“Os meios de vulgarização intelectual de nossa época, periodismo, rádio, televisão, o teatro e o livro estão infestados da mais desenfreada propaganda do inferior e do primitivo” (Mário Ferreira dos Santos, A Invasão Vertical dos Bárbaros)
“O Brasil vai voltar a ter um presidente do povo” – disse a funkeira Valesca Popozuda ao comemorar o convite para se apresentar na posse do presidiário “eleito”, marcada para o 1.º de janeiro de 2023. E a fala fez-me lembrar de quando, no ano de 2014 (o inconclusivo Ano da Marmota eleitoral), a personagem em questão foi descrita numa prova do ensino médio como uma “grande pensadora contemporânea”. Eram tempos estranhos. Tempos que, lamentavelmente, voltaram.
Na ocasião, a imprensa lacradora e prafrentex foi atrás de seus “especialistas” prêt-à-porter para normalizar a caracterização, que, por óbvio, havia gerado polêmica. Encontrou um deles na Universidade de Brasília (UnB), um criadouro de sociólogos de entrevista. Era um professor de Educação, que declarou o seguinte: “Não vejo nenhum problema em usar trechos de músicas ou poemas em provas. Por outro lado, eu faria algumas restrições ao chamar a funkeira de grande pensadora, já que esse tipo de título deve ser dado a pessoas que tenham dado alguma contribuição significativa à produção seja musical, teatral ou no campo acadêmico. Chamá-la de grande pensadora parece um exagero”.
Há um projeto calculado de rebaixamento da cultura e da educação brasileiras. O objetivo final dos engenheiros sociais encarregados do plano é destruir quaisquer parâmetros de julgamento e avaliação de méritos intelectuais
Note-se que, convidado a comentar o assunto, o professor viu-se na obrigação de argumentar racionalmente sobre por que chamar a Valesca Popozuda de “grande pensadora” era impróprio. Medindo muito bem as palavras, agindo com cautela, pisando em ovos e quase se desculpando, saiu-se, enfim, com o eufemismo exagero. Sim, a caracterização já não era uma loucura, um descalabro, uma aberração, um escárnio. No máximo, era – ou, pior, parecia ser – “um exagero”. Só o fato de que se fizesse necessário explicar por que a referida funkeira não podia ser considerada uma grande pensadora já indicava no mínimo que essa possibilidade entrara, a fórceps, no horizonte cultural brasileiro. No país fundado pelo lulopetismo, já não era autoevidente que Valesca Popozuda não fosse, de fato, uma grande pensadora. A partir de então, quem ousasse ver nisso algo de errado teria de se explicar, e com muito cuidado.
Apesar da banalidade aparente do episódio, já não se tratava ali de uma distração ou um evento isolado. Tratava-se, em vez disso, de mais uma das muitas iniciativas, sistematicamente aplicadas, de um projeto calculado de rebaixamento da cultura e da educação brasileiras. O objetivo final dos engenheiros sociais encarregados do plano era destruir quaisquer parâmetros de julgamento e avaliação de méritos intelectuais. Porque, uma vez que a sociedade brasileira deixasse de reconhecer a diferença entre Valesca Popozuda e Gilberto Freire, entre Pabllo Vittar e Villa-Lobos, ou entre Paulo Coelho e Machado de Assis, seria cada vez mais fácil aceitar tipos como Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff na Presidência do país, Renan Calheiros na Comissão de Ética do Senado, Fernando Haddad no Ministério da Educação ou Flávio Dino no Ministério da Justiça. A chance desse pessoal era que o brasileiro – e, sobretudo, aqueles que deveriam formar a elite pensante do país – perdesse a capacidade de juízo. No lusco-fusco da mediocridade generalizada, os malandros ascenderiam ao centro da vida pública nacional. A vilania estaria consagrada como honra, a torpeza como coragem, o grotesco como sublime e o horrendo como belo.
Em especial, o caso anedótico da “pensadora” Valesca Popozuda pode ser visto como aplicação da técnica de manipulação psicológica conhecida como “porta na cara”. Ela consiste na apresentação de uma demanda exorbitante inicial, que obviamente será recusada, depois da qual se apresenta uma segunda demanda, menos custosa, que então será aceita mais facilmente. Em uma experiência clássica chefiada pelo psicólogo Robert B. Cialdini, solicitou-se a alguns estudantes que acompanhassem, por duas horas, um grupo de jovens delinquentes em uma visita ao zoológico. Formulada diretamente, a solicitação obteve uma taxa de 16,7% de aceitação. Quando a mesma solicitação foi precedida de uma demanda exorbitante, todavia, a taxa de aceitação subiu para 50%. Com esse tipo de expediente, é possível obter comprometimentos cada vez mais significativos.
Essa coisa aparentemente absurda e cômica de incluir Popozuda no rol dos grandes pensadores – fato que, obviamente, provocaria reações adversas – pode perfeitamente bem corresponder à demanda exorbitante inicial da técnica da “porta na cara”, amortecendo as resistências a uma segunda demanda qualquer (tipo, sei lá, Gregório Duvivier na ABL?) Percebe-se, pela fala reticente do professor da UnB, que a técnica já obteve algum grau de sucesso. A “porta na cara” e outras técnicas de manipulação psicológica e comportamental, conhecidas há muitas décadas, têm sido testadas e avaliadas recorrentemente por governos ao redor do mundo em suas respectivas populações. No Brasil, ela ocorre todos os dias. Trata-se de um método muito eficiente de controle totalitário por meios não aversivos, capaz de condicionar vastas parcelas da população a reagir conforme se espera, dispensando a necessidade de instrumentos repressivos mais visíveis. No universo do poder político, isso é mais velho do que andar para frente. Mas, como grande parte dos bem-pensantes brasileiros jamais ouviu falar disso (e os que ouviram geralmente a aprovam como técnica de controle social), os donos do poder cozinham a sociedade como se cozinha uma rã: esquentando a água da panela aos pouquinhos...
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