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“Se a opinião é a rainha do mundo, os filósofos governam a rainha.” (Voltaire)
No artigo anterior, fiz referência ao surgimento do conceito de opinião pública no contexto da França do século 18. Apontei como essencial a obra de Augustin Cochin, “o mais desconhecido dos historiadores da Revolução Francesa”, como se lhe referiu François Furet, que, além de desconhecido, tinha-o também por sui generis, um tanto quanto extemporâneo, mas inegavelmente original: o único, depois de Tocqueville, a oferecer uma conceitualização rigorosa da Revolução Francesa.
Com efeito, o intelectual parisiense, cujas vida e obra foram precocemente interrompidas no front da Primeira Guerra, aplicou pioneiramente uma pegada sociológica durkheimiana – algo surpreendente para um pensador de estirpe conservadora e católica – ao estudo das fontes da Revolução Francesa, material até então dominado por uma historiografia muito apegada ao relato (a cronologia de episódios particulares) e avessa ao conceito (a busca por leis gerais que dessem sentido a eventos específicos). Como nenhum outro em sua época, e em seu ramo de estudos, Cochin integrou a história e a sociologia – e ambas à filosofia –, o que talvez explique certa excentricidade e o sabor avant-garde de sua pesquisa sobre a organização social do jacobinismo (para ele a essência do fenômeno revolucionário francês), que se desdobra numa teoria crítica da democracia moderna.
“Antes do Terror sangrento de 1793, já havia, de 1705 a 1780, na ‘república das letras’, um terror seco, do qual a Enciclopédia foi o Comitê de Salvação Pública, e d’Alembert, o seu Robespierre. Ele ceifa reputações como o outro ceifa cabeças; sua guilhotina é a difamação.”
Augustin Cochin
Em Pensando a Revolução Francesa, num capítulo inteiro dedicado ao autor, o mesmo Furet observa que essa abordagem peculiar permitiu a Cochin identificar com precisão no tipo de organização social de onde brotou a ideologia jacobina, as “sociedades de pensamento”, a origem da ideia contemporânea, essencialmente totalitária, de democracia “pura” – ou, como diríamos hoje, direta. Sobre a lógica revolucionária deslindada por Cochin, Furet observa:
“A sociedade de pensamento, por definição, não pensa: ela só fala. A ‘verdade socializada’, que resulta dessa química particular das assembleias, não é pensamento, mas consenso: representações cristalizadas em algumas figuras simples da linguagem, destinadas a unificar e a mobilizar os espíritos e as vontades. Em suma, o que chamamos de ideologia. Por essa razão, aliás, a dominação das ‘sociedades’ ou dos comitês de 93 pressupõe um tipo de talento que não tem emprego, nem reconhecimento, na sociedade real: Robespierre não é ministro, ele se encontra investido de uma função de ‘vigilância’. Ele vela sobre o consenso, farejando o menor deslize. É que a ideologia não se pensa, ao menos no sentido em que ‘ser pensada’ significaria ser passível de crítica; ela é falada, ou melhor, ela fala através de seus intérpretes, e pela intervenção privilegiada da máquina. Mais que uma ação, a Revolução é uma linguagem. É em relação a essa linguagem, lugar do consenso, que a máquina seleciona os homens: a ideologia fala através dos chefes jacobinos, mais do que estes falam através dela. Existe em Cochin, em filigrana, uma referência muito moderna às coerções da linguagem, e ao desvanecimento do sujeito na constituição do campo político. Mas essa situação, longe de ser um dado do espírito humano, parece-lhe ser o resultado de uma patologia da atividade de conhecimento, através da qual a ideologia sobrepuja o pensamento, e a ‘verdade socializada’, a busca do verdadeiro.”
É por isso que, para Cochin, e ao contrário de muitos historiadores (e quase apologetas) do fenômeno, nunca houve duas revoluções distintas – uma antes e uma depois do Terror jacobino. Para ele, o terror físico do jacobinismo foi uma espécie de corolário lógico e inevitável daquilo que, décadas mais tarde, também em relação à França (só que no contexto do pós-guerra), Jean Sévillia chamaria de “terrorismo intelectual”. Nas palavras do próprio Cochin: “Antes do Terror sangrento de 1793, já havia, de 1705 a 1780, na ‘república das letras’, um terror seco, do qual a Enciclopédia foi o Comitê de Salvação Pública, e d’Alembert, o seu Robespierre. Ele ceifa reputações como o outro ceifa cabeças; sua guilhotina é a difamação”.
