“Não entendo como alguém pode desejar que o cristianismo seja verdadeiro; porque, se assim o for, a simples linguagem do texto parece reservar aos homens que não creem – e isso incluiria o meu pai, o meu irmão e quase todos os meus melhores amigos – o castigo eterno. E essa é uma doutrina abominável.” (Charles Darwin)
Refletindo sobre o antievolucionismo de William Jennings Bryan, e após recapitular a sua atuação durante o Julgamento do Macaco, o paleontólogo evolucionista Stephen Jay Gould, um tanto quanto consternado, observa em seu livro Rock of Ages: Science and Religion in the Fullness of Life:
“Eu gostaria de poder parar por aqui, com um comentário sarcástico sobre a rusticidade de Bryan e uma defesa da interpretação científica adequada do darwinismo. Mas esse juízo desdenhoso seria injusto, porque Bryan não pode ser condenado quanto a um aspecto crucial. Só Deus sabe o quão pouco ele entendia de ciência, e a sua lógica argumentativa não era lá grande coisa. Mas, quando dizia que o darwinismo vinha sendo usado para a defesa da guerra, da dominação e da exploração, ele estava certo.”
Gould também está certo quanto a isso. No decorrer da obra supracitada, é incessante o esforço do autor para dissociar a legítima teoria darwinista dos maus usos que dela fizeram os ideólogos do darwinismo social e da eugenia. Se Bryan tinha razão quanto às consequências nefastas do fenômeno, errava ao responsabilizar a teoria em si. “O criador de uma ideia não pode ser responsabilizado pelos usos odiosos de sua teoria”, Gould conclui.
As primeiras derivações culturais do paradigma da seleção natural – a exemplo do racismo científico – não surgiram de discípulos infiéis ou intérpretes leigos, mas de alguns dos colaboradores mais próximos a Darwin
De modo genérico, a tese está correta. Mas, no caso em tela, a oposição absoluta entre a teoria biológica “pura” e a ideologia que suscitou não é tão fácil de sustentar. Primeiro, porque o darwinismo social é anterior à teoria de Darwin, mesmo que, por óbvio, ainda não tivesse esse nome. A expressão “sobrevivência do mais apto”, por exemplo, foi cunhada por Herbert Spencer em 1884. Mas já em 1850, portanto quase dez anos antes da publicação de A Origem das Espécies, o mesmo autor sintetizara no livro Estática Social os fundamentos da ideologia evolucionista, que formava o pano de fundo pré-científico (ou “pré-analítico”, como diria o economista J. A. Schumpeter) da teoria da evolução das espécies.
Segundo, porque a rapidez com que a hipótese da seleção natural foi convertida numa série de planos de engenharia social deveria bastar para, ao menos, levantar a suspeita de haver um algo de potencialmente ideológico já na própria estrutura interna da teoria. Ainda mais se lembrarmos que as primeiras derivações culturais do paradigma da seleção natural – a exemplo do racismo científico – não surgiram de discípulos infiéis ou intérpretes leigos, mas de alguns dos colaboradores mais próximos a Darwin, como, por exemplo, o próprio Francis Galton (de quem falamos no artigo anterior), ou Ernest Haeckel, ou ainda Thomas Huxley. Deste último, aliás, eram frequentes opiniões como a seguinte: “Nenhum homem racional, conhecendo os fatos, pode crer que o negro médio seja igual, e muito menos superior, ao homem branco”.
O próprio Charles Darwin parecia ter plena consciência das relações entre a sua hipótese científica e os seus possíveis usos político-sociais. Em A Descendência do Homem, obra publicada depois de A Origem das Espécies, lemos que:
“Algumas observações devem ser feitas sobre a ação da seleção natural sobre as nações civilizadas. Esse tema foi adequadamente discutido pelo Sr. W. R. Greg, e antes pelos Srs. Wallace e Galton. A maior parte dos meus comentários deriva desses três autores. Com os selvagens, os fracos de corpo e de alma são logo eliminados; os que sobrevivem costumam exibir um estado vigoroso de saúde. Nós, civilizados, por outro lado, fazemos o máximo para conter o processo de eliminação; construímos asilos para os loucos, os mutilados e os doentes; instituímos políticas para os mais pobres; e nossos médicos exercem toda a sua habilidade para salvar a vida de todos até o último momento. Há razão para crer que a vacinação preservou milhares de pessoas, que de outro modo teriam sucumbido à varíola graças à sua débil constituição. Assim, os elementos mais fracos das sociedades civilizadas podem ainda propagar a sua espécie. Ninguém que conheça o processo de criação de animais terá dúvidas do quão pernicioso isso será para a raça humana. É surpreendente a rapidez com que a falta de atenção, ou a atenção mal dirigida, pode levar à degeneração de uma raça doméstica; mas, excetuando o caso do próprio homem, ninguém seria tão ignorante a ponto de permitir que os piores animais procriassem.”
Em linhas gerais, o naturalista concordava com a tese de seu primo Francis, como resta claro noutra passagem do mesmo livro:
“Sabemos hoje, graças aos admiráveis esforços do Sr. Galton, que o gênio, que implica uma combinação espantosamente complexa de altas faculdades, tende a ser herdado; e que, por outro lado, também é certo que a insanidade e a deterioração mental também se transmitem nas mesmas famílias.”
E, fiel ao Zeitgeist, também referendava o racismo científico, considerando mais próximos da animalidade os povos não caucasianos:
“Em algum momento futuro, não tão distante para ser medido em séculos, as raças humanas civilizadas irão certamente exterminar e substituir as raças selvagens por todo o mundo. Ao mesmo tempo, os macacos antropomorfos (…) serão sem dúvida exterminados. O hiato se tornará maior, pois se dará entre o homem em um estado mais civilizado (espera-se) que o caucasiano e algum símio inferior como o babuíno, em vez do que se dá agora, entre o negro ou o australiano e o gorila.”
A teoria da evolução das espécies é, possivelmente, um híbrido de ciência e política desde a origem. A pureza que lhe atribuíram Stephen Jay Gould e outros evolucionistas é uma abstração posterior
Chama a atenção a naturalidade com que, nos meios cultos europeus da virada do século 19 para o 20, sobretudo entre progressistas, evolucionistas e anticristãos, evocava-se o tempo todo o problema das “raças inferiores”. Dez anos antes da publicação de A Origem das Espécies, por exemplo, ninguém menos que Karl Marx e Friedrich Engels propunham o “extermínio total” de povos tidos por historicamente atrasados (e politicamente reacionários), a quem os pais do comunismo atribuíam o rótulo de “lixo racial” (Völkerabfälle). A expressão original em alemão que aqui traduzo por “extermínio total” é gänzlichen Vertilgung, sendo que o último termo, um substantivo feminino, denota especificamente o extermínio de pragas e insetos.
A teoria da evolução das espécies é, possivelmente, um híbrido de ciência e política desde a origem. A pureza que lhe atribuíram Stephen Jay Gould e outros evolucionistas é uma abstração posterior, uma criação ideológica ex post facto. Apesar dos méritos científicos inegáveis, a consagração da teoria deu-se menos por esse motivo do que pela atração exercida por sua metafísica implícita, a qual, negando o sentido transcendente da vida humana, opunha-se essencialmente à cosmovisão judaico-cristã. Em 1838, 21 anos antes de publicar sua teoria, Darwin já a manifestara, ao apontar a suposta húbris da concepção mosaica do homem: “Em sua arrogância, o homem vê-se como uma grande obra, digna da intervenção de uma divindade. Mais humilde, creio mais verdadeiro considerá-lo como tendo surgido dos animais” (citado por James Rachels em Created from Animals: The Moral Implications of Darwinism).
