O historiador britânico Eric Hobsbawm, falecido em 2012.| Foto: AFP/TC Malhotra/EyePress
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“Tel qu’en Lui-même enfin l’éternité le change” (Le Tombeau D’Edgar Poe, Stéphane Mallarmé)

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Em outubro de 2012 morreu Eric Hobsbawm. Na época, a Veja publicou uma matéria crítica ao legado do historiador marxista, celebrado por muitos como um dos maiores intelectuais do século 20. O texto era superficial e de má qualidade, como quase tudo o que se publica na revista (mesmo antes de sua vexaminosa guinada lacradora e “progressista”). Seu único mérito, contudo, era o de destoar do tom hagiográfico adotado unanimemente pelo resto da imprensa e da intelligentsia nacionais, para quem Hobsbawm, mais que um historiador, havia sido uma espécie de guru espiritual, uma referência ética e política. Contrariando a louvação geral ao historiador, a revista rotulou-o fulminantemente como um idiota moral. Armara-se a polêmica, que convém aqui recordar, porque ilustra exemplarmente a miséria do nosso debate intelectual, no qual o mérito das questões nunca é sequer arranhado, restando apenas a afirmação histriônica de lealdades políticas, ideológicas e corporativas.

Naquelas partes do mundo onde a vida cultural ainda não está (ou, ao menos, não estava) totalmente devastada, a coisa se passou mais ou menos assim: ao lado das homenagens ao reconhecido talento do historiador falecido, surgiram também salutares ressalvas de que, de um ponto de vista político, a reputação do homem estava longe de ser intocada. Mais ainda, alguns analistas (incluindo historiadores e filósofos) sugeriram que sua própria atuação acadêmica foi prejudicada pela adoção dogmática de uma filosofia marxista da história e pelos posicionamentos políticos que essa moldura filosófica o levou a seguir, com uma renitência digna de nota até mesmo por parte de companheiros de ideologia. Esses comentários acabaram fornecendo um importante contrapeso às tentativas de canonização do intelectual, muitas vezes oriundas de gente que nunca lera sequer uma linha de sua obra, mas cujo objetivo era usar o seu prestígio acadêmico para determinadas agendas militantes.

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Em nosso debate intelectual, o mérito das questões nunca é sequer arranhado, restando apenas a afirmação histriônica de lealdades políticas, ideológicas e corporativas

Resenhando um dos últimos livros escritos por Hobsbawm, por exemplo, o também historiador britânico Tony Judt já tecera comentários interessantes a respeito da inexplicável teimosia ideológica do autor, que o levou a relegar ao segundo plano – grave pecado para um historiador – fatos absolutamente fundamentais da história do século 20. Nas palavras de Judt: “Ao contrário da maioria dos intelectuais que, em algum momento, cederam ao encanto do comunismo, Hobsbawm não demonstra arrependimentos. De fato, embora admita a derrota de tudo o que o comunismo representava, insiste sem pestanejar que, a meio caminho de sua nona década de vida, ‘o sonho da Revolução de Outubro ainda está em algum lugar dentro de mim’. Previsivelmente, foi essa obstinada recusa em ‘renegar’ toda uma vida comprometida com o comunismo que atraiu a atenção da opinião pública. Por que, Hobsbawm foi questionado em inúmeras entrevistas, você não abandonou o Partido em 1956, como a maioria de seus amigos, quando os tanques soviéticos esmagaram as revoltas húngaras? Por que não em 1968, depois que o Exército Vermelho invadiu Praga? Por que você ainda parece acreditar – conforme o autor sugeriu em mais de uma ocasião em anos recentes – que o preço em vidas humanas e sofrimento sob o regime de Stalin teria valido a pena ser pago se os desdobramentos tivessem sido melhores?”.

Judt conclui que, excluindo-se deliberadamente do grupo de ex-comunistas que, por terem feito um exame de consciência, contribuíram com algumas das melhores análises sobre o terrível século 20 – grupo que inclui nomes como Jorge Semprún, Wolfgang Leonhard, Margarete Buber-Neumann, Claude Roy, Albert Camus, Ignazio Silone, Manès Sperber, Arthur Koestler, George Orwell, entre outros –, Hobsbawm acabou por “provincianizar a si próprio”.

