“Didier Eribon: – Gostaria de fazer-lhe uma pergunta simples: que é um mito?
Claude Lévi-Strauss: – Se você interrogar um índio americano, seriam muitas as chances de que a resposta fosse: uma história do tempo em que os homens e os animais ainda não eram diferentes.”
Entre os anos de 1911 e 1913, o etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) chefiou uma expedição à região amazônica compreendida entre o Monte Roraima e o médio curso do Rio Orinoco, zona então incógnita e repleta de perigos, que apenas 30 anos depois, em condições bem mais seguras, os etnógrafos voltariam a percorrer. Tendo dedicado toda a sua vida ao estudo das sociedades indígenas sul-americanas, Grünberg já havia feito outras viagens ao Brasil profundo, como quando, entre 1898 a 1900, aos 20 anos, integrou a expedição de Herman Meyer ao Alto Xingu, ou quando, de 1903 a 1905, explorou a região do Alto Rio Negro. A viagem pela região fronteiriça entre Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa tampouco seria a derradeira.
Essa se daria apenas em 1924, quando aceitou o convite do geógrafo norte-americano Hamilton Rice para uma expedição que visava à exploração das nascentes do Orinoco. A campanha não teve êxito e, vitimado pela malária, Grünberg faleceu no dia 8 de outubro em Vista Alegre, lugarejo do médio Rio Branco, próximo ao atual município de Caracaraí. Encerrado num túmulo de mármore róseo e negro – homenagem do amigo Rice –, seu corpo permaneceu ali durante algum tempo, até que, por sugestão do escritor Luís da Câmara Cascudo à Federação das Academias Brasileiras, fosse enviado à Academia Amazonense de Letras. Os despojos quase se perderam na capital amazonense, indo parar no depósito dos espólios da Chefatura da Polícia Civil, até que, entre muitas idas e vindas, terminassem por fim repousando num túmulo modesto do São João Batista, cemitério público de Manaus.
O resultado da expedição dos anos 1911-1913 foi a publicação de Do Roraima ao Orinoco: observações de uma viagem pelo norte do Brasil e pela Venezuela durante os anos de 1911 a 1913, obra publicada em cinco volumes, dos quais o segundo, publicado originalmente em 1916, é dedicado à mitologia dos índios Taurepang e Arekuna (hoje autonomeados Pemon, termo que significa “gente” ou “povo”), falantes de línguas da família Karib. Posto que desconhecido em primeira mão do público brasileiro – tanto quanto ignorados foram os ilustres restos mortais desse pai fundador da nossa etnologia –, o estudo sobre os mitos dos Taulipangue e Arekuna acabou tendo uma importância indireta para a cultura brasileira de forma geral, servindo de inspiração para que Mário de Andrade escrevesse Macunaíma (Makunaíma), o demiurgo Karib que o modernista paulistano transformou em símbolo nacional.
O leitor talvez queira se acomodar e rir com os índios da saga de Pu’iito, a quem Koch-Grünberg descreveu como “a personificação mais esquisita de que se tem memória”
Mas, nesta coluna de hoje (que foge um pouco à temática habitual), gostaria de falar não do famoso “herói sem nenhum caráter”, mas de um personagem bem mais inusitado – e extraordinariamente cômico – do panteão da mitologia indígena. Mas, primeiro, recomendo ao leitor imaginar-se numa aldeia Taurepang ou Arekuna, nas terras indígenas São Marcos ou Raposa Terra do Sol, situadas no perímetro delimitado a oeste pelo Rio Parimé, a leste pelos rios Surumu e Miang, e, no eixo norte-sul, pela junção dos rios Tacutu e Uraricoera, formadores do Branco. É a hora do crepúsculo vespertino e, após um dia exaustivo de roça e caça, os índios reúnem-se para contar e ouvir histórias imemoriais, histórias que, dentre outras, têm a importante função de fazer rir. Afinal, como escreveu certa vez o etnólogo francês Pierre Clastres:
“Não menos sérios para os que narram (os índios, por exemplo) do que para os que os recolhem ou leem, os mitos podem, entretanto, desenvolver uma intensa impressão de cômico; eles desempenham às vezes a função explícita de divertir os ouvintes, de desencadear sua hilaridade. Se estamos preocupados em preservar integralmente a verdade dos mitos, não devemos subestimar o alcance real do riso que eles provocam e considerar que um mito pode ao mesmo tempo falar de coisas solenes e fazer rir aqueles que o escutam. A vida cotidiana dos ‘primitivos’, apesar de sua dureza, não se desenvolve sempre sob o signo do esforço ou da inquietude; também eles sabem propiciar-se verdadeiros momentos de distensão, e seu senso agudo do ridículo os faz várias vezes caçoar de seus próprios temores. Ora, não raro essas culturas confiam a seus mitos a tarefa de distrair os homens, desdramatizando, de certa forma, sua existência.”
