“Julgue, senhor, minha surpresa, quando me dei conta de que uma grande parte da Assembleia – a maioria, creio, dos membros que efetivamente ocuparam suas cadeiras – era composta de homens de lei. Não de magistrados notáveis, que tivessem dado a seu país os frutos de sua ciência, prudência e integridade; também não eram brilhantes advogados, glória dos tribunais, nem professores de renome em universidades; não, eram, em sua maioria, como é aliás fatal em tais reuniões de homens, os profissionais inferiores, ignorantes, mecânicos, meros membros instrumentais da profissão... O conjunto se compunha de obscuros advogados de província, de oficiais de pequenas jurisdições locais, de procuradores do campo, de tabeliães e todo o bando de chicaneiros municipais, fomentadores e líderes da pequena guerra de insultos de vila. Assim que vi a lista, vi distintamente, e quase como se passou, tudo aquilo que se seguiria”
(Edmund Burke, Reflexões sobre a Revolução em França)
Em Hitler e os Alemães, o filósofo Eric Voegelin analisa cartas de leitores enviadas ao Süddeutsche Zeitung, jornal alemão fundado no imediato pós-guerra. Numa delas, um jovem estudante rebatia críticas a Anatomia de um Ditador (1963), obra polêmica do historiador Percy Ernst Schramm, à época acusado de retratar Hitler com alguma benevolência.
Notando de passagem que, em sua missiva, o jovem fazia questão de se referir a Schramm como “professor doutor”, Voegelin observa pontualmente: “Talvez não possais avaliar este ‘professor doutor Schramm’ tanto quanto eu, porque vivi no período nacional-socialista e vi quão extraordinariamente respeitosos eram os nacional-socialistas com títulos. Da parte dos nacional-socialistas, entre as pessoas comuns, Goebbels nunca era chamado de ‘Goebbels’; era sempre ‘doutor Goebbels’. Se alguém é um doutor, então isso deve ser algo bom; se alguém é um professor, mais ainda. Portanto: ‘professor doutor Schramm’”.
A observação de Voegelin é reveladora. Para além do contexto nazista, a atenção desmesurada a títulos acadêmicos, bem como a cerimoniais, liturgias, regras de etiqueta e jargões especializados, indica quase sempre a presença de personalidades mesquinhas e afetadas, quando não psicóticas, e de todo modo frágeis. Em vez de tomar esses símbolos exteriores por representações de realidades mais profundas e duradouras (um título como símbolo de conhecimento, por exemplo), esses espíritos medíocres os tomam, ao contrário, por seus substitutos.
Na total ausência da substância a que a forma deveria remeter, fetichiza-se a forma mesma, até o ponto do histrionismo. Ademais, o zelo histérico por rituais profanos quase sempre se faz acompanhar de uma espantosa insensibilidade moral. Ninguém adora mais um título acadêmico do que o ignorante ressentido que, por meio dele, busca exercer uma vingança contra os que, de fato, conhecem. Ninguém se apega tanto aos cerimoniais do que o fracote autoritário, cuja autoridade – ilegítima – não deriva de nada que lhe seja inerente, mas tão somente da posição que, com base em arrivismo e tráfico de influências, terminou por ocupar. Ninguém se ofende mais profunda e sinceramente com a violação de uma regra de etiqueta que o psicopata incapaz de nutrir empatia por outrem.
Comparado a um Marco Aurélio Mello, é provável que o rei Luís XVI fosse visto como um espírito igualitário e de ambições assaz modestas
Lembrei imediatamente da análise de Voegelin sobre a corrupção espiritual nacional-socialista – caracterizada por uma inconfundível mistura de hipersensibilidade estética com insensibilidade ética – quando soube dos faniquitos recentes de Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), ocorridos no intervalo de pouco mais de uma semana. No primeiro episódio, Mello repreendeu um funcionário do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina pela imperdoável ousadia de dirigir-lhe a palavra a fim de convidá-lo para uma cerimônia de entrega de medalhas. Qual um Brâmane ofendido de morte pelo contato fortuito com um Dalit, o ministro recusou o convite, “ante a quebra da liturgia própria do Judiciário” (sic). E admoestou, com afetação de dignidade ofendida: “Integrante de Cerimonial não se dirige diretamente a Ministro do Supremo”.
