Foto: AFP photo / KCNA via KNS| Foto:

Era o dia 20 de outubro de 2016, semanas antes das eleições presidenciais norte-americanas. Com uma honestidade que destoava do comportamento de seus colegas, e cujo mérito só faz aumentar com o passar do tempo, a jornalista da Globo Gioconda Brasil afirmou categoricamente em seu perfil no Twitter: “No Brasil, não existe cobertura das eleições americanas. Existe torcida pela vitória de Hillary Clinton”.

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De lá para cá, nada mudou. Ao contrário. O ressentimento com a vitória de Trump levou a prática daquele mau jornalismo ao paroxismo, produzindo, dia após dia, matérias e análises constrangedoras, que, se dizem pouco sobre o objeto de que alegam tratar, revelam muito sobre o estado emocional histeriforme de grande parte de nossos comunicadores. Lembro de Arnaldo Jabor na rádio CBN, dizendo-se “doente” pela vitória do republicano. E de Lucas Mendes no Manhattan Connection, confessando emocionado: “A eleição de Obama foi um dos melhores dias da minha vida. Eu dei sorte de caminhar neste planeta junto com ele. E agora a eleição do Trump é um dos piores dias da minha vida”. Diante dessas demonstrações de irracionalidade e paixão política por parte de veteranos do jornalismo, resta claro que a regra de ouro tão bem descrita por Gioconda Brasil segue em vigor. No Brasil, não existe cobertura da administração Trump. Existe torcida pelo seu fracasso.

Para que o leitor tenha uma ideia do tamanho do alheamento do nosso jornalismo em relação à realidade, e do quão ensimesmado está, basta tomar como exemplo o último artigo de Clóvis Rossi na Folha de S. Paulo. Nele, ao analisar a foto já famosa dos líderes mundiais no mais recente encontro do G7, e na qual Trump aparece como centro das atenções, o articulista trata o presidente americano por “pré-adolescente petulante e ridículo”, lamentando que a democracia permita eleger tipos como ele. Trata-se, enfim, da velha ladainha midiática dos tempos da corrida eleitoral, que mal consegue disfarçar o ódio político incontido, para não falar do rosário de preconceitos elitistas contra o americano médio, ocultados sob a aparência de análise.

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Por ironia do destino, e para a infelicidade do autor, o artigo foi ao ar quase na mesma hora em que Trump, o “pré-adolescente petulante e ridículo”, posava para a foto histórica cumprimentando o ditador norte-coreano Kim Jong-un, em gesto que consagra um inédito e até então inconcebível acordo de paz entre os dois países, e pelo qual Kim se compromete a trabalhar pela completa desnuclearização da Península Coreana. Um acontecimento de verdadeira relevância, muito diverso do encontro entre Barack Obama e o ditador cubano Raul Castro, que, apesar de não ter resultado na assunção de nenhum compromisso deste com a democracia e o respeito aos direitos humanos, a imprensa tratou como a chegada da Era de Aquário.

Lembro aos leitores que, desde o segundo semestre do ano passado, quando Trump endureceu o discurso – prometendo “fogo e fúria”, e até mesmo a total destruição da Coreia do Norte, caso o seu ditador não parasse com suas ameaças nucleares –, a imprensa brasileira não cessou de profetizar o armagedon, sempre atribuindo à retórica “incendiária” do presidente americano a culpa de uma eventual guerra nuclear. Quando a realidade começou a se revelar como o exato oposto das profecias catastrofistas, o discurso foi mudando sutilmente, sem que jamais, é claro, os torcedores dos estúdios e redações admitissem o erro. Sentindo estar diante de um negociador de pulso firme, muito diferente do tíbio e omisso ex-ocupante da Casa Branca, o ditador norte-coreano começou a baixar o tom. Não podendo negar o fato, a imprensa decidiu interpretá-lo a seu próprio modo, bastante sui generis. As negociações pós-ameaças passaram a ser tratadas como uma vitória, não de Trump, mas (pasmem!) de Kim Jong-un. Uma manchete da Folha resumiu o teor geral da cobertura: “Encontro com Trump é vitória estratégica de ditador norte-coreano”. Lembro-me de, à época, ter comentado algo assim no Facebook: é como dizer que o encontro do punho do Mike Tyson com o queixo do adversário é vitória estratégica do adversário.

O mesmo padrão se repete agora que as negociações resultaram no acordo histórico firmado em Cingapura. Quem o definiu bem foi uma figura insuspeita: Nate Silver, outrora guru da imprensa brasileira, por haver aplicado seus modelos estatísticos à corrida eleitoral americana, prevendo à época (para a euforia de jabores, mendes, chacras e blinders) uma vitória acachapante de Hillary Clinton. Comentando sobre o comportamento da imprensa em face do encontro entre Trump e Kim, Silver tuitou ontem, dia 12: “Para deixar claro, 90% dos comentários da especialistocracia sobre a cúpula de Cingapura parecem ser construídos com o objetivo de convencer as pessoas de que Trump não deve receber nenhum crédito por ela – em lugar de analisar racionalmente os méritos e deméritos do acordo”.

Assim tem sido com todos os acertos de Trump, tanto na política interna (a exemplo da queda significativa nos índices de desemprego, sobretudo entre os negros americanos – para o desespero impotente, disfarçado de deboche, de congressistas democratas como Nancy Pelosi), quanto na política externa (como a vitória sobre o Estado Islâmico). A imprensa brasileira, torcendo e militando mais que reportando, prefere ignorá-los solenemente, ou então distorcê-los. Enquanto, para os nossos comentaristas, Trump segue sendo um raivoso senhor da guerra, para o presidente sul-coreano, ele é digno de receber o Nobel da Paz.

No fim do ano passado, Ross Douthat, colunista do New York Times, e tão antitrumpista como qualquer um de seus colegas, admitiu a resistência da classe falante em reconhecer os méritos do presidente, sobretudo em relação à política externa. Depois de elencar motivos alheios ao trabalho jornalístico para o fenômeno, Douthat faz a seguinte autocrítica:  “Isso também é falha da imprensa, um caso em que a mídia não noticia adequadamente um sucesso importante porque ele não cabe na narrativa do desastre trumpiano com a qual as nossas entidades jornalísticas estão todas comprometidas. Incluo-me na acusação. A política externa é a área em que os riscos de eleger Trump me pareciam particularmente inaceitáveis, e tive a tendência de focar em narrativas que confirmassem esse medo (…) Se me tivessem dito ao fim de 2016 que, em um ano de era Trump, o califado teria sido arrasado sem que algo de pior ocorresse no Oriente Médio, eu teria ficado surpreso e satisfeito. A título provisório, então, é preciso dar crédito a quem o merece – a nossos soldados e diplomatas, sim, mas também ao nosso presidente”.

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Enquanto os fatos vão numa direção, e os méritos de Trump são reconhecidos até pelos que lhe são avessos, a provinciana imprensa brasileira segue o seu destino de avestruz. Parece ter sido ela, e não o presidente americano, a construir um muro entre si e os fatos, esses imigrantes ilegais e indesejados nos santuários ideológicos das redações. Só isso explica que, no exato instante em que o atual ocupante da Casa Branca realiza feito inédito e de importância global, um de nossos opinadores o tenha qualificado de “pré-adolescente petulante e ridículo”, sem perceber que não há nada mais pré-adolescente (e petulante, e ridículo) que a sua própria birra política disfarçada de artigo jornalístico.