Furet resume a démarche cochiniana nos seguintes termos:
“Na cronologia revolucionária de Cochin, houve então um primeiro período de incubação, entre 1750 e 1788, durante a qual se elaborou e difundiu essa ‘opinião social’, no nível dos intelectuais e no interior das sociedades e das lojas, sem relação com o exercício do poder sobre os homens e as coisas. A partir de 1788, a Revolução constitui, pelo contrário, o período em que se dá o encontro entre esse consenso dos intelectuais e a realidade do poder por meio das sociedades revolucionárias, que reproduzem e ampliam os mecanismos das sociedades filosóficas. Em 1793, e durante alguns meses, a culminação do processo: o jacobinismo, sob a ficção do ‘povo’, substitui ao mesmo tempo a sociedade civil e o Estado. Através da vontade geral, o povo-rei coincide miticamente, de agora em diante, com o poder; essa crença é a matriz do totalitarismo”.
Para Cochin, portanto, a Revolução não foi essencialmente uma guerra social, muito menos uma luta de classes, como quis a historiografia marxista do evento, por tanto tempo hegemônica no campo acadêmico. Em vez disso, ela inaugura um tipo de socialização, baseado na comunhão ideológica, e manipulado pelos aparelhos da palavra – as lojas maçônicas, os salões literários, os clubes e círculos de debates. É quase como se Cochin tivera podido vislumbrar, na atuação das “sociedades de pensamento” da França pré-revolucionária, a estratégia gramsciana do aparelhamento das instâncias de formação da opinião pública, celebremente descrita como “a longa marcha sobre as instituições”.
É nesse ponto, então, que sua análise se mostra especialmente perspicaz e quase premonitória, antecipando o mecanismo contemporâneo de formação da opinião pública via imposição de falsos consensos, orquestrados por falanges intelectuais e elites culturais socialmente minoritárias, avessas aos gostos de valores da maioria da população, mas detentoras do poder de falar em seu nome e, manejando a Janela de Overton, balizar o debate público segundo os seus próprios critérios morais, políticos e ideológicos. Para Cochin, é essa nova tecnologia de controle cultural que surge ali, de maneira inédita, na França do século 18: “É que ao lado do povo real, que não podia responder, existia um outro, que falou e deputou por ele – o povo pouco numeroso, sem dúvida, mas bem unido e presente em todos os lugares, o povo das sociedades filosóficas”.
Por medo de isolamento social, e por temerem mais esse isolamento que o erro, as pessoas acabam acreditando numa maioria fake, fabricada e pretensamente encarnada pela classe falante, a “sociedade de pensamento” contemporânea
Antes mesmo de Cochin, Tocqueville já havia intuído esse mecanismo observando um fenômeno particular: a forma como, de uma hora para outra, um discurso antirreligioso conseguiu impor-se como hegemônico e formatar a opinião pública, numa sociedade francesa até então profundamente cristã. Em O Antigo Regime e a Revolução, escreve Tocqueville: “Aqueles que mantinham sua crença nas doutrinas da Igreja tinham medo de estar sozinhos em sua lealdade, e, temendo mais o isolamento que o erro, professavam partilhar os sentimentos da maioria. Portanto, o que era o sentimento de apenas uma parte da nação passou a ser considerado a vontade de todos”.
Eis a peça-chave do mecanismo, que a cientista política Elisabeth Noelle-Neumann batizou de “a espiral do silêncio”: por medo de isolamento social, e por temerem mais esse isolamento que o erro, as pessoas acabam acreditando numa maioria fake, fabricada e pretensamente encarnada pela classe falante, a “sociedade de pensamento” contemporânea. Tudo se passa como num teatro de sombras, em que os monopolistas do discurso amplificam artificialmente as próprias opiniões. Diante disso, imaginando que as próprias opiniões são minoritárias, o cidadão comum se cala, temeroso diante da monstruosa sombra projetada na parede, sem notar tratar-se apenas de uma figura de papel presa a uma frágil vareta. Nas palavras de Noelle-Neumann:
“Hoje já é possível provar que, mesmo quando sabem claramente que algo está errado, as pessoas mantêm-se em silêncio se a opinião pública (opiniões e comportamentos que podem ser exibidos em público sem o medo do isolamento), e, portanto, o consenso sobre o que constitui o bom gosto e a opinião moralmente adequada, estiver contra elas”.
