A depender de certa militância politicamente correta, a isonomia e a meritocracia parecem mesmo estar com os dias contados no Brasil. Lembro-me, por exemplo, de um edital lançado há alguns anos, concernente a um concurso que visava à contratação de graduandos de Direito e Psicologia para estagiar num tal Núcleo de Extensão sobre a Lei Maria da Penha (Numape) da Universidade Estadual de Maringá (UEM). No edital, que resume bem o espírito da época, líamos o seguinte na seção que tratava da realização das provas: “As candidatas que, na ficha de inscrição, se declararem mulheres terão 0,5 ponto de acréscimo na nota geral (...) As pessoas que, na ficha de inscrição, se declararem negras ou indígenas terão 0,5 ponto de acréscimo na nota geral".
Ademais do absurdo em si que consiste em premiar pessoas por aquilo que são, e não por aquilo que fazem, esse tipo de ação afirmativa demagógica e inconstitucional revela uma série de incoerências lógicas e dificuldades práticas de aplicação, as mesmas que temos visto, por exemplo, no caso das cotas raciais.
Mercadante tinha mentido: a autodeclaração não seria o único critério para as cotas
Chama a atenção, de imediato, a ênfase na autodeclaração: serão premiados com o acréscimo de pontuação os candidatos que “se declararem” membros da categoria privilegiada (mulheres, negras ou indígenas). No caso das cotas raciais, seus proponentes adotaram o critério da autodeclaração – consagrado na Lei 12.711, de 2012 – para driblar a acusação de estarem instituindo oficialmente o racismo no Brasil. “A autodeclaração de raça será o único critério para as cotas”, chegou a declarar na época o então ministro da Educação, Aloysio Mercadante. E os pró-cotas não perdiam a chance de ridicularizar quem alertasse para o risco do surgimento de tribunais e comissões de inspeção racial, algo que remontaria ao racismo dito científico do século 19, com seus métodos e instrumentos de medição física das “raças” humanas (ver, sobre o assunto, o excelente livro do paleontólogo Stephen Jay Gould A Falsa Medida do Homem).
Pois foi exatamente o que ocorreu. Assim que começaram a surgir sinais de “fraudes” nos concursos (e como diabos falar em fraude se o critério legal é a autodeclaração?), os implementadores das cotas raciais, pautados pelo radicalismo do movimento negro brasileiro, passaram a criar comissões raciais para verificar se os autodeclarados eram mesmo negros.
Há cerca de dois anos, por exemplo, tivemos notícia de que a Educafro (um dos braços do movimento negro) determinou que mais de 60% dos aprovados por cotas na Universidade Federal Fluminense (UFF) fossem desclassificados por “declarações falsas”. Ora, uma autodeclaração só pode ser falsa se, no fim das contas, há um critério que lhe seja ao mesmo tempo anterior e determinante: e esse critério é precisamente o julgamento racial dos membros daquelas comissões. Eis o racismo oficial que os críticos das cotas sempre apontaram. Mercadante tinha mentido: a autodeclaração não seria o único critério para as cotas.
O mesmo tipo de confusão deverá ocorrer no caso ilustrado acima, de ações afirmativas envolvendo as mulheres, com uma agravante: a esquerda brasileira, principal promotora das ações afirmativas, abraçou acriticamente a ideia de que a identidade de gênero nada tem a ver com o sexo de nascimento das pessoas. Logo, em se tratando de gênero, a autodeclaração há de ter ainda mais peso que no caso da raça. Se, em toda parte, as identidades de gênero têm sido reconhecidas (homens que se dizem mulheres, mulheres que se dizem homens etc.), como fazer se, no tipo de concurso de que vamos tratando, um homem se declarar mulher para obter o meio ponto a mais? Isso também será considerado “fraude”, como no caso das cotas raciais? Mas como, se o gênero é meramente construído e depende apenas de como a pessoa se sente?
Toda mentalidade utópica e revolucionária, que busca solucionar problemas sociais complexos por meio de canetadas e engenharia social, acaba produzindo inevitavelmente esse tipo de problema. E eu não ficaria nada surpreso se, assim como a autodeclaração foi mandada para o espaço no caso das cotas raciais, o mesmo se passasse no caso das ações afirmativas que beneficiem as mulheres. Não demora muito e veremos surgir comissões de verificação do verdadeiro sexo das pessoas, presididas por aquelas mesmas pessoas que, no dia anterior, proclamavam a inexistência de sexo verdadeiro.
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