“Tenho medo. À minha frente está o vírus. E às minhas costas está o poderio legal e administrativo da China.” (Chen Qiushi, blogueiro chinês que desapareceu depois de postar vídeos documentando o começo da epidemia da Covid-19 em Wuhan)
“Cheguei à conclusão de que o objetivo da propaganda nos países comunistas não era persuadir, e muito menos informar, mas humilhar e emascular. Nesse sentido, quanto menos ela fosse verdadeira, quanto menos correspondesse à realidade, melhor; quanto mais contradissesse a experiência das pessoas às quais se dirigia, mais dóceis e mais impotentes elas ficavam, desprezando-se mais e mais por não protestar.” (Theodore Dalrymple, Viagens aos Confins do Comunismo)
Desde que a pandemia do coronavírus chegou ao país, e como costuma ocorrer em tempos de peste, teve início uma caçada ao bode expiatório supostamente responsável pelo mal. Nesse contexto, muita gente passou a culpar abertamente a China e a cultura chinesa pela crise. Em alguns casos – como denunciou o empresário sino-brasileiro Winston Ling em seu perfil no Twitter –, chegamos a ter manifestações lamentáveis de xenofobia e racismo.
Além de moralmente reprovável em si, esse tipo de atitude ignora um dado básico da realidade: o que aconteceu na China não se deu por nenhum traço nacional particular. Embora muitos responsabilizem, com boa dose de razão, os chamados “wet markets” chineses – mercados nos quais se comercializa toda sorte de animal vivo, em condições precárias de higiene –, a verdade é que esse tipo de negócio não é uma exclusividade da China, sendo muito comum em outros países asiáticos e também na América Latina.
O problema, portanto, não é a China enquanto nação, nem a cultura chinesa ou o povo chinês. Por outro lado, não seria incorreto dizer que o problema está na China – como está e esteve em muitos outros países do mundo ao longo dos séculos 20 e 21. Pois o grande responsável pela pandemia já deteve o poder na Albânia, na Romênia, na Tchecoslováquia, na Alemanha Oriental, na Polônia... E continua no poder (embora muitas vezes disfarçado) na Rússia, em Cuba, na Venezuela, na Coreia do Norte. Assim como a Covid 19, essa espécie de vírus político também não respeita fronteiras nacionais. Logo, o problema não é a China. O problema é o comunismo.
No livro Viagens aos Confins do Comunismo, o psiquiatra Theodore Dalrymple relata a sua experiência de visitar países que, em 1989, momento em que o comunismo parecia ruir em sua pátria-mãe, insistiam na manutenção do sistema político (em tese) moribundo. Em certo trecho, o autor menciona a capacidade que tem o comunismo de borrar particularidades nacionais e culturais: “Minhas visitas foram breves, e por isso minha experiência de cada país, por mais intensa que tenha sido, foi necessariamente limitada; porém, como os países tinham culturas muito diversas, os efeitos comuns produzidos pelo comunismo ficavam ressaltados ainda mais claramente” (grifos meus).
O problema não é a China enquanto nação, nem a cultura chinesa ou o povo chinês. Mas não seria incorreto dizer que o problema está na China: o problema é o comunismo
Entre as características básicas, comuns e transculturais, que Dalrymple identificou nos países comunistas que visitou, uma delas tem especial interesse no contexto da atual pandemia. Sobre isso, escreve o autor: “Tirando os massacres, as mortes e as fomes pelas quais o comunismo foi responsável, a pior coisa do sistema era a mentira oficial, isto é, a mentira de que todos eram obrigados a participar, por consentimento ou por não contradizê-la” (grifos meus).
Quem conhece minimamente a literatura sobre essa pandemia político-ideológica há de concordar com o autor. De fato, a mentira oficial parece ser o grande denominador comum dos regimes comunistas. Foi ela, por exemplo, a responsável pelo desastre nuclear em Chernobyl, quando a realidade latente dos defeitos estruturais no projeto das usinas foi soterrada pela máquina de propaganda soviética. “Nossos segredos e mentiras são praticamente o que nos define. Quando a verdade ofende, nós mentimos e mentimos, até que não nos lembremos mais que ela existe, mas a verdade ainda existe. Cada mentira que contamos gera uma dívida com a verdade. Cedo ou tarde essa dívida deve ser paga” – eis como o químico Valery Legasov abre o seu monólogo final na minissérie Chernobyl, da HBO.
