguém. O que existe são formas diferentes de diálogo, de discurso, à medida que a sociedade se desenvolve e diversifica… Quando isso acontece, a maneira como você fala também muda e você passa a se preocupar em não ofender os outros”.

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Referindo-me à reportagem, mostrei na ocasião que essa versão açucarada do fenômeno – equiparado simplesmente à boa educação – era totalmente falsa, e que mesmo os críticos brasileiros do politicamente correto tendiam a subestimá-lo, reprovando-o apenas numa chave estética, quando a sua nocividade era fundamentalmente de natureza ética. Escrevi: “O discurso politicamente correto aparece como uma cópia de segunda mão – pois que meramente formal, seletiva e talhada para a ostentação pública – do autêntico senso de justiça. Trata-se de uma corrupção político-ideológica da ética, pela qual se julga conforme categorias ideais previamente definidas como culpadas ou inocentes, não de acordo com a realidade observável”. Desde então, tenho insistido muito nesse ponto: o politicamente correto – hoje também conhecido como movimento woke – não é simplesmente “chato”, como tantos críticos ingênuos têm-no caracterizado. O politicamente correto é mau.

Com efeito. Pouco mais de dois anos após aquela tentativa da revista Época de dourar a pílula do movimento woke, convocando para isso uma especialista prêt-à-porter dedicada a estigmatizar como extremistas de direita os críticos dessa ideologia, constatamos assombrados a que ponto chegou a pretensa preocupação “em não ofender os outros”. Circulou amplamente na última semana, por exemplo, a notícia de que escolas canadenses destruíram 5 mil livros infantis considerados racistas, dentre eles quadrinhos do Tintim, do Asterix e da Pocahontas. Como reportou a Rádio Canadá, os livros foram considerados ofensivos aos povos originários do país, sendo removidos das bibliotecas de 30 escolas administradas pelo Conselho Escolar Católico de Providence. Segundo a reportagem, uma cerimônia de “purificação pelas chamas” chegou a ser realizada para queimar cerca de 30 obras, sendo que as cinzas serviram de fertilizante para o plantio de uma árvore. “Enterramos as cinzas do racismo, da discriminação e dos estereótipos, na esperança de crescermos em um país inclusivo, onde todos possam viver com prosperidade e segurança”, dizia um vídeo-propaganda enviado aos alunos.

Em suma, de uma “linguagem que usamos e aos cuidados que temos quando falamos para não ofender ninguém” – como suavizou a especialista de Harvard, ela própria uma ideóloga do movimento woke – passamos a uma prática digna da queima de livros (Bücherverbrennung) promovida pelos nazistas em 1933, ou das cenas de Fahrenheit 451, a famosa distopia filmada por François Truffaut com base na obra de Ray Bradbury. Para quem acompanha atentamente a origem e a evolução do politicamente correto, nada disso surpreende. Afinal, tudo o que uma mentalidade totalitária, fanática e patologicamente moralista pode produzir é violência e destruição – em suma: terrorismo.

O politicamente correto – hoje também conhecido como movimento woke – não é simplesmente “chato”, como tantos críticos ingênuos têm-no caracterizado. O politicamente correto é mau

Sim, terrorismo. Nesse sentido, é altamente simbólico que o ato inaugural do século 21, o século da cultura woke, tenha sido, da perspectiva dos psicopatas que o executaram, uma “purificação pelas chamas”. Afinal, o atentado ao World Trade Center foi cometido por um grupo que, de maneira até então inédita, misturava elementos tradicionais do fundamentalismo islâmico com uma retórica oriunda justamente da política identitária e vitimista da contracultura ocidental. As chamas das Torres Gêmeas foram acendidas de modo a purificar o mundo dos “infiéis”.

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É o que mostra o jornalista britânico Brendan O’Neill numa de suas mais recentes colunas no portal Spiked, do qual também é editor-chefe. Intitulado “Quando a política de vitimização se tornou violenta”, o artigo sugere que o 11 de Setembro foi um ato de identitarismo apocalíptico. Nas palavras de O’Neill: “Em muitos aspectos, Bin Laden foi tanto um produto do Ocidente, e em particular de sua política de queixas, quanto seu mais temido inimigo terrorista. Seu reinado de terror pode ser visto como uma manifestação violenta do que desde então passou a ser conhecido como wokeness”.

Embora possa soar excêntrica ao público acostumado a se informar exclusivamente pela velha imprensa – formada, em grande parte, por entusiastas do movimento woke –, a provocativa tese condiz com a visão de alguns dos melhores estudiosos contemporâneos do islamismo revolucionário. É o que já mostrei aqui na Gazeta em artigo intitulado “Com quem falam os terroristas”, no qual escrevi: “Para se compreender a lógica do terror, é preciso abandonar a cosmovisão iluminista e o seu pendor para a exotização. Nada mais equivocado, por exemplo, do que a opinião corrente segundo a qual os terroristas são criaturas primitivas, egressas da Idade da Pedra, cegas e brutalizadas por concepções de mundo ‘medievais’ (adjetivo usado pejorativamente por dez entre dez jornalistas contemporâneos)... Conforme têm mostrado alguns estudiosos do terrorismo contemporâneo – como André Glucksmann, John Gray, Paul Berman, Barry Cooper, entre outros –, o movimento jihadista, antes que consequência direta de alguma espécie de ‘mentalidade primitiva’, é precisamente o contrário: um subproduto da modernidade ocidental, do Iluminismo e do Romantismo”.

