“Aquilo que ontem era ainda religião, hoje já não é mais; e aquilo que hoje é ateísmo, amanhã será religião” (Ludwig Feuerbach, A Essência do Cristianismo)
Como eu já imaginava que pudesse ocorrer, o artigo da semana passada provocou reações curiosas de alguns leitores ateus, que, visivelmente melindrados, lançaram-se numa defesa orgulhosa e apaixonada de sua (falta de) crença, alegadamente ofendida por este colunista. Ressentidos diante do que imaginaram ser um ataque frontal às suas convicções mais íntimas, não notaram os críticos que, no texto, o ateísmo jamais é encarado como cosmovisão pessoal desse ou daquele indivíduo – assunto sobre o qual não tenho qualquer interesse –, mas como um movimento político e militante em prol de um mundo melhor, no qual a ciência substituiria a religião na busca humana por sentido. É apenas enquanto movimento político de caráter utópico, milenarista e gnóstico – e explicarei melhor essa sua natureza neste artigo – que o tema pode vir a se tornar objeto de interesse do analista político, que, em relação aos ateus tomados individual e isoladamente, tudo o que pode fazer é rezar por suas almas.
Foi Albert Camus um dos primeiros a notar que o ateísmo ocidental (judaico-cristão) tem um sentido fortemente edipiano. Trata-se de uma “revolta contra o pai” e da tentativa de ocupar o seu lugar. Essa característica ressalta quando a comparamos com o ateísmo no universo islâmico (ver, sobre o assunto, este livro do intelectual indiano Ibn Warraq). Ao contrário do que se passa no Ocidente, o ateu muçulmano não se rebela contra o Pai porque, como se sabe, Alá não é concebido como Pai. Mais do que com uma figura superior de autoridade, o ateu muçulmano rompe fundamentalmente com a sua própria comunidade, no que poderíamos chamar de ateísmo anárquico. Ao romper com a comunidade de fiéis (ummah), o ateu islâmico experimenta uma sensação de desorientação e vazio.
Não há semelhante vazio no ateísmo judaico-cristão, um ateísmo essencialmente hierárquico. Ao romper relações com Deus, o ateu ocidental não tem alternativa a não ser a de tomar-lhe o lugar na hierarquia. Trata-se de uma experiência existencial de ascensão e conquista revolucionária, da qual a imagem de Prometeu subindo ao Olimpo para roubar o fogo dos deuses é o maior emblema. Incapaz de escapar por completo da influência “paterna”, o ateu ocidental acaba, necessariamente, produzindo algum tipo de Ersatzreligion, uma religião substituta. “O homem acredita quer num deus, quer num ídolo. Não há uma terceira opção” – dizia o filósofo Max Scheler. Não por acaso, muitos ateus judaico-cristãos recorreram a um semantismo e a uma escatologia propriamente religiosos, apelando para noções como a de salvação e conversão, e projetando uma utopia na qual se consumaria o destino prometeico de substituir os deuses.
O neoateísmo é uma versão contemporânea do milenarismo – no caso, um milenarismo científico
Como escreve o teólogo Thomas Molnar: “De tempos em tempos, espalha-se entre os homens a crença de que é possível construir uma sociedade ideal. Soa, então, o alarme para que todos se reúnam e a edifiquem – a cidade de Deus na Terra… O sonho – utopia – conduz à negação de Deus e à autodivinização”. Ainda segundo Molnar, a utopia é sempre precedida por uma escandalosa constatação da existência do mal, e pela sensação de ansiedade diante de um cataclismo iminente. Mais do que num sentido moral, o que escandaliza os utópicos é o mal em sua dimensão ontológica, a percepção de que o mundo é cheio de falhas e imperfeições.
Certos sistemas utópicos procuram explicar esse estado de coisas pela introdução de um princípio dualista-maniqueísta característico do gnosticismo antigo: haveria, ao lado de um Deus benevolente e um mundo bom, um Deus malévolo e um mundo cruel. Outros sistemas utópicos, ao contrário, não justapõem os dois mundos, o bom e o cruel. Em vez disso, consideram-nos como consecutivos no tempo, num processo de historicização da gnose característico dos movimentos milenaristas. Como sua marca registrada, temos aí o uso constante de construções verbais tais como “é chegada a hora”, “o momento se aproxima” ou “não há mais como esperar”, que denotam um forte senso de inadiabilidade, ou seja, a sensação de estar presenciando o limiar de uma nova era. O homem utópico – gnóstico ou milenarista – é todo aquele que assume como sua a tarefa de fazer o anúncio para a humanidade.
