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“A lei é o meu deus, e não reconheço outro” (Henri Maximin Isnard, deputado girondino)

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“Quando o Estado se pronuncia, a Igreja deve se calar” (Guillaume-Thomas Raynal, abade revolucionário)

O carnaval vem aí. Com ele, observa-se a reedição periódica de um costume bem brasileiro, deveras engraçado, que consiste na decisão de alguma figura pública (um jornalista, um acadêmico, um representante do Poder Judiciário) de se fantasiar de revolucionário francês e dar um piti anticlerical, sonhando acordado, antes que a Quarta-Feira de Cinzas o desperte, com o cumprimento pleno da máxima de Voltaire: Écrasez l’Infâme!

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A mais recente iniciativa partiu do Ministério Público do Rio de Janeiro, que, na figura do jovem e progressista promotor Pedro Rubim Fortes, resolveu ordenar a retirada dos oratórios instalados em praças públicas, bem como proibir a construção de novos, sob um pretexto conhecido: defender com unhas, dentes, plumas e paetês a laicidade do Estado, que o folião da vez crê ameaçada. Como sói acontecer nesses surtos extemporâneos de embriaguez iluminista, fetichiza-se a noção de “laicidade”, convertida num flatus vocis cujo único sentido é servir de veículo para o preconceito antirreligioso (e, mais particularmente, anticristão) do Robespierre de tanga.

Na França revolucionária, convém lembrar, mais de 8 mil católicos (entre sacerdotes e fiéis) foram chacinados antes que a história ensinasse esta lição: não há vazio religioso. Em substituição à velha religião cristã, cujos alicerces a propaganda anticlerical dos Philosophes já havia minado, o que surgiu não foi uma civilização laica, mas uma nova religião de Estado, muito bem descrita por Albert Mathiez, grande historiador da Revolução Francesa, e que, por marxista, não pode ser acusado de qualquer veleidade contrarrevolucionária. Em As Origens dos Cultos Revolucionários (1904), o autor manifesta o objetivo de demonstrar que, “pela sinceridade religiosa, pela exaltação mística, pela audácia criativa, os homens da Revolução não ficam nada a dever aos da Reforma, e que essas duas grandes crises, Revolução e Reforma, não são, uma social, outra religiosa, mas ambas sociais e religiosas ao mesmo tempo”.

Em sua lógica sacrificial, e na fusão que operou entre as esferas sagrada e profana (de que a Constituição Civil do Clero de 1790 foi a tradução normativa), a “religião civil” idealizada por Rousseau lembrava as da Antiguidade Clássica. Tais quais os deuses pagãos, os seus também se caracterizavam por um apetite voraz, que os litros e litros de sangue derramados em sacrifícios diários no altar de M. Guillotin não bastavam para saciar. Segundo o novo dogma, “o Estado é constituído como o guardião supremo da moral e da religião” – explica Mathiez. “E precisamente por isso, porque o Estado tem uma missão moral a cumprir, é que os filósofos se sentem confortáveis em subordinar-lhe as religiões e dotá-lo de um direito de censura sobre elas”.

Hoje, depois de dois séculos e meio em que viveu sob a égide da fé iluminista, e ainda como corolário do radical processo de descristianização por ela conduzido, a França submete-se mais uma vez a uma nova religião política, para a qual também não faz sentido qualquer separação entre o temporal e o espiritual (bem como entre a lei dos homens e a lei de Deus), e em que, de novo, o Estado se converte em tutor da moralidade pública. Sai a lâmina da guilhotina, entra a da cimitarra islâmica. Liberté, Egalité, Fraternité e Alahu-akbar!

Mas, se os revolucionários originais foram incapazes de a assimilar, decerto ninguém esperava que os nossos Marats e Dantons depois da chikungunya aprendessem esta lição em seus cursinhos de Direito, Jornalismo ou Sociologia: que a noção de laicidade tem origem religiosa. Que ela só faz sentido no interior de uma matriz civilizacional cristã. Que não existia antes – e que continua inexistindo fora – de uma tradição cultural que concebe a religião como uma esfera autônoma em face de outros domínios da existência (política, ciência, economia etc.), e, sobretudo, como uma questão privada, de escolha pessoal. Foi justo essa autonomia do religioso que escandalizou o mundo antigo, com os seus reis e imperadores divinizados, seus cultos oficiais da cidade. Foi por ela que os cristãos primitivos aceitaram o martírio, defendendo ao custo da própria vida aquele santuário de consciência, até então desconhecido, intocado pela autoridade terrena.

