“O senhor precisa parar de transportar cocaína em nossos aviões” (general Gérman Valenzuela, segundo comandante da Força Aérea Boliviana, para o presidente boliviano Evo Morales, em Hugo Chávez, o espectro, de Leonardo Coutinho)
Falar em Foro de São Paulo é falar necessariamente na fusão da política com o narcotráfico e o terrorismo internacional. O projeto do “socialismo do século 21” – para usar a expressão popularizada por Hugo Chávez – é indissociável do crime organizado. E, como vimos anteriormente, é uma lástima constatar que, com honrosas exceções, a discrição da imprensa (motivada quer por corrupção, quer por covardia, quer ainda por afinidade ideológica) tenha contribuído tanto para que ele avançasse, trazendo danos irreparáveis para as populações dos países aos quais se impôs. É um bom momento, pois, para relembrarmos alguns fatos alarmantes, mas convenientemente varridos para baixo do tapete da nossa história recente.
Já se vão quase duas décadas, por exemplo, que, em setembro do ano 2000, a Polícia Federal brasileira dava início à Operação Cobra, um colossal esforço de fiscalização na fronteira com a Colômbia, com o propósito de combater o narcotráfico e vigiar a movimentação de guerrilheiros do país vizinho. Com pouco mais de um ano de operação, em novembro de 2001, um relatório da PF já identificava bases de refino de cocaína sob controle das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), com produtividade mensal de 45 toneladas da droga em pó (cloridrato de cocaína). Destinada à Europa, aos Estados Unidos e ao Brasil, a droga seria transportada em aviões, partindo de pistas clandestinas na Colômbia. “Não temos mais dúvidas das relações das Farc com o narcotráfico. A guerrilha tem o comando das drogas e isso é uma ameaça para a fronteira brasileira” – afirmou à época o delegado Mauro Spósito, coordenador da operação.
Quase na mesma época da publicação do relatório da PF, os membros do Foro de São Paulo reuniam-se em Havana para o seu 10.º encontro anual. Ali, todos os participantes assinaram conjuntamente um documento intitulado Resolução de Condenação ao Plano Colômbia e de Apoio ao Povo Colombiano, que apoiava “os processos de diálogos desenvolvidos pelas Farc” e qualificava as ações do governo colombiano contra a guerrilha como “terrorismo de Estado”. O PT, é claro, estava entre os signatários, e, uma vez no poder, manteve sempre essa posição de falsa neutralidade em relação ao conflito no país vizinho. O encontro marcava mais um capítulo na longa história de parceria (às vezes explícita, outras vezes discreta) entre os partidos de esquerda da América Latina e os maiores produtores de cocaína da região.
Quando eleito presidente, Lula ensaiou um afastamento público dos narcotraficantes das Farc. Nos bastidores, todavia, os laços petistas com a guerrilha mantiveram-se tão sólidos quanto antes
Pelas mãos de Hugo Chávez e seus aliados mais próximos (a exemplo de Nicolás Maduro e Diosdado Cabello), a parceria converteu-se numa lucrativa sociedade narcobolivariana, dando origem ao que ficou conhecido como Cartel dos Sóis, a organização criminosa formada pela cúpula do chavismo, e cujo nome faz referência às insígnias que os oficiais venezuelanos de alta patente levam nos ombros. Mantendo relações estreitas com grupos terroristas islâmicos do Norte da África (AQIM, Estado Islâmico etc.), o cartel funciona como cabeça-de-ponte de uma gigantesca internacional do crime. Não que haja grande novidade aí, pois o narcobolivarianismo nada mais faz que seguir o modus operandi que, no passado, URSS e China já haviam adotado em larga escala, que foi introduzido na América Latina por Fidel Castro, e que consiste no uso político do crime organizado como arma contra o “imperialismo”.
Como escreve Leonardo Coutinho em Hugo Chávez, o espectro (livro que não me canso de recomendar): “A localização privilegiada da Venezuela passou a ser amplamente explorada com a ascensão de Hugo Chávez ao poder. O presidente venezuelano abriu as portas de seu país aos guerrilheiros das Farc. O narcotráfico ganhou acesso livre ao território, suporte logístico e proteção para suas operações de armazenagem. Contou ainda com a segurança às suas redes de distribuição. As Farc já concentravam sua produção na região de fronteira com a Venezuela, sobretudo na localidade de Casanare, a cerca de 300 quilômetros do país vizinho, mas precisavam de um entreposto seguro para estocagem e envio. Quando Chávez derrubou a fronteira entre seu país e a narcoguerrilha, criou as condições ideais para a expansão da rede de tráfico da organização colombiana… Sob o chavismo, a Venezuela passou a ser responsável pelo escoamento de cerca de 90% da droga produzida na Colômbia. Segundo Salazar [ex-chefe da guarda pessoal de Hugo Chávez], foi sob a proteção de políticos, militares e do próprio regime chavista que a Venezuela se converteu em um narcoestado. Estima-se que naquele momento, o cartel exportava cinco toneladas de cocaína por semana, em média”.
As relações do lulopetismo com as Farc também sempre foram intensas. Quando eleito presidente da República, Lula ensaiou um afastamento estratégico dos narcotraficantes e sequestradores colombianos. Não pegava bem, institucionalmente falando, que a aliança continuasse à vista de todos. Nos bastidores, todavia, os laços petistas com a guerrilha mantiveram-se tão sólidos quanto antes. Convém fazer uma breve cronologia.