Legasov (na série, brilhantemente interpretado pelo ator Jared Harris) foi um dos cientistas responsáveis pelo projeto das usinas nucleares soviéticas, e o primeiro a exibir a singular coragem de denunciar as suas falhas, enfrentando, ao risco da própria vida, o vasto sistema soviético de ocultação da verdade. O que Legasov começou por revelar é que, mais que um acidente, a explosão do reator da usina nuclear de Chernobyl (joia da coroa da propaganda da industrialização soviética) foi o resultado de uma sucessão interminável de mentiras impostas pelo regime comunista. Por medo do regime, todos mentiam para todos e, sobretudo, para si mesmos, até que a verdade recalcada explodisse, enfim, junto com o núcleo do reator.
Podemos dizer que a pandemia do coronavírus é a Chernobyl do século 21. Com o seu edifício de mentiras, o regime comunista chinês permitiu a universalização da peste. Como já havia feito em 2002, quando ocultou do mundo a irrupção da epidemia de Sars (síndrome respiratória aguda grave), a ditadura chinesa voltou a fuzilar a verdade.
Em seu perfil no Twitter, Rodrigo Silva, fundador do site Spotniks, fez um apanhado de notícias que perfazem a linha de tempo da pandemia, resultado do comportamento criminoso do Partido Comunista Chinês. Ficamos sabendo, entre outras coisas, que, já em fins de dezembro, a Covid-19 fora responsável pelo adoecimento de pacientes de um hospital de Wuhan. Quando Li Wenliang, médico local, tentou alertar os colegas, a polícia chinesa forçou-o a assinar uma declaração classificando o alerta como “comportamento ilegal”. Além de Wenliang – espécie de Legasov contemporâneo, e que que viria a ser uma das mortes causadas pela Covid-19 (isso segundo as fontes oficiais) –, outros sete médicos foram levados pela polícia e obrigados a assinar um documento admitindo ter “espalhado mentiras” sobre o novo vírus.
Naquele contexto, um outro médico, o cirurgião Wang Guangbao (que também é um escritor popular no leste do país), confessou que notícias de um novo coronavírus já vinham circulando na comunidade dos profissionais de saúde desde o início de janeiro, mas que a detenção de Li e outros colegas intimidou muita gente, incluindo ele próprio. “As detenções fizeram com que todos nós, médicos, nos sentíssemos em risco” – disse Guangbao.
Também em dezembro, um técnico de laboratório contratado por hospitais informou ter recebido amostras provenientes de Wuhan, concluindo pela existência de um novo coronavírus muito similar ao da Sars. Uma amostra do vírus foi retirada de um paciente e enviada a um laboratório para o sequenciamento do genoma. Com os resultados prontos três dias depois, as autoridades de Hubei mandaram que as amostras fossem destruídas.
A pandemia do coronavírus é a Chernobyl do século 21. Com o seu edifício de mentiras, o regime comunista chinês permitiu a universalização da peste
Em janeiro, as informações sobre o coronavírus continuavam vetadas pelo regime – que, como se sabe, exerce um controle rígido e impenetrável sobre a internet e os meios de comunicação, todos submetidos às autoridades do PC chinês. Os internautas foram fortemente “aconselhados” a não espalhar “rumores” e “boatos”. O aplicativo de mensagens WeChat (versão chinesa do WhatsApp) continua censurando menções ao coronavírus.
Como se não bastasse, em fevereiro começou o desaparecimento de jornalistas e ativistas que cobriam o coronavírus e, de algum modo, denunciavam na internet a postura das autoridades. Destacam-se os casos do empresário Fang Bin e do advogado Chen Qiushi, que ficaram relativamente famosos ao postar lives direto das ruas de Wuhan. Depois de abordados e interrogados pela polícia por causa do material “subversivo”, ambos sumiram misteriosamente. Desde então, de acordo com uma ONG chinesa de defesa dos direitos humanos, mais de 350 pessoas ao redor do país já foram punidas por “espalhar rumores” sobre a epidemia.
Esses são, enfim, apenas alguns exemplos do que tem acontecido na China desde os primeiros sinais de surgimento da pandemia. Eles deixam claro que o comunismo chinês mantém viva a tradição de aniquilar a verdade, perseguir e humilhar os seus defensores. E se, como sugeriu o pai fundador dessa ideologia perversa, a história se repete, primeiro como tragédia, e depois como farsa, resta-nos concluir que, na história comunista, é a própria farsa que se repete como tragédia.
“Cada mentira que contamos gera uma dívida com a verdade. Cedo ou tarde essa dívida deve ser paga” – disse Valery Legasov. E o mundo tem agora de pagar a dívida gerada pela grande muralha de mentiras erguida pelo comunismo chinês. Chernobyl é aqui. E a peste do século 21 é vermelha.
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