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Uma militante feminista radical – essa foi a autoimagem que Rosa Weber escolheu para si no último ato de sua jornada como ministra do STF, quando pautou o julgamento da ADPF 442, que pede a liberação do aborto no Brasil nas 12 primeiras semanas de gestação, e proferiu o seu voto abortista, fundado sobre a premissa de que se deve “compreender o mundo a partir da lente da mulher”. Sob essa premissa, Weber descreve o aborto – que, seguindo a militância abortista, a ministra trata eufemisticamente como “interrupção da gravidez” – como uma questão de mera escolha individual da mulher, desconsiderando o fato de que essa pretensa escolha (a qual, de resto, raramente é apenas das mulheres, sendo frequentemente incentivada por homens fracos e incapazes de assumir a responsabilidade da paternidade) implica a morte de um ser humano em situação de útero.
Em seu discurso de despedida, com pose infanto-juvenil de guerreira da justiça social e argumentos cabotinos, Weber disse ainda ter atuado no tribunal “por aqueles que não têm vez nem voz”. A very poor choice of words, diriam os anglófonos. Afinal, como jactar-se de haver atuado “por aqueles que não têm vez nem voz” – algo que, aliás, não caberia a um juiz, cuja atuação deve se pautar única e exclusivamente pela lei – justo no momento subsequente ao seu voto contrário ao direito elementar à vida daqueles que, dentre todas as pessoas, menos têm voz e vez: os fetos? Mas tão tomados pela húbris revolucionária estão os atuais ministros da suprema corte, e tão escancaradamente politizada a sua atuação – o substituto de Weber à frente da presidência da casa chegou a apresentar o seu programa de governo –, que seria demais esperar consciência da contradição.
Fato é que o voto de Rosa Weber em favor da liberação do aborto – reduzido a pó pelo editorial desta Gazeta do Povo – foi, do começo ao fim, a reprodução de um discurso feminista de centro acadêmico. E, por isso mesmo, foi aplaudido nas redações e estúdios da imprensa dita profissional, em especial, por óbvio, dentro do sistema Globo. Tratado por essa militância midiática invariavelmente como “histórico” – pois, para os provincianos temporais, toda decisão política que lhe agrada é “histórica” –, o voto de Weber foi também usado como porrete para atacar os adversários da liberação do aborto, descritos como obscurantistas, misóginos e inimigos da justiça social.
Para que o argumento faça sentido, é preciso partir da premissa de que o feto dentro do útero não é um indivíduo diferente da mãe, mas apenas parte de seu corpo, como sugere o famigerado slogan feminista “meu corpo, minhas regras”.
Foi o que aconteceu, por exemplo, no programa Estúdio I, da Globonews, que foi ao ar no dia 22/09. Comentando o voto de Rosa Weber, o jornalista Arthur Dapieve destacou o caráter “sensível” do tema – não, obviamente, por envolver a eliminação do feto (dado da realidade sempre abstraído da equação), mas porque “mexe tanto com política pública quanto com questão de liberdades individuais”. Em seguida, apontou o dedo para uma suposta contradição dos conservadores ou “hiperconservadores”, em especial durante o “período do bolsonarismo”. Confundindo-os com liberais – ou, pior ainda, com libertários –, Dapieve acusou-os de serem contrários à intervenção do Estado na economia e na vida social (em políticas de transferência de renda, por exemplo), mas, ao mesmo tempo, defender a intromissão estatal nas decisões individuais das mulheres, o que seria uma violação da intimidade.
Para que o argumento de Dapieve faça sentido, é preciso partir da premissa (biologicamente insustentável) de que o feto dentro do útero não é um indivíduo diferente da mãe, mas apenas parte de seu corpo, como sugere o famigerado slogan feminista “meu corpo, minhas regras”. Mas, raciocinando ad absurdum e levando o caso para um contexto extrauterino, seria possível defender a não-intervenção estatal em casos de homicídio, sob o argumento de que, em sendo a vítima uma mera extensão do corpo do homicida, caberia a esse último a decisão íntima e individual sobre o ato de matar. Creio que nem mesmo o mais radical dos libertários concordaria com isso. O problema está sempre, portanto, na pergunta sobre o quid do aborto, questão da qual os abortistas fogem como o diabo da cruz, pois só é plenamente possível defender o direito “individual” da mulher quanto ao aborto com a condição de que nunca se fale concretamente – e menos ainda se demonstre graficamente – sobre o que é um aborto, acontecimento que envolve necessariamente um outro indivíduo.