Convém sublinhar mais uma vez que esse “consenso sobre o que constitui o bom gosto e a opinião moralmente adequada” pode ser (e de fato quase sempre o é) inteiramente artificial, fabricado – tal qual as salsichas – com ingredientes não muito nobres, e frequentemente inconfessáveis: mentiras, censura, assassinato de reputação, perseguição política, assédio judicial. O essencial é que ele apareça aos olhos de todos como consenso, e que, impondo-se gradual e insidiosamente, promova a acomodação geral ao discurso (ou, para usar uma palavra da moda, à narrativa) dominante. Fundado exclusivamente no medo do isolamento social, esse consenso de laboratório abre brecha para transformações culturais profundas, definidas, no limite, por facções sociais minoritárias e militantes, mas que exercem o papel de oligarcas da opinião. Isso ajuda a explicar, por exemplo, a bizarra situação em que se encontra a nossa sociedade, na qual um povo conservador se vê silenciado e tutelado por uma intelligentsia ultraesquerdista.
O mecanismo é eficiente porque, monopolizando os meios de formação e difusão de opiniões, essa intelligentsia acaba ocupando a posição de panóptico do debate público. “Panóptico”, recorde-se, é o termo com que, no século 18 (o século da vigilância, como temos visto), o filósofo e jurista britânico Jeremy Bentham designou uma penitenciária ideal, que permitiria a um único vigilante observar – sem ser observado – todos os prisioneiros. Estes, sem saber se (ou quando) estavam sendo vigiados, eram levados pela incerteza a adotar o comportamento dócil e submisso desejado pelo sistema prisional.
Em nossos dias, com toda a tecnologia disponível de imposição de falsos consensos (a monocultura político-ideológica da academia e da grande imprensa, a censura das Big Techs e suas “agências de checagem”, as iniciativas legislativas e judiciárias – hoje quase indistinguíveis – de homogeneização do discurso sob o pretexto do combate às “fake news” e ao “discurso de ódio” etc.), os barões da opinião pública integram uma espécie de panóptico narrativo, ocupando uma posição central de onde falam a todos, sem jamais ouvir. Daí que, conquanto minoritárias e não raro delirantes, suas opiniões privadas apareçam como padrão, como reflexo de uma opinião pública média e centrada, equidistante de pretensos extremos simétricos e inversos. Sua voz faz-se passar pela voz do povo.
Mas não passam, na realidade, daquilo que Cochin chamou de o povo das sociedades de pensamento, “o povo pouco numeroso, sem dúvida, mas bem unido e presente em todos os lugares”. Esse povo fictício vence não pelo número, muito menos pela razoabilidade ou veracidade de suas opiniões, mas pela onipresença nas instâncias de formação de opinião, e pela interconexão existente entre os seus pontos de vista. Enquanto isso, as opiniões propriamente populares, posto que majoritárias, são dispersas e desconexas, ocupando a periferia do sistema, onde são vigiadas e fiscalizadas pelos Robespierres contemporâneos, os zeladores do “consenso” (ou da “ciência”), os “editores de uma nação inteira” – como na expressão recente, tão terrivelmente jacobina, de um ministro da nossa suprema corte.
Assim, na situação em que nos encontramos, prisioneiros desse gigantesco panóptico narrativo, talvez nunca tenha sido tão urgente recordar a lição imortal de Edmund Burke, quando não para tentar impedir que o “terror seco” de nossos dias descambe em terror sangrento, e que das enciclopédias contemporâneas surjam novos comitês de salvação pública: “Porque meia dúzia de gafanhotos sob uma samambaia fazem o campo tinir com seu inoportuno zumbido, ao passo que milhares de cabeças de gado repousando à sombra do carvalho inglês ruminam em silêncio, por favor, não vá imaginar que aqueles que fazem barulho são os únicos habitantes do campo; ou que, logicamente, são maiores em número; ou ainda que signifiquem mais do que um pequeno grupo de insetos efêmeros, secos, magros, saltitantes, espalhafatosos e inoportunos”.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos