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Flavio Gordon

Flavio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

A miséria do debate intelectual no Brasil: um estudo de caso (parte 2)

O historiador Eric Hobsbawm.
O historiador Eric Hobsbawm. (Foto: AFP)

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Como dissemos no artigo anterior, em meio à bajulação midiática generalizada a Eric Hobsbawm, uma matéria da revista Veja intitulada “A imperdoável cegueira ideológica de Eric Hobsbawm”, publicada três dias após a sua morte, foi a única avaliação negativa do legado do historiador marxista, quem, de outro modo, talvez passasse unanimemente por santo ou profeta.

Conquanto superficial em termos de conteúdo, a reportagem acabou preenchendo o vácuo que deveria estar ocupado por uma crítica intelectual mais abalizada, mas que não existe no Brasil, graças ao provincianismo de sua classe falante, com sua reverência basbaque diante dos figurões do universo cultural euroamericano. No Brasil, estes costumam ser admirados menos por sua obra intelectual propriamente dita – aliás, quase nunca lida – e mais como símbolos de autoridade, meios de legitimar preconceitos políticos. Com Hobsbawm, a coisa chegou a níveis inacreditáveis. Como provocou Judt no artigo já citado: “Em certas partes da América do Sul – e especialmente no Brasil – ele é um herói cultural e folclórico”.

A perspectiva marxista é praticamente hegemônica nos departamentos de História das universidades nacionais, com reflexos especialmente nocivos sobre os materiais didáticos voltados ao ensino fundamental e médio

A resposta à crítica da Veja veio na forma de um dos gêneros literários mais típicos da academia brasileira: o manifesto. Uma entidade de classe chamada Associação Nacional de História (Anpuh) saiu em defesa apaixonada de seu “herói cultural e folclórico” e, como se isso já não fosse ridículo o bastante, o fez da maneira a mais provinciana e corporativista que se poderia esperar, como se guardando zelosamente o próprio feudo contra uma ameaça estrangeira.

Por primário que fosse, o texto da revista lançava alguma luz sobre um fenômeno que muitos historiadores brasileiros gostariam de manter nas sombras: o fato de que a perspectiva marxista é praticamente hegemônica nos departamentos de História das universidades nacionais, com reflexos especialmente nocivos sobre os materiais didáticos voltados ao ensino fundamental e médio.

O predomínio da historiografia marxista não decorre de qualquer mérito intelectual próprio, mas de um trabalho incansável de ocupação de espaços nas escolas e universidades. Ali, os alunos são submetidos diariamente a uma visão simplista e monolítica dos acontecimentos históricos, interpretados sempre e exclusivamente na chave da luta de classes e do evolucionismo teleológico (feudalismo-capitalismo-socialismo-comunismo) típico da filosofia marxista da história. Lembro-me, ademais, de como os livros didáticos no meu ensino médio retratavam o comunismo e os líderes comunistas de maneira simpática, quando não mesmo heroica, e de como, por outro lado, os adversários do comunismo eram descritos como criaturas movidas apenas por egoísmo e ganância.

É na qualidade de símbolo daquela hegemonia que Hobsbawm tinha de permanecer imaculado. Nesse sentido, a Veja cometera a pior das iconoclastias. O problema não foi o de desrespeitar o historiador, mas o de profanar o herói cultural que legitima o espírito de corpo, a tacanhice, o fanatismo político e a monocultura teórica de boa parte dos historiadores brasileiros.

Resposta à Revista Veja assinada pelos historiadores da Anpuh foi um retrato perfeito de nossas mazelas. Em primeiro lugar, por maltratar a língua portuguesa, confirmando a situação catastrófica da educação brasileira, que leva professores universitários a escrever frases como “[Hobsbawm] entendeu assim, (sic) o cotidiano e as estratégias de vida daqueles milhares que viveram as agruras do desenvolvimento capitalista”. Ou ainda: “O tratamento desrespeitoso é dado logo no início do texto ‘historiador esquerdista’ (sic), dito de forma pejorativa e completamente destituído de conteúdo”.

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Em segundo lugar, pelo fato de seus autores recorrem a um patético argumento de autoridade (e que autoridade intelectual teria quem não sabe sequer escrever em sua própria língua?), tentando intimidar os autores da matéria com uma ‘carteirada’ acadêmica do tipo “Sabe com quem estão falando? Quem são vocês para criticar o Hobsbawm, um dos homens mais importantes do século 20?”. Tirando isso, redigido num estilo repleto de clichês açucarados tais como “contradições inerentes aos homens” – cuja aplicação a Hobsbawm chega a ser engraçada, uma vez que ele era sabidamente um primor de coerência e rigidez ideológica –, não há mais nada no manifesto, um sinal alarmante da baixa qualidade do debate no Brasil e, claro, da nossa intelligentsia.

