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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Cultura da morte

A persistência da lógica sacrificial

O biólogo britânico Richard Dawkins, expoente do neoateísmo, em foto de 2014. (Foto: Cristóbal García/EFE)

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Como vimos nos últimos artigos, a perturbadora banalização de procedimentos como a eutanásia, o suicídio assistido e o aborto advém da recusa do princípio cristão da sacralidade da vida humana. O exemplo canadense da ampliação descuidada do Medical Assistance in Dying (MAiD) deve ser inserido num conjunto de fatos análogos – como, por exemplo, as eutanásias de Charlie Gard, Alfie Evans e Vincent Lambert –, que sugerem a consagração de uma mentalidade sacrificial, não raro eugênica, contra a qual apenas o cristianismo foi e continua sendo o contraponto solitário.

Engana-se quem pensa que, com o Holocausto, o Holodomor e demais catástrofes humanitárias do século 20, a Europa e o mundo haviam aprendido a lição. Pois a lógica subjacente àqueles terríveis empreendimentos persiste, posto que diluída e transubstanciada em pérolas de boas intenções e (ironia macabra!) defesa dos direitos humanos. Trata-se de uma lógica implacável, sempre renascida onde quer que reflua a força civilizacional responsável por contê-la. Não surgiu com os nazistas, e não morreu com eles. É ela o tema desta série de artigos.

Eugenia e genocídio

Richard Dawkins, o famoso biólogo evolucionista, começou a militar pelo ateísmo motivado por um profundo senso de horror que lhe infundiu o terrorismo islâmico, notadamente o atentado às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. Embora, mais tarde, o autor tenha deixado o islã em segundo plano, preferindo centrar sua crítica na tradição religiosa que lhe era mais familiar, a judaico-cristã, foi o fundamentalismo dos seguidores de Maomé que o levou a optar por um apaixonado ativismo antirreligioso e pela exibição pública do que o próprio chamou de “orgulho ateu”, a versão ateísta do orgulho gay. Ao lado de autores como Sam Harris, Christopher Hitchens, Daniel Dennett e Victor Stenger, Dawkins lançou o movimento político e editorial conhecido como neoateísmo, um grito de guerra contra as religiões, as quais, contrariando as previsões das chamadas teorias da secularização, pareciam ter reentrado triunfalmente no palco da história.

O caso da eutanásia no Canadá deve ser inserido num conjunto de fatos análogos que sugerem a consagração de uma mentalidade sacrificial, não raro eugênica, contra a qual apenas o cristianismo foi e continua sendo o contraponto solitário

Dawkins, que gosta de se ver como racional, progressista e cosmopolita, tem como anátema existencial arquetípico o fundamentalista islâmico, símbolo de uma mentalidade atrasada, fanática e provinciana, capaz de comover o sujeito ao ponto da ação mais extremista concebível, o terrorismo. O acadêmico de Oxford e o terrorista do Estado Islâmico: não poderia haver dois tipos humanos mais opostos, certo?

Nem tanto. Sob certa perspectiva – é o que pretendo mostrar –, ambos partilham de uma mesma cosmovisão, onipresente nos mais variados contextos socioculturais e nas mais variadas épocas, e que teve sempre no cristianismo o seu maior (quando não único) obstáculo. Por ela, a lei do mais forte é consagrada. Por ela, passa-se a admitir, tácita ou abertamente, a eliminação de indivíduos humanos tidos por mais fracos, incapazes ou desajustados, eliminação justificada em termos frequentemente piedosos, e quase sempre utilitaristas, consistindo na lógica da maximização do prazer e eliminação do sofrimento.

A eugenia é a manifestação mais visível dessa cosmovisão, tendo sido, não por acaso, propagandeada tanto pelos terroristas do Estado Islâmico quanto por Richard Dawkins. Os primeiros, por exemplo, lançaram uma fatwa (decreto religioso) sancionando o assassinato de bebês com síndrome de Down; e o segundo tuitou em defesa do aborto desses mesmos bebês.

Por sua capacidade de provocar repugnância, o tuíte não deixa nada a desejar à fatwa homicida. Em resposta a uma leitora que falava num “dilema moral” caso se descobrisse grávida de um bebê naquela condição, escreveu o darwinista com espantosa naturalidade: “Aborte-o e tente de novo. Seria imoral trazê-lo ao mundo se você tem uma escolha”.