No segundo episódio, durante julgamento sobre a contribuição para o INSS no decorrer da licença-maternidade, Mello ofendeu-se ao ter sido tratado de “você” por uma jovem advogada. Queixando-se ao presidente da sessão, o ministro Luís Roberto Barroso, disse o melindrado colega de corte: “Presidente, novamente o advogado se dirige aos integrantes do tribunal como vocês”. E, como não poderia deixar de ser, fez questão de lembrar: “Há de se observar a liturgia” (sempre ela, a liturgia). Referindo-se ironicamente à autora de tão grave violação, disse ainda: “É uma doutora, professora”. E, claro está, uma professora doutora (lembram-se do “professor doutor Schramm”?) deve, antes de qualquer outro atributo, saber cumprir fielmente a liturgia, porque, para tipos como Marco Aurélio Mello, os títulos são isto e nada mais: adornos, enfeites, símbolos aristocráticos de distinção – em suma, privilégios.
Como dissemos acima, não é de se espantar que um sujeito intelectual e moralmente débil, tendo chegado onde chegou graças a um flagrante ato de nepotismo (já que indicado ao cargo pelo primo Fernando Collor de Mello), se aferre tão ciosamente à “liturgia própria do Judiciário” como forma de autocompensação neurótica pelo reconhecimento íntimo e secreto da própria mediocridade. Porque, para Marco Aurélio Mello e boa parte de seus colegas, estar no Supremo Tribunal Federal nada tem a ver com a missão (em tese, nobre) de zelar pela Constituição e ministrar a justiça. Não, para ele, a cadeira no STF é como um título de nobreza, que lhe confere toda sorte de privilégios, bem como a oportunidade do exercício mesquinho do poder. Daí todo o beletrismo e o bacharelismo dos abomináveis homens de toga, que, alienados e autossatisfeitos em seus convescotes palacianos, bailam alegremente sobre a tampa do caldeirão fervente da indignação popular. Afinal, o que é o cargo, para um tipo frívolo como Marco Aurélio Mello, senão a sua liturgia? O que é a toga senão um sucedâneo do manto real dos tempos antigos?
Eis um dos pecados originais da República brasileira, encarnado de modo paradigmático no nosso atual STF: contrariando a etimologia da palavra, não há traço de zelo pela “coisa pública” no espírito dos nossos republicanos e neorrepublicanos. O que há, ao contrário, é o projeto mal disfarçado de construir uma nova nobreza, cujo desejo por distinção e privilégio faria corar de vergonha qualquer membro do nosso “Antigo Regime”.
“O povo gosta de luxo. Quem gosta de miséria é intelectual”. A frase imortal de Joãozinho Trinta serve perfeitamente para analisar a história política nacional. O povo brasileiro não parece ter nenhum problema com a autoridade, nenhum problema em obedecer, conquanto a autoridade represente algo de elevado, belo e perene. Como explica a Rainha-Mãe à então recém-monarca Elizabeth II numa cena memorável da minissérie The Crown, a monarquia simboliza aquela perenidade, transcendendo o baixo mundo da política governamental, com seus ardis, arrivismos e brigas de foice no escuro. A Coroa é a manifestação do divino na Terra.
Os primórdios da nossa crise contemporânea de autoridade remontam ao momento em que se extirpou da consciência do povo aquele ideal de intangibilidade e transcendência, substituindo-se o monarca por uma interminável ralé de figuras políticas desqualificadas, digladiando-se entre si – qual abutres (ou hienas) – sobre a carniça do poder político. Na ausência de sua fundamentação transcendente, este passou a representar todo o sentido da vida para os espíritos gananciosos. Excitados pela mística iluminista do período, os republicanos viram no poder político um meio de enriquecimento pessoal e ascensão social. Daí que, de 1889 até hoje, temos assistido a um festival de novos ricos empetecados, sorvendo em goles afoitos, um após o outro, as suas taças de Romanée-Conti, e lambuzando-se nas afetações e salamaleques de suas liturgias profanas.
No Brasil pré-republicano, enquanto o povão nutria uma espécie de temor reverencial (e não raro até admiração) pelo mundo fantástico e medieval de reis, príncipes e princesas, odiava-o de morte a elite política e cultural plebeia, cuja relação com a monarquia consistia em pura rivalidade mimética. Ora, se não há nada de eterno e transcendente no poder, qualquer aproveitador de quinta categoria pode passar a pretendê-lo. E, evidentemente, esse aproveitador confundirá os símbolos externos do poder com a sua essência.
Se, no passado, o manto real era índice da submissão humana à transcendência divina, jogando sobre os ombros de quem o envergava todo o peso e a responsabilidade de uma tradição imemorial, a toga preta é, hoje, símbolo do exercício de um poder mesquinho e de todo imanente, erguido sobre direitos e privilégios, jamais sobre deveres e responsabilidades. Comparado a um Marco Aurélio Mello, é provável que o rei Luís XVI fosse visto como um espírito igualitário e de ambições assaz modestas.