A metafísica darwinista, por sua vez, suscitou gatilhos psicológicos entre os bem-pensantes da época, gerando um desejo de ampla reforma moral. E disso quase não se fala. Ao contrário, o que sempre ouvimos por aí é uma velha e repetitiva arenga sobre as razões psicológicas da crença religiosa. Desde a explicação marxista da religião como “ópio do povo”, passando pela concepção freudiana da religião como “ilusão reconfortante” – a tentativa humana de reconstituir simbolicamente os laços com a natureza, necessariamente rompidos para a instituição traumática da cultura –, foram propostas diversas interpretações equivalentes, cuja tônica pode ser resumida na afirmação do ateísta francês Michel Onfray: “Os religiosos preferem os confortáveis contos de fada da infância do que a dura e cruel realidade dos adultos”.
Se essas análises são abundantes, as que buscam compreender as motivações psicológicas da descrença são, por sua vez, extremamente raras. E não se pode alegar ausência de dados para justificar a lacuna. Quem quer que se dedique a escarafunchar os escritos de pensadores céticos, ateus ou agnósticos não tardará em achar pistas. Sobre a possibilidade de vida após a morte, por exemplo, manifestou-se certa vez o já citado H. L. Mencken: “A minha inclinação privada é torcer para que não haja” (citado por S. T. Joshi em H. L. Mencken on Religion). Já o filósofo Thomas Nagel reconheceu padecer do que chamou de medo da religião: “Anseio que o ateísmo seja verdadeiro (…) Não é simplesmente que eu não acredite em Deus (…) Eu não quero que haja um Deus. Não quero que o universo seja desse jeito”.
Com efeito, muitos intelectuais se interessaram pelo darwinismo por verem nele o pretenso carrasco da noção cristã de uma natureza humana superior. Como se sabe, Freud costumava dizer que, após a revolução copernicana, a publicação de A Origem das Espécies tinha sido o segundo grande abalo na autoimagem narcísica da espécie humana. Nesse sentido, o evolucionismo vinha ao encontro de um sentimento generalizado na intelligentsia europeia da época, um desejo de dessacralização e emancipação da vida humana em face da autoridade divina. Julien Huxley, neto de Thomas Huxley, confessou: “É enorme a sensação de alívio espiritual advindo da rejeição da ideia de Deus”. Assim como seu irmão Aldous, o grande romancista, que formulou a coisa em termos abertamente hedonistas:
“Eu tinha motivos para não querer que o mundo tivesse sentido; consequentemente, presumi que não o tinha, e pude sem dificuldade achar motivos satisfatórios para essa presunção (…) Para mim, e sem dúvida para a maioria de meus contemporâneos, a filosofia do não sentido era essencialmente um instrumento de libertação. Queríamos nos livrar de um certo sistema de moralidade. Contrapunhamo-nos à moralidade porque ela interferia em nossa liberdade sexual.”
O evolucionismo vinha ao encontro de um sentimento generalizado na intelligentsia europeia da época, um desejo de dessacralização e emancipação da vida humana em face da autoridade divina
Compreende-se, assim, o significado do darwinismo para pessoas com esse tipo de expectativas, desejos e temores. Como nota o matemático David Berlinski, crítico mordaz do ateísmo de inspiração darwinista, o prognóstico dostoievskiano “se Deus não existe, tudo é permitido” adquiriu força por haver se tornado parte de um silogismo muito presente na visão de mundo cientificista-materialista: se Deus não existe, tudo é permitido; se a ciência (darwinista) é verdadeira, logo, Deus não existe; se a ciência é verdadeira, logo, tudo é permitido.
No artigo da semana que vem, o último dessa série sobre as consequências morais da descristianização da cultura, recuaremos até as raízes filosóficas remotas da moralidade materialista-cientificista. E, quando em filosofia falamos em recuo às raízes, estamos obviamente nos referindo à Grécia, que, portanto, será o destino final da nossa viagem.
Hugo Motta troca apoio por poder e cargos na corrida pela presidência da Câmara
Eduardo Bolsonaro diz que Trump fará STF ficar “menos confortável para perseguições”
MST reclama de lentidão de Lula por mais assentamentos. E, veja só, ministro dá razão
Inflação e queda do poder de compra custaram eleição dos democratas e também racham o PT