“A relação dos jornais com a vida é mais ou menos a mesma das cartomantes com a metafísica” (Karl Kraus, Aforismos)
Confrontados com minhas críticas ao que tenho chamado de provincianismo da imprensa, manifesto na tendência a excluir do noticiário vastas e generosas porções de realidade, alguns amigos jornalistas, bem como profissionais de imprensa com quem já dialoguei em redes sociais, costumam vasculhar nos arquivos dos grandes jornais em busca da cobertura que aleguei inexistir. Então, com ar triunfal, mas sem perder a ternura jamais, deliciam-se com esfregar-me nas fuças a dita cuja: “Aqui, ó! Saíram essas quatro linhazinhas no cantinho direito da página 12 do jornal tal”.
Meus interlocutores têm alguma razão, admito. O problema por mim apontado de maneira tão insistente (uns dirão obsessivamente) não é tanto a completa ausência do fato noticiado, embora também isso seja mais usual do que eles gostariam de reconhecer, mas a frequência com que aparece e, sobretudo, o tratamento que lhe é dispensado. É o que já ensinava Walter Lippmann nos anos 1920: “Um jornal, quando alcança o leitor, é resultado de toda uma gama de seleções de quais itens serão impressos, em que posição serão impressos, quanto espaço cada um deverá ocupar, e a ênfase a ser dada”.
Fazendo uma analogia com a física, pode-se dizer que os mecanismos pelos quais a imprensa estreita o horizonte de consciência de uma sociedade inteira (quer intencional, quer acidentalmente) têm natureza menos corpuscular que ondulatória. Ou seja, dizem menos respeito à informação em si (ou a partículas suas) do que ao fluxo de informação. É controlando esse fluxo que, ao longo da história, a imprensa tem obtido algum sucesso em formatar a realidade social e moldar a opinião pública. Como escreveu o jornalista armênio Ben Bagdikian: “O poder de controlar o fluxo de informação é uma peça majoritária no controle da sociedade. Dar aos cidadãos a oportunidade de escolher entre ideias e informações é tão importante quanto lhes dar a oportunidade de escolha política”.
Um bom modo de entender esse fenômeno é recorrendo à chamada teoria do gatekeeping. Quem quer que se interesse por sociologia da imprensa certamente já topou com a expressão. Metáfora concebida pelo psicólogo teuto-americano Kurt Lewin em sua pesquisa sobre hábitos alimentares de famílias norte-americanas no primeiro pós-guerra, e introduzida nos estudos de mídia por David M. White (assessor de pesquisa de Lewin na universidade de Iowa), designa o processo de seleção e transformação de um sem número de fragmentos de informação numa quantidade limitada de mensagens que chega à audiência sob a forma de notícia. São esses fragmentos os que logram passar pelos “portões” (donde o nome da teoria) interpostos pelos operadores de mídia (gatekeepers). São estes que, com base numa série de critérios de ordem subjetiva, tanto pessoais quanto corporativos, definem o que conta ou não como realidade.
Quando, como hoje, as versões da realidade difundidas pela grande imprensa estão todas de acordo umas com as outras – configurando um padrão de unanimidade que a cientista política Elisabeth Noelle-Neumann chamou de “versão consoante da realidade” –, a audiência passa a receber uma variedade muito limitada de informações para formar suas opiniões. Isso tem um efeito cognitivo claro, ao formatar a compreensão da audiência sobre o modo como o mundo funciona. Uma informação que atravessa todos os portões tende a incorporar-se à realidade social do receptor, ao passo que uma informação barrada num dos portões restará excluída da composição de sua visão de mundo.
Quando, ademais, mediante um processo que Rolf Kuntz chamou de “autofagia jornalística” – o vício de só escrever nos jornais aquilo que se leu nos jornais –, os receptores passam a ser os próprios gatekeepers (ou mediadores), as organizações de mídia tornam-se homogêneas, selecionando as mesmas notícias e, portanto, reduzindo brutalmente, tanto para si quanto para a sociedade em torno, a base factual para a formação da opinião pública. Cria-se, assim, um verdadeiro ouroboros desinformativo. A imprensa corre atrás do próprio rabo.
