Comentando o artigo da semana passada sobre os projetos de desconstrução da Notre-Dame de Paris, um leitor quis saber por que o governo podia dispor da catedral como bem entendesse, a ponto de abrir um concurso para projetos arquitetônicos tão iconoclastas. “Por que nada faz o Vaticano” – perguntou, levantando questão deveras pertinente, pois nem todos sabem que, na França, os bens da Igreja pertencem ao governo desde a Revolução de 1789, evento histórico que consagrou na velha terra dos Francos a submissão total da cidade de Deus à cidade dos homens. Para o esclarecimento daquele e de outros leitores interessados no tema, dedicarei este artigo a relembrar essa história dramática de descristianização.
Em 10 de novembro de 1793, é inaugurado na Notre-Dame o culto à Razão. Uma bailarina da Ópera de Paris, Mlle. Maillard, encarna a divindade neopagã. De barrete vermelho na cabeça, vestida de branco e envolta num manto azul, entoa o Hino à Liberdade de Marie-Joseph Chénier e François Joseph Gossec, que compuseram boa parte da trilha sonora da Revolução: “Desce, ó Liberdade, filha da Natureza! O povo reconquistou o seu poder imortal. Sobre os pomposos destroços da antiga impostura, as suas mãos reerguem o teu altar”. O episódio era apenas mais uma de muitas manifestações ostensivas de um processo de profanação anticristã iniciado desde os primeiros dias da Revolução, quando, já em 28 de outubro de 1789, ao fim de uma sessão da Assembleia, um documento-surpresa suspendera provisoriamente a profissão de votos nos mosteiros.
Em fevereiro do ano seguinte, um novo decreto convertia a suspensão em proibição definitiva, suprimindo todas as ordens monásticas e mendicantes. Além disso, proibia-se a dízima – que representava mais da metade dos rendimentos dos sacerdotes – e nacionalizavam-se os bens eclesiásticos. A supressão das ordens religiosas e o confisco dos bens puseram a Igreja na total dependência do Estado. O objetivo era claro: subjugar e secularizar o clero, obrigando-o a curvar-se à nova ordem, e colocando os valores seculares revolucionários acima dos de ordem espiritual, a lealdade à nação acima do amor a Deus.
As palavras do deputado Le Chapelier são explícitas a esse respeito: “Se o clero continua a ser proprietário, continuará a formar uma ordem dentro da nação”. E a sentença categórica do padre revolucionário Abade Raynal resume o espírito da coisa: “O Estado não é feito para a religião, mas a religião para o Estado. Quando o Estado se pronuncia, a Igreja deve calar”.
O perigo representado pelo Cristianismo para a possessiva autoridade terrena do Estado já havia sido claramente apontado por Rousseau no Contrato Social, onde se lê: “Essa religião não mantém qualquer relação particular com o corpo político… Longe de ligar os corações dos cidadãos ao Estado, desprende-os, como de todas as coisas da terra. Não conheço nada mais contrário ao espírito social”.
Aos apóstatas da nova religião de Estado que pretendia substituir o Catolicismo na França, Rousseau recomendava: “Conquanto não se possa obrigar ninguém a crer, pode-se banir do Estado quem nele não acreditar; bani-lo não como ímpio, mas como insociável, incapaz de amar sinceramente as leis e a justiça… E se alguém, depois de haver reconhecido publicamente esses dogmas, comporta-se como se não os aceitasse, que seja punido de morte, pois cometeu o maior dos crimes: ter mentido perante as leis”.
A Revolução converteu as palavras de Rousseau em atos. Em julho de 1790, promulgou-se a Constituição Civil do Clero, que retirava a autonomia administrativa da Igreja, submetendo-a ao Estado, e transformava os sacerdotes em funcionários públicos. O documento abria com uma série de medidas restritivas: destruía os benefícios não inerentes a cargos; destituía dezenas de bispos, permitindo apenas um em cada departamento; reduzia para dez o número de arcebispos, que passavam a chamar-se metropolitanos; e não admitia mais do que um cura em cada vila de até dez mil habitantes ou comuna rural com uma área de duas léguas quadradas. Os bispos e os curas passariam a ser escolhidos por sufrágio geral, via nomeação de Conselhos de distrito e de departamento. A instituição canônica seria dada aos bispos, não pelo Papa, mas pelo metropolitano. Caso o recusasse, cabia ao tribunal civil designar outro prelado para substituí-lo. O Papa era simplesmente informado das nomeações. Criava-se, em suma, uma igreja cismática.
Havia mais, contudo. Em 27 de novembro daquele mesmo ano, a Assembleia decidia que todos os eclesiásticos em exercício deviam prestar juramento de fidelidade à Constituição Civil. Quem se recusasse seria sumariamente demitido de suas funções. Os ministros que, sem terem prestado o juramento, insistissem e oficiar os cultos e exercer suas prerrogativas sacerdotais, seriam tratados como subversivos, perseguidos e condenados. O mesmo valia para leigos que tentassem organizar atos de resistência. Ao fim de 1790, portanto, apenas um ano e meio após o início da Revolução, a Igreja na França já se encontrava inteiramente descaracterizada, subjugada e humilhada. No entanto, havia ainda um resquício de liberdade religiosa, e os padres cismáticos continuavam a ministrar o culto.
Essa liberdade passaria a ser suprimida definitivamente a partir de 1792, quando se iniciou a temporada de caça aos padres e freiras, a começar pelos assim chamados “refratários”, ou seja, os que se recusaram a proferir o juramento civil. A Assembleia expulsava-os da França, sob uma feroz campanha injuriosa, na qual se os tachavam de “antipatriotas”, “monstros”, “serpentes”, “pestíferos” e “padres demoníacos”. A Convenção condenava à morte os que recusavam a deportação. As agressões e assassinatos tornaram-se frequentes.
Quanto aos padres cismáticos – ou seja, os que aceitaram prestar o juramento –, foram cada vez mais forçados aos seus limites, de nada adiantando a capitulação inicial, que, qual o sangue na água aos tubarões, tudo o que fez foi atiçar o apetite anticristão da malta revolucionária. Assim, eram obrigados a abdicar e a casar, sob a pressão de conselhos populares, que os ameaçavam com a prisão ou o cadafalso caso não se “despadrassem”. E, uma vez que aceitaram a humilhação inicial do juramento, numa tentativa de apaziguar os ânimos dos agressores, voltaram a ceder sem oferecer resistência (muitos, ao contrário, inclusive embevecidos pelo clima revolucionário e patriótico).
Nessa toada, vinte mil padres renunciaram ao sacerdócio, depois de assinarem uma carta com o seguinte teor: “Eu, abaixo assinado, exercendo o ofício de padre desde o ano tal, e convicto dos erros por mim longamente professados, declaro renunciar-lhes para sempre”.
Em seguida, fecharam-se as igrejas. Muitas foram simplesmente destruídas. Despojaram-nas de seus bens, incluindo relíquias e objetos de culto. Estátuas de virgens foram mutiladas e profanadas. Santuários, transformados em armazéns de forragem ou paióis. Outras – a exemplo da Notre-Dame, como vimos –, passaram a servir de templo para novos cultos à Razão ou ao Ser Supremo. Os sinais aparentes do culto foram todos suprimidos. O calendário republicano substituiu o católico. Depois da secularização do espaço, era hora da secularização do tempo. E o martírio atual da Notre-Dame é um corolário natural desse processo.
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