“Em nome do nosso amanhã, queimemos Rafael,
Destruamos os museus, esmaguemos as flores da arte”.
(Vladimir Kirillov, poeta soviético)
“E as árvores mortas já não mais te abrigam, nem te consola
O canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca”.
(T. S. Eliot, A Terra Desolada)
Estive em Brasília recentemente. Ao longo da vida, essa foi minha terceira viagem à capital do país. Em todas elas, experimentei a mesma sensação de incômodo com a arquitetura local. A organização em quadras, o traçado do Plano Piloto, os prédios, os monumentos, todas as formas, enfim, manifestam a ideia de um poder artificial e não representativo, que, brotando da caixola de um punhado de cavalgaduras com pendor demiúrgico, se impõe de cima para baixo, de maneira pouco orgânica e nada espontânea. A arquitetura de Brasília é a expressão perfeita da elite política brasileira, autoritária e alheia à vida real. É uma arquitetura talhada para governos, não para pessoas.
Enquanto contemplava a desolação estética pela janela do carro, amaldiçoando Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, autores daquela e de outras barbáries urbanísticas, não pude deixar de lembrar de um artigo de Theodore Dalrymple a respeito de Le Corbusier, guru de Costa e Niemeyer. Intitulado “O Arquiteto Totalitário: A dolorosa influência de Le Corbusier”, nele o autor sugere uma correlação entre a arquitetura modernista e a imaginação totalitária, notadamente a de matriz soviética.
Le Corbusier foi um dos expoentes máximos da húbris revolucionária, e o seu completo desprezo pelo passado beirava o caricatural. Para Dalrymple, ele foi para a arquitetura o que Pol Pot foi para a reforma social. Tal qual o genocida cambojano, o arquiteto franco-suíço gostava de fazer tabula rasa das cidades em que intervinha, começando tudo do zero como se, antes dele, nada de valor tivesse sido criado. Suas gigantescas torres de concreto expressavam a pulsão revolucionária de anular séculos de arquitetura e de história. Numa exposição sobre o seu Plano Voisin de 1925 – cujo objetivo era adaptar arquitetonicamente Paris aos “tempos modernos” –, um filme exibia-o debruçado sobre um mapa da Cidade Luz, que cobria com os rabiscos brutais de seu pastel preto, “com todo o entusiasmo de um marechal Harris planejando o bombardeio de uma cidade germânica durante a Segunda Guerra”, nas palavras de Dalrymple.
Segundo o psiquiatra inglês, também os escritos de Le Corbusier, talhados numa linguagem tortuosa e imperativa, revelam a sua mentalidade invariavelmente totalitária. Em Por uma Nova Arquitetura (1924), seu livro mais influente, cujo título pretensioso trai todo o desprezo modernista pelo passado, lemos: “Devemos criar um estado de espírito de produção em massa: Um estado de espírito para a construção em massa de moradia. Um estado de espírito para habitar as construções em massa. Um estado de espírito para conceber moradias de massa”.
Significativamente, as casas dos trabalhadores eram chamadas por Le Corbusier de “máquinas de viver”, justo como aquelas que, cada vez mais deprimido, eu via pela janela do carro. Com efeito, trata-se da mesma visão arquitetônica de Niemeyer e Costa, com a única diferença que, à dureza e impessoalidade do concreto armado, os brasileiros acrescentaram pitadas dos nossos estereótipos culturais, fundindo Le Corbusier com Sargentelli: a malemolência brasileira, o balanço das ondas do mar de Copacabana, o contorno das montanhas e as curvas de mulatas feitas apenas de curvas, tanto quanto de displicentes riscos na prancheta é feito o “mundo mais justo” anunciado pelos revolucionários modernistas.
Na visão arquitetônica de Le Corbusier, e também na de nossos lecorbusianos amolecidos pelos trópicos, como diria Gilberto Freyre, discernimos uma antropologia filosófica caracteristicamente soviética, em que a individualidade humana desaparece para dar lugar ao homem-massa, peça minúscula e virtualmente descartável de um gigantesco maquinário histórico e político. Esse tema aparece de modo bastante explícito na literatura futurista russa do começo do século 20, que retratava o Homo sovieticus como uma espécie de Prometeu da idade da máquina. Concebido como o oposto do indivíduo burguês, esse ser racional e disciplinado devia agir apenas em função dos interesses da comunidade, como uma célula num organismo vivo.
O filósofo bolchevique Alexander Bogdanov projetou aquele novo homem em seus dois livros de ficção científica, Estrela Vermelha (1908) e Engenheiro Menni (1913), cujo cenário é o planeta Marte em algum momento do século 23. Na sociedade “alienígena-marxista” futura, todo vestígio de individualidade seria eliminado. O trabalho viria a ser automatizado, feito por computadores. Todas as pessoas usariam roupas unissex, e habitariam moradias rigorosamente idênticas umas às outras. As crianças haveriam de ser educadas em colônias especiais. As fronteiras nacionais desapareceriam, bem como os diferentes idiomas, já que todos falariam uma mesma língua franca.
