“A pedagogia, como é hoje considerada, está desligada do saber, pretende substituí-lo e ocupar o seu lugar. A ‘pedagogia’ tem um aspecto social: atrai o intelectual proletaroide, prometendo-lhe uma revanche contra o competente e o sábio” – Alain Besançon, prefácio de A Escola dos Bárbaros, de Isabelle Stal e Françoise Thom (1985)
No último Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), aplicado em 2018 e divulgado em dezembro do ano passado, o Brasil ficou na 70.ª colocação entre 79 participantes da avaliação de matemática e raciocínio lógico. Como se lê em editorial desta Gazeta do Povo: “Em Matemática, quase sete em cada dez estudantes estão no pior nível de proficiência, sendo incapazes de realizar algumas tarefas básicas que envolvem números e operações aritméticas”. Na época da divulgação, o presidente do Inep, Alexandre Ribeiro Lopes, chegou a dizer que “a educação brasileira produz excluídos: 68% dos jovens de 15 anos não sabem o básico de matemática”.
Mas esse que, do ponto de vista dos pais e da sociedade em geral, é sem dúvida um resultado alarmante, não parece sê-lo da perspectiva de uma certa pedagogia “crítica” e “progressista”, cuja concepção da matemática e de suas funções é bastante peculiar. A fim de melhor compreender essa concepção – não apenas peculiar, mas também esdrúxula, já adianto –, podemos recorrer ao conceito de “erro categorial” (category-mistake), do filósofo Gilbert Ryle (1900-1976). Comete-se um erro categorial quando se atribui a um ente qualquer uma propriedade ontologicamente incompatível com a natureza desse ente.
Os objetivos educacionais dos pedagogos revolucionários não são os mesmos que os do restante da sociedade
Ilustrando a ideia, o filósofo pede-nos para imaginar uma pessoa comum, pouco afeita ao universo acadêmico, visitando Oxford pela primeira vez. Chegando lá, pergunta sobre a localização exata da universidade, imaginando vir a obter uma resposta do tipo: “É logo ali, ao lado da sala dos professores”. Ao conceber a universidade como uma edificação específica, e não como o conceito funcional que engloba todas as suas partes, a pessoa em questão teria cometido um erro categorial.
As crianças são mestras na produção de divertidíssimos erros categoriais. Temos um erro categorial clássico quando, por exemplo, um pequeno queixa-se a um móvel no qual acabou de bater a cabeça: “Mesa malvada!”. Ou quando indaga: “Qual é o gosto da cor verde?”, “Qual é a cor do seu nome?”, etc.
Nas crianças, o erro categorial faz parte do desenvolvimento cognitivo natural. Já em adultos, o fenômeno pode indicar certo lapso de inteligência, embora homens intelectualmente brilhantes não lhe sejam imunes (como, para Ryle, era o caso de Descartes). Ressalve-se, claro, que o erro categorial só se caracteriza no âmbito do discurso literal, denotativo. O uso consciente e figurado de “más” atribuições de propriedade não constitui erro algum, evidentemente.
Mas, voltando ao nosso assunto, gostaria de falar de um erro categorial tragicômico: a matemática opressora. Sim, num Brasil tomado por aquele marxismo “volatilizado e atmosférico” de que falava Nélson Rodrigues, era fatal que chegássemos até esse ponto. E o pior: o erro não parece ser fenômeno isolado, muito menos escandaloso. Ao contrário, cometê-lo, cá em Pindorama, pode conferir a quem o faz o título de doutor nas nossas principais universidades.