Aqui, alguns leitores podem objetar haver uma grande diferença entre a posição do Estado Islâmico e a de Dawkins, uma vez que a primeira diz respeito a bebês já nascidos, enquanto a segunda tem por objeto fetos no útero materno. Mas, do ponto de vista da lógica sacrificial subjacente, para a qual a condição humana torna-se mera questão de arbítrio dos mais fortes (os já nascidos, os saudáveis, os bem adaptados etc.), a distinção é insignificante. Prova disso, aliás, é a facilidade com que alguns acadêmicos passam da defesa do aborto à defesa do infanticídio (renomeado eufemisticamente de “aborto pós-nascimento”), com base num argumento de inegável coerência: o estatuto moral de um bebê seria equivalente ao de um feto, carecendo ambos de propriedades que lhes garantam a condição de pessoa, e que, portanto, justifiquem o seu direito à vida. Bebês e fetos não seriam pessoas atuais, senão apenas potenciais, dizem os juízes da humanidade alheia, tipos como os filósofos Alberto Giubilini e Francesca Minerva, especialistas em bioética e autores de um artigo intitulado “Aborto pós-nascimento: por que o bebê deveria viver?”, publicado em março de 2012 no Journal of Medical Ethics.

Década e meia antes, o psicólogo cognitivista Steven Pinker, “companheiro de viagem” de Dawkins na luta por uma secularização completa da existência, e também adepto do mais radical naturalismo científico, já havia racionalizado o infanticídio em termos semelhantes. Em artigo publicado no New York Times em 2 de novembro de 1997, Pinker tentava compreender a prática do infanticídio (ou neonaticídio, como ele preferia) à luz do paradigma evolucionista, sugerindo uma certa tolerância para com mães que decidissem tirar a vida de seus filhos recém-nascidos, fenômeno observado em várias culturas humanas de hoje e de ontem. Segundo o autor, não deveríamos julgá-las com o mesmo rigor que devotamos aos que matam seres humanos em estágios mais avançados de desenvolvimento, porque, de novo, os recém-nascidos não podem ser considerados pessoas no pleno sentido da palavra, faltando-lhes a capacidade de refletir sobre si mesmo e perceber-se como locus contínuo de consciência, fazer planos para o futuro, temer a morte e manifestar a opção por não morrer. Dada essa premissa, a conclusão de Pinker era a de que “os nossos imaturos neonascidos não têm esses traços mais do que os ratos”.

Em argumentos como os de Pinker e Dawkins, podemos discernir em germe a precondição de todo empreendimento homicida em larga escala: a desumanização e a dessubjetivação do outro, que passa a ser tido por mero objeto

Num trabalho posterior, o mesmo autor deixou muito clara a ética implícita nessa visão estritamente materialista da realidade, para a qual um feto ou um bebê humano não passam de “um punhado de células”, isto é, pura matéria, nem mais nem menos significativa do que ratos, pedras ou pés de alface. Tratando a moral como uma espécie de subproduto nocivo de uma cosmovisão judaico-cristã, Pinker postula que “o problema com o Homo sapiens não consiste em ter pouca moralidade, mas muita”.

Em argumentos como os de Pinker e Dawkins, podemos discernir em germe a precondição de todo empreendimento homicida em larga escala: a desumanização e a dessubjetivação do outro, que passa a ser tido por mero objeto, com o qual podemos manter uma relação de pura exterioridade e, portanto, indiferença. No fundo, a lógica sacrificial subjacente a esses posicionamentos intelectuais, posto que elegantemente trajada, é a mesma que se pode entrever nos seus mais andrajosos efeitos, a exemplo do que se viu durante o genocídio de Ruanda. Nada poderia ser mais representativo das eventuais consequências do uso gradual de um discurso de desumanização do que esta descrição dada por um assassino hutu de sua primeira vítima tutsi:

“Na verdade, só depois reparei que havia tirado a vida de um vizinho. Quer dizer, no momento fatal, não o distingui pelo que ele fora antes, ataquei alguém que não me era íntimo nem estranho. Ele já não era propriamente uma pessoa comum, quer dizer, como essas que a gente encontra todo dia. Suas feições eram bem parecidas com as da pessoa que eu conhecia, mas nada me lembrava com nitidez que eu vivia a seu lado desde muito tempo. Não sei se o senhor consegue me entender. Era um reconhecimento, sem o conhecimento…”

As vítimas das palavras de Dawkins, Pinker et caterva, e das ações dos terroristas do Estado Islâmico, também já não são vistas por eles como um “uma pessoa comum, como essas que a gente encontra todo dia”. Uma vez suprimida a irredutibilidade de toda vida humana, e ignorada a perspectiva cristã do amor ao próximo, o que sobra é o poder em forma pura. Perde-se a “nitidez” sobre a humanidade alheia. Já nada transcende a autoridade do mais forte. A misericórdia é exilada. Seguiremos daí no artigo da semana que vem.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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