Foi com esse espírito futurista que, após a revolução de 1917, Bogdanov passou a chefiar o Proletkult, instituto criado para desenvolver a cultura proletária. A intelligentsia que o dirigia tratava os proletários de modo paternalista e arrogante. Tendo-os por cultural e artisticamente atrasados, sua missão era conscientizá-los, transmitindo-lhes a fórceps a nova sensibilidade ética e estética requerida para a sociedade do futuro. A “cultura proletária” que pretendia impor de maneira artificial, todavia, pouco tinha a ver com os gostos reais do trabalhador, cujo lazer principal eram a vodca e o vaudeville. Os gostos artísticos de operários e camponeses eram conservadores, e a arte de vanguarda, nominalmente destinada a libertá-los, costumava ser recebida com perplexidade, quando não com escândalo. Certa feita, por exemplo, ao decorar as ruas de Vitebsk para o primeiro aniversário do golpe bolchevique, o pintor Marc Chagall foi interpelado por transeuntes: “A vaca é verde? A casa está voando? Pode nos explicar a razão dessas coisas?” Em termos de sensibilidade estética, para o desespero da elite cultural revolucionária, o operário mimetizava o burguês.
O mesmo se passava em termos de arquitetura, e não apenas na Rússia, mas especialmente na moderníssima Alemanha, e onde mais quer que a febre vanguardista se fizesse sentir. Em seu livro From Bauhaus to Our House, uma crítica mordaz à ideologia da arquitetura modernista, Tom Wolfe esmiúça o problema. Uma das características dessa arquitetura, expressa nos manifestos fundadores de escolas como a alemã Bauhaus ou a holandesa De Stijl, era uma recusa radical e dogmática de tudo o que fosse “burguês”. Saíam cornijas, arquitraves e capitéis; entravam linhas e ângulos retos. Saíam colunas, frontões e cores; entravam o branco, o bege, o cinza, o preto… E só. O interior não tinha coroas e grinaldas. Os aposentos deviam ser brancos e frios, livres de revestimentos, abóbodas, pilastras e ogivas, com plantas de assoalho aberto, a fim de extirpar da consciência a obsessão burguesa e individualista por privacidade. Os modernistas abominavam papéis de parede, cortinas, tapetes floridos, toalhinhas de crochê, bibelôs e cabeceiras de cama, tudo, enfim, que lembrasse aconchego e calidez. A ideologia modernista apregoava “a máxima função com o mínimo de forma”.
Com essa arquitetura anti-humana e excessivamente autoral, os arquitetos modernistas tinham dificuldade em conseguir clientela regular para os seus projetos. Daí que, não raro, dependessem de governos – usualmente socialistas – para ganhar a vida. Como mostra Wolfe, foi um tal governo, no caso a administração social-democrata da cidade de Stuttgart, que firmou com Le Corbusier um dos seus primeiros grandes contratos de trabalho. Em 1927, a prefeitura da cidade encarregara o arquiteto Mies van der Rohe (um dos fundadores da Bauhaus, ao lado de Walter Gropius) de organizar uma exposição de moradias para trabalhadores – a Weissenhofsiedlung. Van der Rohe convocou arquitetos e designers modernistas de vários países, entre eles Le Corbusier. Com terreno e materiais fornecidos pela prefeitura, foram construídas sobre uma colina na periferia da cidade 33 edificações permanentes, todas naquele árido estilo “antiburguês” descrito acima.
Os trabalhadores, é claro, detestaram aquele e outros projetos equivalentes. Como detestaram a música dodecafônica, a pintura não figurativa e a literatura futurista. Para eles, tudo o que a voga revolucionária tinha a oferecer era a total destruição do universo moral e estético no qual se sentiam em casa, em troca das promessas vãs de um futuro glorioso. Como ironizou Tom Wolfe: “Ah, e como reclamaram, de modo condizente com a sua natureza naquele estágio. Em Pessac, as pobres criaturas já haviam virado do avesso os cubos frios de Corbu [Le Corbusier], numa tentativa desesperada de torná-los mais aconchegantes e coloridos. Era compreensível. Como disse o próprio Corbu, eles deviam ser ‘reeducados’ para compreender a beleza da ‘Cidade Radiante’ do futuro [um projeto não concretizado do modernista franco-suíço]. Em matéria de gosto, os arquitetos agiam como os benfeitores culturais dos trabalhadores. Não havia por que consultá-los diretamente, uma vez que, como Gropius havia apontado, ainda eram ‘intelectualmente subdesenvolvidos’. Com efeito, aqui estava o grande apelo do socialismo para os arquitetos nos anos 1920. O socialismo era a resposta política, um grande sim dito aos argumentos ultrajantes e impossíveis da arquitetura moderna, para a qual o cliente devia permanecer calado. Sob o socialismo, o cliente era o trabalhador. Ah, o pobre diabo mal começara a sair da lama. Nesse ínterim, o arquiteto, o artista e o intelectual organizariam a sua vida por ele”.
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