A matemática opressora é, por exemplo, o tema de uma tese de doutorado defendida na Faculdade de Educação da USP, cujo resumo transcrevo na íntegra:
“Nossa investigação é uma pesquisa teórica de cunho histórico-filosófico-educacional, que tem como objetivo principal discutir as contribuições de Paulo Freire e de Ubiratan D’Ambrosio para a formação do professor de Matemática no Brasil. A dialética e as técnicas de análise de conteúdo constituem a metodologia adotada. Desse modo, nos impusemos como tarefa analisar a formação do professor de Matemática de modo contextualizado com a nossa realidade social atual e reconstituindo a função histórica que a nossa escola e a formação docente desempenharam como reforçadora das desigualdades sociais e mantenedoras do status quo da sociedade capitalista. No levantamento histórico, utilizamos as contribuições de G. Freyre, S. B. de Holanda, C. Prado Júnior, L. Basbaum, C. Furtado, F. de Azevedo, J. K. Galbraith, O. de O. Romanelli, A. Teixeira, entre outros. E, em nossa análise, nos valemos das contribuições de K. Marx, F. Engels, A. Gramsci, M. Chauí, L. Althusser, J. Contreras, O. Skovsmose, A. Ponce, M. Gadotti, K. Kosik e outros referenciais próprios da área. A formação do professor de Matemática é vista como resultado de um processo histórico-cultural que mantém ainda uma forte herança de elementos de uma sociedade colonial, corroborado pela não participação democrática do povo brasileiro em seu processo de constituição sociocultural numa sociedade capitalista e excludente. E o trabalho demonstra que os atuais processos de formação de professor de Matemática ainda são fortemente sedimentados numa formação alienada aos ditames de uma sociedade de classes, que não permite ao futuro professor compreender e fazer uso da necessária autonomia inerente à sua atuação, o que o faz atuar como um intelectual orgânico a serviço da consolidação da hegemonia da classe dominante. Nesse sentido, os constructos teóricos de P. Freire e de U. D’Ambrosio mostram-se como indicadores de encaminhamentos possíveis no processo de formação de um professor de Matemática crítico/libertador e, por isso, consciente de sua tarefa como agente ativo na formação de um educando não especialista em matemática, mas inserido em sua realidade social como um sujeito transformador e em transformação, que encontra na matemática uma ferramenta para o processo dialético de sua própria construção. Assim, a investigação indica a necessidade de uma atuação dos formadores no sentido de conscientizar os futuros professores de Matemática de sua tarefa como intelectuais orgânicos a serviço da construção da hegemonia dos excluídos, dos explorados em geral. Ou seja, a investigação aponta a necessidade de a formação inicial se constituir como um antidiscurso ao discurso ideológico da classe dominante.” (grifos meus).
Enquanto a sociedade espera que os professores ensinem aos estudantes Matemática, Português e Ciências, muitos dos profissionais que formam os professores não estão interessados em nada disso
Temos aí um exemplo típico de trabalho acadêmico que pedagogos e educadores de esquerda têm, há décadas, produzido no Brasil. São pessoas como o seu autor as que ditam, na prática, os rumos de educação, ocupando posições importantes no sistema educacional. São elas que formam os professores brasileiros e, portanto, deformam a inteligência dos nossos estudantes.
Evidentemente, os objetivos educacionais desses pedagogos revolucionários não são os mesmos que os do restante da sociedade. E reside aí, talvez, o principal problema da educação brasileira, que precisamos começar a compreender e enfrentar: enquanto a sociedade espera que os professores ensinem aos estudantes Matemática, Português e Ciências, muitos dos profissionais que formam os professores não estão interessados em nada disso. Essas disciplinas servem-lhes apenas como meios para a doutrinação de crianças e jovens no discurso comunista (em versão gramsciana-freiriana) da luta de classes. “A pedagogia é a propedêutica do socialismo”, escreve acertadamente Alain Besançon no texto referido em epígrafe.
Que assim seja o confessa o próprio pedagogo da USP, para quem sua missão, não custa repetir, é “conscientizar os futuros professores de Matemática de sua tarefa como intelectuais orgânicos a serviço da construção da hegemonia dos excluídos”. E você aí, ingênuo leitor, pensando que a tarefa do professor de Matemática fosse ensinar a fórmula de Bhaskara...
Escreve Ortega y Gasset em Misión de la Universidad (1930): “Princípio de educación: la escuela, como institución normal de un país, depende mucho más del aire público en que íntegralmente flota que del aire pedagógico artificialmente producido dentro de sus muros. Sólo quando hay ecuación entre la presión de uno y otro aire la escuela es buena”.
No Brasil contemporâneo, há um desencontro total entre o “ar público” e o “ar pedagógico” artificialmente produzido dentro dos muros escolares. Logo: acá la escuela no es buena. A sociedade como um todo optou por abdicar da educação infantil, delegando a missão para os especialistas em pedagogia, e conferindo a estes um prestígio (e, logo, um poder) totalmente imerecido e desproporcional. Todos parecem concordar com a fórmula mágica “mais verba para a educação!”, desatentos para o fato de que isso implica mais pedagogia – e, portanto, menos Matemática, Português, Ciências e demais disciplinas “opressoras”.
Lavamos as mãos, confiando que a meta dos especialistas correspondia aos nossos anseios. Erramos gravemente, e é preciso reconhecê-lo com urgência. Temos de acabar com o monopólio que a “falsa ciência” da pedagogia crítica, nos dizeres de Besançon, exerce sobre a educação brasileira. Até lá, talvez a proposta de “mais verba para a educação” não seja, de fato, uma boa ideia.
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