Com efeito, o século 20 – em especial o período que vai de 1914 a 1991, chamado pelo historiador de “o curto século 20” – é considerado por muitos a parte mais fraca da obra de Hobsbawm. Numa resenha de outro livro seu, o filósofo político John Gray observara: “Se A Era do Capital (1975) e A Era do Império (1987) são um marco nas obras de história, uma razão é a profunda compreensão ali demonstrada das interações entre as ideias e o poder. A maior fraqueza de Hobsbawm é que ele optou por não aplicar o mesmo entendimento histórico ao período entre 1914 e 1991 – a era que chamou de ‘o curto século 20’, na qual o comunismo chegou ao poder em várias partes do mundo, e depois desapareceu, deixando atrás de si nada menos que um rastro de ruínas. Seus escritos sobre o período são banais ao extremo. São também largamente evasivos. Um vasto silêncio paira sobre as realidades do comunismo”.

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No dia mesmo do falecimento, o também historiador Michael Burleigh comentou que, ao longo de toda a sua trajetória intelectual, há em Hobsbawm “uma recusa dogmática em admitir que a Revolução Bolchevique foi um fracasso homicida... A implacável recusa de Hobsbawm de repensar suas visões quando confrontadas com suas grotescas consequências nos diz algo sobre a beligerante mentalidade da esquerda britânica em geral”.

O colunista A. N. Wilson, do Mail Online, foi ainda mais contundente, escrevendo um necrológio nada elogioso: “No que diz respeito à história do século 20, ele [Hobsbawm] jamais aprendeu suas lições. As dezenas de milhões de mortos, as centenas de milhões de escravizados, a maligna falsidade da ideologia que se abateu com tamanho horror sobre as populações da Rússia, Hungria, Tchecoslováquia, Polônia e Alemanha nunca ocorreu a esse homem. Ele continuou acreditando que uns poucos erros foram cometidos, e que o stalinismo foi ‘decepcionante’ – mas que, no geral, teria sido maravilhoso se Stalin tivesse triunfado... A verdade é que, longe de ser um grande historiador que às vezes comete erros, Hobsbawm falsificou deliberadamente a história”.

Os autores acima citados, assim como outros comentadores, fazem referência a uma passagem particularmente chocante da biografia de Hobsbawm. Em 1994, numa entrevista transmitida pela televisão, depois publicada no Times Literary Supplement, o historiador marxista declarou ao intelectual canadense Michael Ignatieff que o fato de Stalin ter assassinado milhões de sua própria população justificar-se-ia se tivesse resultado na realização da utopia comunista. Vale a pena citar o trecho em questão:

Ignatieff: Em 1934, milhões de pessoas estão morrendo no experimento soviético. Se você soubesse disso, teria feito diferença para você na época? Para o seu comprometimento? Em ser comunista?
Hobsbawm: ... Provavelmente não.
(...)
Ignatieff: Isso significa que, tivesse o radiante futuro sido mesmo criado, a perda de 15, 20 milhões de pessoas [hoje sabe-se que, somando-se as experiências soviética e chinesa apenas, as cifras ultrapassam os 130 milhões de mortos] estaria justificada?
Hobsbawm: Sim.

Para Hobsbawm, o crime de Stalin foi ter falhado. Como nota Wilson em seu artigo, imaginemos, por hipótese, que alguém aparecesse na BBC dizendo, por exemplo, que os nazistas estariam com a razão em eliminar 6 milhões de judeus caso seus objetivos houvessem sido alcançados. Todo mundo ficaria horrorizado, julgando, com razão, que o sujeito jamais deveria falar em público novamente, ou pelo menos até que se arrependesse de suas repulsivas ideias. Nada parecido ocorreu com Hobsbawm, mesmo após ter feito aquela declaração – fato que, longe de revelar alguma diferença substancial entre os horrores nazista e comunista, prova apenas que, ao contrário dos nazistas, os comunistas venceram a guerra cultural. Não foram moralmente superiores àqueles, apenas melhores marqueteiros.