Mas, se Dapieve talvez tenha sido apenas obtuso e ignorante, e não necessariamente manipulador, a desonestidade intelectual deu as caras no programa com a participação de Flávia Oliveira, uma prosélita radical de toda a agenda identitária, em especial do feminismo e do racialismo (como já observei em uma coluna passada). Pegando o gancho da fala do colega sobre a pretensa incongruência dos anti-abortistas, disse ela: “Cinismo expresso também, Dapieve, porque são as mesmas pessoas que defendem pena de morte, tortura, execução sumária fora do devido processo legal. Querem que nasçam para matá-los vivos (sic)”.
Segundo Flávia Oliveira, os que argumentam em defesa da vida dos fetos o fazem apenas para “matá-los vivos”.
Difícil descompactar tamanho amontoado de falácias e ilogicidades. Para começar, imagino que por “matá-los vivos”, a radical de redação quisesse dizer “matá-los depois de nascidos”, já que, obviamente, não faz sentido matar o que não está vivo... Do ponto de vista meramente retórico-formal, por exemplo, não parece passar pela cabeça da militante que o truque verbal utilizado poderia ser facilmente invertido. Se é cínico defender pena de morte e rejeitar o aborto, não seria igualmente cínico aprovar o aborto e rejeitar a pena de morte? Se a pena de morte (X) equivale ao aborto (y) – e esse é o pressuposto da acusadora, para quem X = Y –, dá no mesmo aprovar a primeira e rejeitar o segundo quanto rejeitar a primeira e aprovar o segundo.
Ora, Oliveira sabe que aborto e pena de morte não são equivalentes, tanto que, numa consideração moral assaz bizarra, ela própria celebra o primeiro e execra a segunda. Mas sua intenção era simplesmente tingir as pessoas contrárias ao aborto com as piores tintas, para que parecessem suficientemente vis, monstruosas e assustadoras, a tal ponto que, ademais de confundir-se com a defesa da justiça e dos direitos humanos das mulheres, a defesa do aborto pudesse se apresentar também como uma luta contra a malignidade dos que defendem não somente a pena de morte, mas também a tortura e a execução sumária. Segundo Oliveira, os que argumentam em defesa da vida dos fetos o fazem apenas para “matá-los vivos”.
Mas Oliveira tem um problema. Porque, segundo pesquisas recentes, a figura monstruosa por ela criada corresponde a aproximadamente 70% da população brasileira. Sim, o aborto é rejeitado pela grande maioria da população brasileira, tanto que os abortistas precisam burlar o legislativo e apelar ao STF em seu papel auto-atribuído de poder “contra-majoritário”. Ora, dentre esses 70% contrários ao aborto, certamente há brasileiros contrários também à pena de morte, possivelmente com base no princípio moral (de origem indiscutivelmente cristã, como já o demonstrei) da sacralidade de toda vida humana. Ocorre que, dentre os contrários ao aborto, muitos há que defendem a pena de morte com base no mesmo princípio.
Quem defende pena de morte, geralmente o faz apenas em relação a crimes hediondos, usualmente praticados contra a vida alheia. Ora, independente do que se pense sobre a pena capital, não há equivalência moral possível entre a morte de um condenado por crime hediondo que atenta contra a vida alheia (supondo-se a observância de um devido processo legal) e a morte de uma pessoa em situação intrauterina, que obviamente não cometeu nenhum ato digno de punição.
Portanto, não há cinismo nenhum em execrar o aborto e tolerar a pena de morte. Concorde-se ou não com ela, a pena de morte deve ser compreendida como uma defesa da sociedade (via Estado) contra elementos perigosos (serial killers, por exemplo) que ameaçam o direito individual à vida. Já o aborto não passa da eliminação de uma pessoa não-nascida em vista da conveniência pessoal dos já nascidos. Só mesmo um extremista possuído por ideologia para não notar a diferença entre uma coisa e outra. Só mesmo um raciocínio assustadoramente fatalista (segundo o qual os fetos nascidos em situação socialmente desfavorável se tornarão, quando adultos, sérios candidatos à pena capital) poderia gerar a proposta de que se corte o mal pela raiz. Porque, contra os que pretensamente querem “matá-los vivos” (segundo a sua caricatura hedionda), Flávia Oliveira propõe não a observância do Sexto Mandamento, mas apenas uma antecipação profilática do remédio: matá-los mortos (ou, traduzindo do seu idioma para o português, matá-los antes do nascimento). Parece-me pouco para tamanha ostentação de superioridade moral...