O que torna o argumento de O’Neill particularmente interessante é a associação que faz de Bin Laden e a Al-Qaeda com a expressão mais atual daquela modernidade, justamente, o identitarismo vitimista da cultura woke. Segundo ele: “A Al-Qaeda, e Bin Laden em particular, eram seguidores ávidos dos modismos e do pensamento dos formadores de opinião ocidentais, particularmente os radicais e esquerdistas. É claro que os discursos de Bin Laden foram temperados com pensamentos de ideólogos islâmicos e líderes da Irmandade Muçulmana. Mas essas declarações aparentemente religiosas estavam estranhamente ao lado de citações de Robert Fisk e Noam Chomsky, um abraço febril das teorias da conspiração ocidentais, preocupações com a mudança climática e um ressentimento contra as ‘grandes mídias’ e as corporações ‘sugadoras de sangue’. Bin Laden era um reciclador ideológico, sempre em busca da preocupação woke da moda, por meio da qual manifestava os seus ‘sentimentos intensamente pessoais’, seu desejo dar voz ou violência à cultura de ressentimento de seu movimento, de maneira mais adequada e impactante”.

“Em muitos aspectos, Bin Laden foi tanto um produto do Ocidente, e em particular de sua política de queixas, quanto seu mais temido inimigo terrorista. Seu reinado de terror pode ser visto como uma manifestação violenta do que desde então passou a ser conhecido como wokeness.”

Brendan O'Neill, jornalista britânico

Citando o intelectual indo-canadense Faisal Devji, O’Neill mostra que a Al-Qaeda e outros movimentos modernos compartilham uma visão de mundo pós-nacional, uma abordagem autoconscientemente globalista: “As questões que os preocupam são estritamente globais. Elas não podem ser resolvidas por soluções em nível nacional. Em comum com movimentos globais como o ambientalismo, a Al-Qaeda não tinha nenhum programa político coerente, diz Devji... A tentação da perspectiva verde para Bin Laden parece claramente consistir naquilo que o ambientalismo fundamentalmente facilita: uma expressão de desdém pela sociedade contemporânea, especialmente pela sociedade industrializada. Se Bin Laden era antiocidental, o que sem dúvida ele era, sua visão parece ter sido moldada tanto pela tradicional hostilidade islâmica contra o Ocidente quanto pelo antiocidentalismo inerente à visão de mundo woke”.

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Um dos pontos mais curiosos do artigo de O’Neill é precisamente a análise sobre o ambientalismo de Bin Laden, uma espécie de Greta Thunberg avant la lettre. Em 2002, por exemplo, o terrorista repreendeu os EUA por – how dare you? – “destruir a natureza com os seus gases e dejetos industriais”, e criticou George W. Bush pela recusa de assinar o Protocolo de Kyoto. Em 2007, declarou, quase como um leitor regular do The Guardian ou de O Globo: “Toda a humanidade está em risco graças ao aquecimento global resultante das emissões de carbono das fábricas das grandes corporações”. Em 2009, suplicou, tal qual um Al Gore ou um ativista do Greenpeace: “O mundo deve reunir esforços na tentativa de reduzir a emissão de gases”.

O terror, seja físico ou meramente simbólico, é o método woke por excelência. Não há limites para quem se coloca na posição de purificar a humanidade de seus pecados

Ora, a ironia de um assassino em massa alegando preocupação em salvar o planeta e a humanidade não é mais macabra que a de incendiários de livros utilizando as suas cinzas para plantar uma árvore. Ambas as atitudes estão radicadas no mesmo tipo de mentalidade justiceira e revolucionária, tão característica do nosso tempo, em que a cultura woke globalizada domina todos os ambientes sociais, das universidades às grandes empresas, do jornalismo à publicidade, dos parlamentos aos tribunais, instituições que se tornaram verdadeiras incubadoras de salvadores – ou purificadores – do mundo, imbuídos da missão de cancelar os “infiéis”.

Eis por que, 20 anos depois do 11 de Setembro, a conclusão de O’Neill pareça tão acertada: “O terrorismo islâmico surge como uma manifestação violenta da cultura da vitimização. Parece-me uma função, ou pelo menos um produto, da ideologia do multiculturalismo, do próprio cultivo ocidental do separatismo religioso e étnico e do convite ao ódio antiocidental que o multiculturalismo implicitamente faz a certas comunidades... O niilismo islâmico é uma espécie de política de identidade nesse sentido. É o identitarismo que se tornou apocalipticamente violento. É a autoaversão do Ocidente voltada contra o Ocidente, de forma sangrenta”.

A ironia de um assassino em massa alegando preocupação em salvar o planeta e a humanidade não é mais macabra que a de incendiários de livros utilizando as suas cinzas para plantar uma árvore

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O terror, seja físico ou meramente simbólico, é o método woke por excelência. Não há limites para quem se coloca na posição de purificar a humanidade de seus pecados. Como escreveu C. S. Lewis em Deus no banco dos réus: “De todas as tiranias, a tirania exercida com sinceridade pelo bem de suas vítimas pode ser a mais opressiva. Talvez seja melhor viver sob o domínio de barões ladrões do que sob o domínio de homens onipotentes que se intrometem na moral alheia. A crueldade do barão ladrão pode, por vezes, cessar; sua cobiça pode, em algum momento, ser saciada. Aqueles que nos atormentam pelo nosso próprio bem, entretanto, nos atormentam sem parar, pois o fazem com a aprovação da própria consciência”.

Por fim, resta que a fronteira entre o físico e o simbólico é sempre tênue. O cancelado virtual de hoje converte-se facilmente na vítima real do próximo assassinato em massa. Para lembrar da célebre previsão de Heinrich Heine: “Onde queimam livros, também acabam por queimar pessoas”.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]