Por óbvio, a matéria da Veja passa longe de uma análise séria e aprofundada do legado intelectual de Hobsbawm. Esse não é mesmo o papel de jornalistas e editores de um órgão de comunicação de massa, mas de intelectuais responsáveis, com conhecimento de causa. Contudo, graças à omissão destes últimos – cheios de dedos e pudores diante de personalidades consagradas, o que faz da academia um salão de chá, onde a atenção às regras de etiqueta sobrepõe-se às exigências de um debate intelectual honesto –, coube a uma revista de gosto duvidoso exercê-lo, sem, evidentemente, capacidade para tanto.

Hobsbawm era, sem dúvida, um homem de inteligência acima da média e um historiador competente. No entanto, no que se refere à realidade concreta da experiência comunista, o homem era um stultus

Tudo isso é muito nocivo para o debate cultural. O emprego que a revista faz do termo “idiota moral”, provavelmente com intenção meramente ofensiva, obscurece o fato de que, com uma explicação aprofundada, o rótulo pode vir a ser um termo técnico, cuja aplicação a Hobsbawm é correta. Em certa passagem de seu Hitler e os Alemães, por exemplo, o filósofo Eric Voegelin menciona o problema levantado pelo cientista político Waldemar Besson a respeito da ascensão de Hitler ao poder. Como fora possível, indagava-se Besson, que 70 milhões de pessoas tivessem sido dominadas por um “idiota”? Voegelin, então, comenta:

“Não farei de jeito nenhum uma propaganda da palavra ‘idiota’. É abrangente demais, e obviamente Hitler tinha uma inteligência eminente, pela qual era capaz de enganar outras pessoas. Mas ainda há algo nisso. Pois esse problema do idiota está, em última instância, relacionado com o problema do stultus, do tolo no sentido técnico... Esse fenômeno sempre foi reconhecido nas civilizações antigas. O tolo, o nabal, em hebraico, que por causa de sua tolice, nebala, cria desordem na sociedade, é o homem que não é um crente, nos termos israelitas da revelação. O amathes, o homem irracionalmente ignorante, é para Platão o homem que simplesmente não tem a autoridade da razão ou que não pode curvar-se a ela. O stultus, para Tomás, é o tolo, no mesmo sentido da amathia de Platão e do nebala dos profetas israelitas. Este stultus agora sofreu uma perda de realidade e age com base numa imagem deficiente da realidade e, assim, cria desordem”.

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Para Hobsbawm, o comunismo era muito mais do que um dado da realidade. Era, para usar o conceito de Voegelin, um escathon imanentizado – a promessa do tempo do “fim dos tempos”. Ao contrário do que fazia com outros fenômenos históricos, ao abordar o comunismo ele já não falava como o homem concreto, o historiador imerso em seu contexto histórico, mas como um representante daquele escathon, um profeta, alguém situado fora e para além da história. Assim, interpretava o desastre da experiência comunista não como um problema inerente àquela utopia política, mas como um desvio de rumo, obstáculo circunstancial e derrota momentânea. Tudo o que Hobsbawm pôde falar contra o regime de Stalin foi caracterizá-lo como decepcionante. A utopia comunista restou intacta e sem máculas. Uma vez corrigidos os problemas, seria o caso de tentar mais uma vez, e mais outra, e mais quantas vezes fossem necessárias até que o utópico pudesse, enfim, ver seu sonho político realizado. Como também escreveu Voegelin em A Nova Ciência da Política: “A interpretação escatológica da história resulta numa falsa imagem da realidade; e erros com respeito à estrutura da realidade têm consequências práticas quando a falsa concepção é tomada como base para a ação política”.

Hobsbawm era, sem dúvida, um homem de inteligência acima da média e um historiador competente. No entanto, no que se refere à realidade concreta da experiência comunista, o homem era um stultus. Por não ter, ao contrário de muitos de seus contemporâneos, feito um exame de consciência e abandonado uma utopia política de juventude – mesmo com os efeitos catastróficos que gerou na prática –, Hobsbawm sofreu uma “perda de realidade”. Sua imagem da realidade histórica do comunismo permaneceu, até o fim da vida, completamente distorcida, fazendo dele, de fato, um homem paralisado, inflexível, incapaz de juízo moral mesmo em face das maiores atrocidades. Fazendo dele, em suma, um “idiota moral”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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