O Iluminismo francês, e dois de seus filhos, o positivismo e o marxismo, exemplificam bem o tipo de sistema utópico que projeta o dualismo gnóstico no eixo temporal. Em comum, têm o fato de anunciarem um futuro no qual as imperfeições da Criação serão corrigidas, não pela atuação da graça, mas via conhecimento (gnosis) e ação (práxis) humanos. Como escreveu o filósofo Hans Jonas em obra clássica sobre o gnosticismo antigo: “Em seu estado não redimido, o pneuma (espírito), imerso na alma e na carne, é inconsciente de si, obtuso, sonâmbulo ou intoxicado pelo veneno do mundo: em suma, ignorante. O seu despertar e libertação se dá mediante o conhecimento”.
Como descendente direto daqueles três movimentos intelectuais (em especial dos dois primeiros), o neoateísmo é uma versão contemporânea do milenarismo – no caso, um milenarismo científico. Enquanto movimento político-revolucionário de caráter utópico, ele é, como diria o filósofo político John Gray, mais um capítulo na história da religião, mais uma das muitas variações da percepção gnóstica de mundo. Como ocorreu com todos os milenarismos antes dele, o movimento também ganhou força num momento histórico de tonalidades catastróficas. Todos hão de lembrar que o terceiro milênio da nossa era foi inaugurado por um evento de dimensões apocalípticas, trazendo consigo, como de costume, todo um cortejo de revoltas, expectativas, angústias e novas utopias.
O neoateísmo é histrionicamente proselitista, característica que levou muitos de seus críticos a caracterizá-lo ora como um “ateísmo militante”, ora como um “fundamentalismo ateísta”
Como vimos no artigo da semana passada, o 11 de Setembro foi, para os neoateístas, um momento decisivo no qual a autoconfiança da cultura secularista pareceu ruir junto com as Torres Gêmeas. Mas o atentado em Manhattan foi apenas o símbolo condensado de uma percepção difusa de um Armageddon pós-moderno de grandes proporções. Nas palavras do físico neoateísta Victor Stenger: “Ainda pior do que o 11 de Setembro – se isso é possível – é o fato de que a crença em velhos mitos se somou a outras forças negativas em nossa sociedade, impedindo a maior parte do mundo de avançar cientificamente, economicamente e socialmente, numa época em que um rápido avanço nessas e em outras áreas é absolutamente essencial para a sobrevivência da humanidade. Encontramo-nos agora a apenas uma ou duas gerações de problemas catastróficos já antecipados pelo aquecimento global, a poluição e a superpopulação: inundações em regiões costeiras, graves mudanças climáticas, epidemias causadas por superpopulação, e fome para grande parte da humanidade. Esses desastres deverão gerar um conflito mundial numa escala maior que a das grandes guerras do século 20, com armas nucleares nas mãos de nações instáveis e grupos terroristas”.
Esse sentimento de urgência é uma característica marcante do estilo retórico utópico em geral, e neoateísta em particular. Ele é especialmente manifesto nos escritos apocalípticos de Sam Harris, pai fundador do movimento, sujeito para quem o 11 de Setembro sinalizou o momento crítico a partir do qual os ateus deviam abandonar a moderação e a tolerância para com as religiões. Em sua visão, ali chegara a hora de se fazer uma escolha irreconciliável entre, de um lado, a ciência e a razão e, do outro, a religião e a credulidade; uma escolha fundamental, a única que deveria ser levada em conta na constituição de uma “sociedade civil em escala global” – projeto declarado do neurocientista sósia do ator Ben Stiller. Em suas palavras: “É por demais evidente que chegamos num momento da história em que a sociedade civil, numa escala global, não é apenas uma ideia simpática, mas uma necessidade essencial para a manutenção da civilização”. E a solução por ele proposta é simples: “Precisamos de um governo mundial”.