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A radicalidade dessa ruptura foi magistralmente descrita por Fustel de Coulanges, mestre de todos os historiadores franceses, no clássico A Cidade Antiga (1864): “A vitória do Cristianismo assinala o fim da sociedade antiga… Com o Cristianismo, não só o sentimento religioso se avivou, mas tomou ainda expressão mais elevada e menos material… O divino foi devidamente colocado fora e acima da natureza visível… A religião deixou de ser exterior; residiu sobretudo no pensamento do homem. A religião deixou de ser matéria; tornou-se espírito… O Cristianismo trouxe ainda outras inovações. Deixou de ser a religião doméstica de determinada família, a religião nacional de uma tal cidade ou raça. Não pertencia nem a uma casta, nem a uma corporação. Desde o início, chamou a si toda a humanidade… Havia nisso tudo algo de muito inovador. Porque, por toda a parte, na primeira idade da humanidade, se havia concebido a divindade como pertencendo especialmente a uma raça. Os judeus acreditavam no Deus dos judeus, os atenienses na Palas ateniense, os romanos no Júpiter capitolino… No que respeita ao governo do Estado, podemos dizer que o Cristianismo o transformou em essência, precisamente porque não se ocupou dele. Nos velhos tempos, a religião e o Estado formavam um todo… Jesus Cristo ensina que o seu reino não é deste mundo. Separa a religião do governo”.

Convicções da Gazeta do Povo: O Estado laico

Mais de um século depois, um outro grande intelectual francês, o medievalista Jacques Le Goff (um ateu em geral bastante crítico à Igreja Católica), admitiu em entrevista ao jornal argentino La Nación a origem cristã da noção de laicidade: “Não é preciso ser um crente fervoroso para falar bem da Igreja. Também sou um partidário convicto do laicismo: princípio admirável, estabelecido pelo próprio Jesus quando disse: ‘A César o que é de César, a Deus o que é de Deus’… Aqueles que falam em obscurantismo não compreenderam nada. Essa é uma ideia falsa, legado do Século das Luzes e dos românticos. A era moderna nasceu no medievo”.

Mas, para notar que a herança cultural cristã – essa mesma que o MP-RJ parece querer extirpar na base da canetada jurídica – é o grande sustentáculo do princípio da laicidade, não é preciso recuar no tempo. Basta compará-la com a outra grande tradição religiosa contemporânea já mencionada: o Islã, cujos fiéis representam mais de 20% da população mundial, somando mais de 1,5 bilhão de pessoas e dominando quase um terço do território do planeta. Não há, no mundo islâmico (como não havia no mundo pagão), uma divisão conceitual entre o temporal e o espiritual. O Islã é um sistema religioso total, e a lei sagrada (corânica) vale também para o mundo dos homens, tanto no nível comunitário quanto no individual. Incide sobre a vida privada e familiar, sobre a prece, os rituais, as normas de etiqueta e de higiene, os negócios, a legislação e a política. A bem da verdade, seria impreciso falar em “religião” nesse contexto, precisamente porque não há nada aí que não seja religioso.

Como observa o islamólogo Bernard Lewis em A Linguagem Política do Islã (1988): “Quando nós, no Ocidente, usamos as palavras ‘Islã’ e ‘islâmico’, tendemos a cometer um erro natural, pressupondo que religião tem para os muçulmanos o mesmo sentido que para o mundo ocidental, a saber: um compartimento da vida reservado a certas questões, separado, ou ao menos separável, de outros compartimentos equivalentes. Não é assim que funciona no islamismo… A distinção entre igreja e Estado, tão profundamente enraizada na cristandade, simplesmente não existe no Islã. No árabe clássico, bem como em outros idiomas que dele herdaram o seu vocabulário político e intelectual, não há um par de termos que corresponda a espiritual e temporal, leigo e eclesiástico, ou religioso e secular… Não há aí algum equivalente à palavra laicidade, uma expressão sem sentido no contexto islâmico”.