Numa obra que retoma e atualiza a tese do gatekeeping – posta sob suspeição teórica desde o advento da internet –, Pamela J. Shoemaker e Tim P. Vos observam a esse respeito: “Se a cobertura da mídia não assegura a aceitação de novas ideias – especialmente se estas representam desvios e são, portanto, tratadas como ilegítimas – a ausência de cobertura praticamente as condena ao fracasso”. Para os autores, o aspecto mais importante do gatekeeping é que assuntos e eventos não cobertos acabam ausentes da visão de mundo da maioria dos membros da audiência. “As pessoas não têm como saber o que a mídia não lhes conta, a menos que experienciem diretamente o evento” – escrevem. “Se os gatekeepers restringem o fluxo de informação, esta pode não se difundir completamente pelo sistema social, enquanto, se facilitam o fluxo de informação, as notícias sobre o evento podem ser difundidas mais rapidamente”.
Nas últimas duas ou três décadas, os portões erguidos pela grande imprensa brasileira estreitaram-se enormemente, e uma das causas é puramente sociológica: a baixíssima diversidade social, cultural, ideológica e política dentro das redações e estúdios. Em tal ambiente de homogeneidade de visões de mundo, não espanta que o processo de gatekeeping tenha se tornado mais rigoroso, não por qualquer rigor especial na fábrica da reportagem (deu-se precisamente o contrário), mas porque os critérios de seleção dos fragmentos de informação tornaram-se idênticos em toda parte. Se, como gosta de sugerir uma certa antropologia, a cultura funciona como um óculos a delimitar o campo de visão dos indivíduos, resta que o foco da cultura midiática se fechou em demasia, selecionando como notícia fatos irrelevantes para a maioria das pessoas (como exemplificam aquelas matérias praticamente semanais sobre a “tendência” das saias masculinas), e barrando no portão informações absolutamente decisivas para a compreensão da realidade política e cultural do Brasil e, especialmente, do mundo.
Já citei alhures este trecho do ensaio de George Orwell sobre liberdade de imprensa (1945), em que o escritor reclamava da autocensura, ou censura voluntária, praticada por formadores de opinião na Inglaterra: “Quem morou muito tempo num país estrangeiro saberá de exemplos de notícias sensacionais – coisas que, por seus próprios méritos, deveriam ganhar as manchetes – que ficaram de fora da imprensa britânica, não porque o governo interveio, mas devido a um acordo tácito geral de que ‘não seria conveniente’ mencionar aquele fato em particular”.
Como, lendo isso, não lembrar da omissão quase unânime da imprensa nacional em cobrir o Foro de São Paulo, reservando-lhe, quando muito, umas linhazinhas aqui e ali, e diminuindo-lhe sistematicamente a importância, justo quando os partidos e movimentos políticos que o integravam (todos de inspiração comunista) ascendiam ao poder por toda a América Latina? Como, nesse sentido, não lembrar deste diálogo ocorrido em 30 outubro de 2002 (apenas três dias depois da primeira eleição de Luís Inácio Lula da Silva à presidência) numa conferência do Council of Foreign Relations, o mais importante think tank americano?
“Espectador: – Quais são suas opiniões a respeito dessa organização chamada Foro de São Paulo, da qual o PT, assim como Chávez, assim como outros companheiros que também são membros, incluindo o Coronel Gutiérrez no Equador? É um fenômeno e um movimento que deve ser levado a sério? Ou, como você percebe os riscos do Foro e sua relação com o PT? Obrigado.
Luiz Felipe Alencastro (cientista político, então colunista da revista Veja): – É interessante. Veja só, porque eu vivo, digo, agora eu vivo na França. Vivi no Brasil por 12 anos. Nós nunca ouvimos falar desse Foro de São Paulo no Brasil. Não sabemos nada a respeito, e é engraçado como a coisa cresceu. Há um jornalista conhecido por ser um cara muito conservador [Olavo de Carvalho], da extrema-direita, que escreve semanalmente no Rio, e que começou com essa coisa. Nós nunca ouvimos falar disso”.
Foi por meio do trabalho desinformativo de “porteiros” ciosos como Alencastro que, durante quase duas décadas, informações sobre aquela organização supranacional foram sistematicamente barradas nos portões da opinião pública, tidas por assunto “inconveniente” na imprensa brasileira e norte-americana. Hoje, quando o escândalo do Petrolão e do BNDESgate mostram o quanto o Foro responde pelas decisões estratégicas tomadas pelo lulopetismo em detrimento dos interesses nacionais – decisões que envolveram a transferência de dinheiro público brasileiro roubado para financiar ditaduras companheiras na América Latina e na África –, notamos o aspecto nocivo do processo de gatekeeping, que, nesse caso, conseguiu ocultar o elefante na loja de cristais. Quando os porteiros vestem antolhos, o jornalismo converte-se em antijornalismo: em lugar de exibir a realidade, suprime-a; em vez de fiscalizar o poder político, acoberta-o.
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