Em agosto de 2003, o então comandante das Farc, Raul Reyes, comenta sobre o assunto numa entrevista concedida à Folha de S.Paulo. Segue um trecho:
“Folha: – O sr. conheceu Lula?
Reyes: – Sim, não me recordo exatamente em que ano, foi em San Salvador, em um dos Foros de São Paulo.
Folha: – Houve uma conversa?
Reyes: – Sim, ficamos encarregados de presidir o encontro. Desde então, nos encontramos em locais diferentes e mantivemos contato até recentemente. Quando ele se tornou presidente, não pudemos mais falar com ele… As Farc têm contatos não apenas no Brasil com distintas forças políticas e governos, partidos e movimentos sociais...
Folha: – O senhor pode nomear as mais importantes?
Reyes: – Bem, o PT, e, claro, dentro do PT há uma quantidade de forças; os sem-terra, os sem-teto, os estudantes, sindicalistas, intelectuais, sacerdotes, historiadores, jornalistas...
Folha: – Quais intelectuais?
Reyes: – [O sociólogo] Emir Sader, Frei Betto [então assessor especial de Lula] e muitos outros”.
Em março de 2005, a revista Veja noticiou o escândalo dos US$ 5 milhões (muito provavelmente oriundos do narcotráfico) que um agente das Farc no Brasil, o falso padre Olivério Medina (codinome de Francisco António Cadena Colazzos, também conhecido como “Cura Camilo”), admitiu ter trazido para a campanha eleitoral do PT. O relato foi testemunhado por um funcionário da Abin infiltrado num churrasco com a presença de militantes petistas e de Medina, que, meses depois, seria preso em São Paulo numa operação conjunta da PF e da Interpol.
Em julho de 2006, sob pressão de intensa campanha política orquestrada pelo PT, o Supremo Tribunal Federal não apenas negou a extradição de Medina, como fora solicitada pelo governo colombiano, mas resolveu também conceder-lhe asilo político no Brasil. Em dezembro do mesmo ano, Ângela Maria Slongo, mulher de Medina, foi nomeada para o cargo de oficial de gabinete do Ministério da Pesca. A solicitação do emprego para Slongo foi feita diretamente por Dilma Rousseff, então ministra-chefe da Casa Civil. À época, o documento assinado por Dilma foi divulgado em primeira mão por esta Gazeta do Povo.
Em janeiro de 2007, na 13.ª edição do Foro de São Paulo, a narcoguerrilha enviou uma carta louvando o PT por haver salvo o movimento comunista internacional, ameaçado após a queda do Muro de Berlim (as Farc voltariam a manifestar o seu apoio em diversas ocasiões, como no endosso à candidatura de Dilma Rousseff, em 2010, ou na nota de solidariedade a Lula após a sua prisão, em abril de 2018). Em setembro do mesmo ano, Lula ofereceu o território brasileiro como sede para um encontro entre Hugo Chávez e os comandantes das Farc. Nesse meio tempo, o juiz federal Odilon de Oliveira, de Ponta Porã, divulgou provas de que os terroristas colombianos atuavam no território nacional treinando bandidos do PCC e do Comando Vermelho – seus clientes no ramo da cocaína – em sequestros e técnicas de guerrilha urbana.
Há uma longa história de parceria entre os partidos de esquerda da América Latina e os maiores produtores de cocaína da região
Em março de 2008, Raul Reyes (aquele da entrevista à Folha) foi morto num ataque do exército colombiano a um acampamento da guerrilha. Seu computador pessoal foi apreendido, e, como mostrou à época uma matéria da revista colombiana Cambio (ver também a cobertura do caso na revista El Tiempo, no G1 e na Folha), os e-mails encontrados (e cuja autenticidade seria confirmada pela Interpol) revelam uma intensa penetração das Farc na cúpula do governo petista. Nos e-mails, são mencionados “cinco ministros, um procurador-geral, um assessor especial da Presidência, um vice-ministro, cinco deputados, um vereador e um juiz superior” brasileiros. Os citados são: o ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu; o ex-ministro de Ciência e Tecnologia Roberto Amaral; a deputada distrital Erika Kokay; o chefe de gabinete da Presidência da República, Gilberto Carvalho; o ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim; o assessor especial de Assuntos Internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia; o subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Perly Cipriano; o secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi; e o assessor presidencial Selvino Heck.
Um dos e-mails encontrados no computador do guerrilheiro mostrava uma conversa entre ele e Olivério Medina, na qual o falso padre conta sobre o emprego que o governo brasileiro arrumara para a sua mulher. “Na segunda-feira, dia 15, a ‘Mona’ [apelido de Ângela Maria Slongo] começou em seu novo emprego e para garanti-la ou impedir que a direita em algum momento a hostilize, a colocaram na Secretaria da Pesca, trabalhando no que chamam aqui de cargo de confiança ligado à Presidência da República” – diz o texto do e-mail datado de 17 de janeiro de 2007, numa prova inconteste de que a nomeação da “Mona” por Dilma foi mais uma daquelas “ações entre companheiros” preconizada por Lula para o Foro de São Paulo.
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