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Percebe-se facilmente, pois, que a separação cristã entre religião e política (ou, para usarmos a dicotomia de Santo Agostinho, entre a cidade de Deus e a cidade dos homens) constitui um fenômeno sui generis tanto na escala histórica quanto, por assim dizer, na geográfica. O que é mais difícil de lembrar, por mais contraintuitivo, é o fato de que uma parcela importante do pensamento ocidental moderno também se escandalizou com a ideia (hoje tão banalizada quanto mal compreendida), repudiando no Cristianismo justamente a sua capacidade de relativizar o poder político mundano e encará-lo sub specie aeternitatis – o que, para muitos, representava uma perigosa força de insubmissão e ruptura social. Quando se tem por objetivo dar o todo a César, inclusive a parte que cabe a Deus, não surpreende que a filosofia política do Cristianismo surja mesmo como uma pedra no sapato.

O primeiro pensador a desafiar formalmente a doutrina agostiniana – que dominara por séculos a imaginação política do Ocidente – foi Thomas Hobbes. Em Do Cidadão (1642), por exemplo, já encontramos este alerta sobre os riscos que a fé cristã representa para a autoridade política: “O que pode ser mais pernicioso a qualquer Estado [commonwealth] do que ter seus cidadãos impedidos de obedecerem a seus príncipes por medo de castigos eternos?”. Mas é no Leviatã (1651) que o filósofo confronta Agostinho de maneira mais direta: “Governo espiritual e temporal são apenas palavras trazidas ao mundo para confundir os homens, enganando-os quanto a seu soberano legítimo… Nesta vida, o único governo existente, seja ele do Estado ou da religião, é o governo temporal”.

Abole-se assim, de uma só tacada, a ideia de duas cidades, fazendo da cidade dos homens a única legítima, e recuperando do mundo pagão um conceito que Agostinho (ver, por exemplo, o Livro 6 de A Cidade de Deus) muito se empenhara por impugnar: o de teologia civil, compreendida como força de comunhão espiritual e coesão social entre os cidadãos.

Na esteira de Hobbes, e reconhecendo a sua dívida intelectual para com o colega inglês, Rousseau – o papa da religião civil – escreve mais de um século depois em O Contrato Social (1762): “De todos os autores cristãos, o filósofo Hobbes é o único a ter enxergado a doença e o remédio, o único a ter ousado propor a união das duas cabeças da águia, e de tudo remeter à unidade política, sem a qual nenhum Estado ou governo será jamais bem constituído”. Na mesma obra, e referindo-se nominalmente ao cristianismo, observa: “Essa religião não mantém qualquer relação particular com o corpo político… Longe de ligar os corações dos cidadãos ao Estado, desprende-os, como de todas as coisas da terra. Não conheço nada mais contrário ao espírito social”. E, tal qual um Torquemada do Iluminismo, não se furta a pontificar sobre o tratamento devido aos apóstatas da nova religião de Estado, recomendando, contra o pecado capital da desobediência civil, a pena correspondente: “Conquanto não se possa obrigar ninguém a crer, pode-se banir do Estado quem neles não acreditar; bani-lo não como ímpio, mas como insociável, incapaz de amar sinceramente as leis e a justiça… E se alguém, depois de haver reconhecido publicamente esses dogmas, comporta-se como se não os aceitasse, que seja punido de morte, pois cometeu o maior dos crimes: ter mentido perante as leis”.

O debate público brasileiro acerca da laicidade deriva, em geral, dessa tradição cultural do Iluminismo francês. Logo, ao contrário das discussões herdadas de seu correlato britânico (onde se destacaram nomes como John Locke e Adam Smith), e apesar dos adornos retóricos de que se reveste, zela menos pelas liberdades individuais e pela tolerância religiosa do que pela autoridade política do Estado, entendido, à moda de Hegel, como ente metafísico.

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Tem razão Mircea Eliade (1907-1986) ao afirmar: “A maioria dos homens ‘sem religião’ partilha ainda das pseudorreligiões e mitologias degradadas”. Que o leitor não duvide, portanto: quando um dos nossos Rousseaus de havaianas resolve coibir uma manifestação espontânea de religiosidade popular (lembrando que, por exemplo, só o oratório da Praça Milton Campos, no Leblon, contou com o respaldo de mais de mil assinaturas em abaixo-assinado), a palavra laicidade sai de sua boca como letra morta. Em lugar de defendê-la, o que faz é agir como pároco da religião do Estado, de modo a garantir que nenhuma fé concorrente – e em especial aquela que, segundo o Rousseau original, desprende do Estado os corações dos cidadãos –lhe dispute a lealdade. Não percebe o tolo que, ao fazê-lo, serra o galho civilizacional sobre o qual está sentado.