“Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: bonitos por fora, mas por dentro estão cheios de ossos e de todo tipo de imundície.
Assim são vocês: por fora parecem justos ao povo, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e maldade” (Mt,23: 27-28)
Em No Caminho de Swann, primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, Proust tece as seguintes considerações sobre a bondade:
“Quando tive mais tarde ocasião de encontrar, no curso da vida, em conventos, por exemplo, encarnações verdadeiramente santas da caridade ativa, tinham geralmente um ar alegre, positivo, indiferente e brusco de cirurgião apressado, essa fisionomia em que não se lê nenhuma comiseração, nenhum enternecimento diante da dor humana, nenhum temor de feri-la, e que é a fisionomia sem doçura, a fisionomia antipática e sublime da verdadeira bondade”.
Há aí evidentes ecos bíblicos. O trecho faz recordar, por exemplo, a passagem dos Evangelhos em que Jesus Cristo trata da verdadeira caridade, também ela discreta, sem comiseração, sem doçura:
“Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte não tereis galardão junto de vosso Pai Celeste. Quando, pois, deres esmola, não toques trombetas diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa. Tu, porém, ao dares a esmola, ignore a tua esquerda o que faz a tua direita, para que a tua esmola fique em segredo; e teu Pai, que vê em segredo, recompensar-te-á" (Mt,6: 1-4).
Nada mais distante do que se passa no Brasil de nossos dias. Vivemos uma era da “bondade” escandalosa, uma “bondade” autocomiserada, narcísica e vaidosa de si. A fisionomia da “bondade” brasileira é hoje adocicada e enjoativa. Não exibe a ágil e prosaica indiferença descrita por Proust, senão o peso solene de quem vive todo o tempo mirando-se no espelho da aprovação alheia. Temos uma “bondade” acusatória. Sou bom, logo, tudo me é permitido.
Que se dê uma espiada nas redes sociais e as faces da “bondade” artificial lá estarão, como máscaras grotescas, carrancas afetadas e cabotinas, destilando o seu pervertido senso moral e o amor de dois tostões pelos oprimidos do mundo. Censura-se por “bondade”, difama-se por “bondade”, persegue-se por “bondade”... O rosto da “bondade” brasileira é disforme e pavoroso, como o de Freddy Krueger.
Os monopolistas da “bondade” – infestados no mundo político, na grande mídia, nas agências de esquerdagem de fatos (left-checking) e nas Big Techs – determinam as informações e as opiniões permitidas. Há opiniões e informações “verdadeiras”, e delas não se escapa. São elas: o aborto é um direito humano inalienável das mulheres; a Igreja Católica é nazista; há excesso de democracia na Venezuela; ditaduras de esquerda são essencialmente morais; vítimas de latrocínio são culpadas porque ostentam demais; homens são estupradores em potencial; negros podem discriminar brancos por conta da dívida histórica; policiais militares são racistas e fascistas; Bolsonaro é um ditador; devemos todos ficar em casa, menos eles etc.
Todas as opiniões acima, entre outras, foram expressas por personalidades que, no Brasil, se autodenominam “progressistas” – termo relativo a pessoas cuja “bondade” a priori lhes confere um salvo-conduto para fazer qualquer coisa contra os “maus” – que seriam, pela lógica, os “regressistas” (ou reacionários). O termo “progressista” aplica-se não apenas a pessoas, mas também a uma infinidade de coisas. Assim, a bicicleta é um meio de transporte progressista, opondo-se ao carro, que é regressista. Ciclistas – ou, segundo a mentalidade politicamente correta, talvez devêssemos chamar de cicloafetivos – são progressistas; motoristas de carros, regressistas. Alimentos também são classificados como progressistas ou regressistas, sendo a salada de broto de bambu com quinoa essencialmente progressista, e a carne vermelha, odiosamente regressista. Maconha é progressista; tabaco, regressista. Vacina chinesa é progressista; hidroxicloroquina, regressista; festinha em ilha privativa é progressista; missa, regressista. E assim por diante. Sempre adiante.
Os progressistas reconhecem-se pelo olhar e pelo lirismo em comum. Conquanto, vez ou outra, deixem verter uma lágrima ao som de uma canção do Chico, que os faz lembrar – mesmo os que à época não haviam nascido – os terríveis anos de chumbo em que, bem, jornalistas eram presos por emitir opiniões. Eles logo recobram a fortaleza e eterna indignação:
– Calem o “blogueiro bolsonarista”! Expulsem os “fascistas” das redes sociais! Desmonetizem os “negacionistas”. Eles não são dos nossos... Os nossos são bons, e trazem a bondade na fisionomia beata do perfil da rede social, na indignação coletiva que inflama os olhares dos ungidos. E que toquem as trombetas diante de nós, e que elas sejam um sinal de pavor para os reacionários em fuga, esmagados e vencidos sob o peso da nossa bondade.
A mais recente manifestação da “bondade” de rede social é da lavra de Felipe Neto, menino-foca, líder intelectual da esquerda brasileira, garoto-propaganda do combate às “fake news” e guru de ministro do STF. Pego no flagra por um repórter amador em pelada de fim de ano, sem máscara e sem respeitar o isolamento social (que ele passou os últimos meses pregando de maneira histérica), a criatura mimética por excelência – cuja mera existência depende inteiramente da aprovação alheia – correu ao Twitter para pedir perdão e dizer que errou.
É claro que, como todo “justo” de rede social, o sujeito tinha que se promover um pouquinho durante o pretenso mea culpa: “Errei. Decidi jogar um último futebol do ano. Como goleiro, indo e voltando de máscara, sem contato com ninguém e passando álcool em tudo. Ainda assim, é um erro. Não cometerei novamente até a vacina. Peço perdão pelo mau exemplo”.
Também no Twitter, o jornalista Rica Perrone, que costuma jogar pelada no campinho ao lado, tratou de desmentir o falso moralista em versão teen. “Você jogou muitas vezes na pandemia. Eu vi... Seja homem, irmão”. Para confirmar o que disse, Perrone postou a filmagem de um amigo e fotos de Felipe Neto aglomerando alegremente sobre a grama sintética. Mas, como Perrone mexeu com um dos “bons”, o vídeo foi estigmatizado como “discurso de ódio” e sumariamente censurado no Instagram.
Em suma: ao contrário da bondade autêntica, tão bem descrita por Proust e pelo evangelista, a “bondade” dos quarentenistas gourmet – também conhecidos como ultra-fique-em-casistas – é espalhafatosa, sentimentalista e orgulhosa. Toca trombetas diante de si, imita focas e tem o cabelo cor de rosa-choque.
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