Livre do inconveniente dos mosquitos (eis uma das vantagens das expedições etnográficas virtuais), o leitor talvez queira se acomodar e rir com os índios da saga de Pu’iito, a quem Koch-Grünberg descreveu como “a personificação mais esquisita de que se tem memória”. No terceiro volume de sua tetralogia Mitológicas, o antropólogo Claude Lévi-Strauss inseriu a história num conjunto de mitos de origem da digestão. Segue uma versão Taurepang, colhida por Grünberg junto ao seu principal informante, o índio Mayuluaipu, que a narrou assim:
“Antigamente, os animais e as pessoas não tinham ânus para defecar. Acho que defecavam pela boca. Pu’iito, o ânus, andava por aí, devagar e cautelosamente, peidando no rosto dos animais e das pessoas, e depois fugia. Então os animais disseram: ‘Vamos agarrar Pu’iito, para dividi-lo entre nós!’ Muitos se juntaram e disseram: ‘Vamos fingir que estamos dormindo! Quando ele vier, vamos pegá-lo!’ Assim fizeram. Pu’iito veio e peidou na cara de um deles. Então correram atrás de Pu’iito, mas não conseguiram pegá-lo e ficaram para trás. Os papagaios Kuliwai e Kaliká chegaram próximos de Pu’iito. Correram muito. Finalmente o pegaram e o amarraram. Então vieram os outros, que tinham ficado para trás: a anta, o veado, a cutia, o mutum, o jacu, o cujubim, o pombo... Começaram a reparti-lo. A anta pediu logo um pedaço para ela. Os papagaios cortaram um grande pedaço e o jogaram para os outros animais. A anta imediatamente o pegou. Por isso ela tem um ânus tão grande. O papagaio cortou para si um pedaço pequeno, como lhe era adequado. O veado recebeu um pedaço menor que o da anta. Os pombos tomaram um pedaço pequeno. Veio o sapo e pediu que lhe dessem também um pedaço. Os papagaios jogaram um pedaço na sua direção, o qual grudou nas suas costas: por isso o sapo ainda hoje tem o ânus nas costas. Todos os animais, os pássaros e os peixes receberam um pedaço. Veio, então, o pequeno peixe Karoid [uma espécie de enguia] e também pediu um pedaço para si. Os papagaios jogaram um pedaço na sua direção, o qual ficou pendurado na sua garganta: ainda hoje ele tem o ânus no pescoço. Foi assim que adquirimos nossos ânus. Se hoje não o tivéssemos, íamos ter de defecar pela boca, ou então arrebentar.”
Pondo-nos momentaneamente no lugar dos Taurepang, agradeçamos a Pu’itto por suas travessuras. E também aos simpáticos psitacídeos Kuliwai e Kaliká, que, precisando da boca para falar pelos cotovelos (que não possuem), já não podiam mais se dar ao luxo de ocupá-la com fezes. Graças a esses seres tão antigos quanto exóticos, também nós, beneficiários da lendária partilha, temos hoje a boca livre para falar. Ao menos por enquanto. Afinal, como ensinam tanto a fisiologia quanto a filosofia digestivas, a contrapartida da boca é o medo...