Num livro em que analisam os recursos estilísticos dos neoateístas, os críticos literários Arthur Bradley e Andrew Tate sugerem que, nesses autores, a preocupação formal não revela apenas uma tentativa de adorno estilístico. Ao contrário, a estética neoateísta ocupa o centro mesmo do projeto existencial do movimento, que consiste na tentativa de dotar a ciência e a razão de qualidades morais e, sobretudo, de beleza artística. A tentativa de estetizar a biologia evolucionista, por exemplo, de modo a torná-la atraente ao grande público, é especialmente notável na obra de Dawkins, que, nesse sentido, repete a velha fórmula positivista de substituir a religião tradicional pela ciência no papel de guia moral e espiritual da humanidade: “Uma compreensão adequada da magnificência do mundo real, mesmo sem jamais se transformar numa religião, é capaz de preencher o papel inspiracional historicamente – e inadequadamente – usurpado pela religião”.
Eis por que o neoateísmo é histrionicamente proselitista, característica que levou muitos de seus críticos a caracterizá-lo ora como um “ateísmo militante”, ora como um “fundamentalismo ateísta” e até mesmo um “ateísmo evangélico”, para o constrangimento de muitos outros intelectuais ateus e agnósticos. O filósofo evolucionista Michael Ruse, por exemplo, referiu-se nesses termos ao best-seller de Dawkins: “Deus, um delírio me fez ter vergonha de ser ateu”. E, numa longa matéria sobre o neoateísmo, intitulada significativamente “A igreja dos descrentes”, o jornalista ateu Gary Novak sugeriu que “o movimento ateísta não tem outra escolha que não a de espalhar agressivamente as boas novas. O evangelismo é um imperativo moral... A ironia do neoateísmo – esse ataque profético à profecia, esse extremismo contrário ao extremismo – é demais para mim”.
O projeto existencial do neoateísmo consiste na tentativa de dotar a ciência e a razão de qualidades morais e, sobretudo, de beleza artística
Chris Hedges, outro jornalista agnóstico, resumiu muito bem a essência do movimento: “A agenda dos neoateístas é perturbadora. Esses ateus defendem um sistema de crença tão intolerante, chauvinista e zelote quanto o dos fundamentalistas religiosos. Propõem uma via para a salvação coletiva e o progresso moral da humanidade por meio da ciência e da razão. O sonho utópico de uma sociedade perfeita e de um ser humano perfeito, a ideia de que caminhamos rumo a uma salvação coletiva, é uma das mais perigosas heranças da fé crista e do Iluminismo. Não é raro que, ao longo da história, os que acreditam na possibilidade dessa perfeição proponham o silenciamento ou a erradicação do progresso humano. Eles transformam a sua própria noção de bem num padrão inflexível de bem universal. Mostram-se cegos para a própria corrupção e capacidade de fazer o mal. E não tardam a cometer o mal, não pelo mal em si, mas para fazer um mundo melhor”.
A utopia neoateísta de um mundo melhor aparece logo nas primeiras páginas de Deus, um delírio, no qual Dawkins nos brinda com uma descrição do milênio neoateísta: “Imagine, junto com John Lennon, um mundo sem religião. Imagine o mundo sem ataques suicidas, sem o 11/9, sem o 7/7 londrino, sem as Cruzadas, sem caça às bruxas, sem a Conspiração da Pólvora, sem a partição da Índia, sem as guerras entre israelenses e palestinos, sem massacres sérvios/croatas/muçulmanos, sem a perseguição de judeus como ‘assassinos de Cristo’, sem os problemas da Irlanda do Norte, sem assassinatos em nome da honra, sem evangélicos televisivos de terno brilhante e cabelo bufante tirando dinheiro de ingênuos... Imagine o mundo sem o Talibã para explodir estátuas antigas, sem decapitações públicas de blasfemos, sem o açoite da pele feminina pelo crime de ter se mostrado em um centímetro”.
Curiosamente, foi em resposta a críticas de neoateístas ainda mais radicais que ele, e que o acusavam de excesso de moderação, que o próprio Sam Harris terminou por reconhecer haver “algo que se parece com um culto na cultura do ateísmo”. E foi além: “Com efeito, muitas críticas que venho recebendo são tão carentes de conteúdo que só posso interpretá-las como produto de uma fé ateísta ofendida” – palavras que este colunista, católico e conservador, não pode deixar de tomar emprestadas em resposta aos seus melindrados críticos, aos quais, todavia, deseja ainda que fiquem com Deus...
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