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Percebe-se que a visão de Hobsbawm sobre o “curto século 20” refletia um problema inerente a toda a historiografia marxista: o fato de que sua filosofia da história é teleológica – não parte de fatos passados para a interpretação do presente e prognósticos para o futuro, mas de um futuro hipotético e utópico (a sociedade sem classes), que serve de medida para a análise e seleção dos fatos históricos. Como todo autor de mentalidade teleológica (de Joaquim de Fiore a Hegel, de Comte a Marx, de Fukuyama a Zizek), Hobsbawm acreditava saber de antemão qual o sentido da história, analisando os eventos de acordo com essa ilusão. O problema é que, quando contrariam o sentido previamente definido, os fatos tendem a ser suprimidos por uma espécie de catarata ideológica, bruma espessa e leitosa a descer por sobre os olhos do historiador, causando-lhe um ponto cego.

O ponto cego de Hobsbawm era, sem dúvida, o período aproximado de 80 anos em que os comunistas estiveram no poder e puderam pôr em prática a “ditadura do proletariado”. Em A Era dos Extremos, por exemplo, ao tratar do regime soviético, ele simplesmente não menciona o massacre de mais de 20 mil soldados poloneses na floresta de Katyn, perpetrado pela NKVD, a polícia secreta russa. Quando da publicação do livro, até mesmo o governo soviético de Mikhail Gorbachev já reconhecera o massacre, condenando tanto os crimes quanto o seu acobertamento. Hobsbawm foi mais realista que o rei e continuou acobertando o ocorrido.

Em Sobre História, de 1997, Hobsbawm não hesitou em escrever: “Por frágeis que se revelassem os sistemas comunistas, apenas um uso limitado, ou mesmo nominal, de coerção armada foi necessário para mantê-los de 1957 até 1989”. Não é que esta seja uma interpretação equivocada ou enviesada dos fatos. Trata-se de mentira pura e simples, coisa que um historiador profissional não deveria se permitir fazer. Diante dos mais de 6 mil tanques e centenas de milhares de soldados soviéticos que invadiram a Tchecoslováquia para reprimir a Primavera de Praga – para citar apenas um exemplo –, como falar em “uso limitado” ou “nominal” de coerção armada?

O ponto cego de Hobsbawm era, sem dúvida, o período aproximado de 80 anos em que os comunistas estiveram no poder e puderam pôr em prática a “ditadura do proletariado”

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Mas não são apenas distorções de conteúdo factual como as citadas acima que se observam no Hobsbawm que olha para o “curto século 20”. Como bem ressalta Judt, sua própria linguagem se deforma, deixando para atrás aquela segurança e clareza de quando o historiador escreve, por exemplo, sobre a França do século 18 ou sobre a Inglaterra da Revolução Industrial. Em vez disso, ficamos agora com um linguajar tartamudeante, frequentemente tautológico, que aparenta querer ocultar mais que revelar.

Descrevendo, por exemplo, o famoso “discurso secreto” em que Kruschev denunciava os ‘malfeitos’ stalinistas, Hobsbawm fala em uma “brutal e implacável denúncia das crueldades de Stalin”. Os adjetivos “brutal” e “implacável” referem-se à denúncia dos crimes e não aos crimes eles mesmos! Em A Era dos Extremos, abordando o regime stalinista, Hobsbawm escreve que “a possibilidade de ditadura está implícita em qualquer regime baseado num partido único, irremovível”. Mas alguém poderia lembrar-lhe que um regime de partido único e irremovível é uma ditadura.

Em suma, percebe-se que, para muitos intelectuais fora do Brasil, havia razões de sobra para, junto aos necrológios de praxe, também oferecer ao público uma crítica abrangente ao historiador, sobretudo no momento em que, como escreveu Mallarmé no túmulo de Edgar Allan Poe, a eternidade, enfim, transforma o homem naquilo que sempre foi.