Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo

Afinal, o nazismo foi de direita ou de esquerda? – Prolegômenos a um debate menos chinfrim (parte 1)

Foto: AFP (Foto: )

“O marxismo-leninismo já não pode ser concebido simplesmente como ‘racional e construtivo’, e o fascismo como simplesmente ‘irracional e destrutivo’. Os principais marcadores utilizados no passado para distinguir entre a esquerda e a direita foram perdidos” (A. James Gregor, As Faces de Janus: marxismo e fascismo no século 20)

Na última semana, ressurgiu com força um debate que, de tempos em tempos, irrompe desavisadamente nas redes sociais e na imprensa: a questão do lugar ocupado pelo nazismo no espectro político. Seria o nazismo de direita (como normalmente se acredita) ou de esquerda (como defendem alguns contestadores)? O gatilho para a nova rodada de discussões tão mal conduzidas quanto inúteis foi um vídeo postado no Facebook pela Embaixada da Alemanha no Brasil, no qual se afirmava a importância da memória do Holocausto para a sociedade alemã contemporânea e se condenava o renascimento do “extremismo de direita” no país.

Entrando de gaiato no ambiente de intensa polarização política que marca a presente corrida eleitoral brasileira, o material provocou uma inusitada chuva de comentários críticos por parte de internautas de direita, que, desejando naturalmente se livrar da batata quente, questionaram a pertinência daquela classificação, sugerindo, ao contrário, ter sido o nazismo um movimento de extrema-esquerda, porque, afinal, seu partido levava o nome oficial de Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Como não podia deixar de ser, internautas de esquerda empurraram a batata quente de volta à origem. Respaldados pela versão ortodoxa, que aprendemos desde os tempos do ensino fundamental, fizeram troça dos contestadores, sob o argumento triunfal de que “todo mundo sabe que o nazismo é de direita, ora bolas”.

Surpreso com tamanha repercussão, o chefe da missão diplomática alemã no Brasil, Georg Witschel, deu a vitória final aos ortodoxos, afirmando não haver na Alemanha nenhuma “voz séria” que classificasse o nazismo como de esquerda, e decretando a ignorância ou a desonestidade como as únicas causas possíveis da polêmica. Exultantes, os vitoriosos (dentre os quais, curiosamente, se incluíam muitos jornalistas da grande imprensa) aproveitaram a deixa para zombar ainda mais de seus interlocutores, tratados como um bando de brasileiros caipiras que, segundo eles, “passavam vergonha querendo ensinar história do nazismo aos alemães”.

Com espantosa arrogância, o jornal O Globo arvorou-se o papel de fiscal oficial do cânon historiográfico, denunciando o que chamou de fake history (a mais recente atualização do rótulo difamatório “fake news”, com o qual a grande imprensa procura estigmatizar qualquer informação que conteste o jornalismo de péssima qualidade que ela vem praticando ao longo dos últimos anos), e exibindo o seguinte quadrinho, mediante o qual procurava intimidar previamente algum leitor mais cético: “Mito: O nome era Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, logo, de esquerda. Consenso: A palavra ‘socialista’ era um chamariz (sic). O nazismo era de extrema-direita”.

Sim, para o jornal O Globo, o fato de Adolf Hitler e seus seguidores se dizerem socialistas não passava de um maroto golpe de marketing. Eis o que acontece quando o estagiário é abandonado na redação com a ordem expressa de manipular a informação, mas sem quaisquer instruções específicas de como fazê-lo.

Dispomos hoje de amplo acesso a uma quantidade gigantesca de fontes sobre o nacional-socialismo, incluindo memórias e diários privados de alguns dos mais próximos colaboradores de Hitler, nomes como Albert Speer, Hermann Rauschning, Otto Wagner e o próprio Joseph Goebbels. O que o exame desse material nos permite concluir é o exato oposto do que, por meio de seu estagiário, o jornal O Globo tenta nos impor como verdade histórica inquestionável. Era justamente o discurso antibolchevique que Hitler julgava interessante proclamar em público, a fim de inflamar o ânimo dos seguidores. Já a sua dívida intelectual para com o socialismo marxista só costumava ser confessada em privado, a amigos e aliados íntimos. “Aprendi muito com o marxismo, e não tenho medo de admiti-lo”, ele confessou a Rauschning em certa ocasião. Como escreve o historiador britânico George Watson: “Hoje está claro, para além de qualquer dúvida razoável, que Hitler e seus associados viam-se como socialistas, e que outros, incluindo social-democratas, também assim os consideravam. O título nacional-socialismo era tudo menos hipócrita. Até 1945, as evidências eram mais privadas que públicas, o que talvez seja em si mesmo significativo”.

A discussão recente ilustra bem o nível médio do debate público no Brasil contemporâneo, com seu festival de bravatas, carteiradas, argumentos de autoridade e muito histrionismo de parte a parte. Colocado diante dessa poluída urbe de simplificações, frases feitas e meias-verdades manipuladas, o estudioso sério não pode, é claro, se deixar intimidar. Quem quer que pretenda compreender adequadamente o fenômeno do nacional-socialismo deve agir como o anacoreta a caminho do deserto, escapando desse zum-zum-zum tão letal para a inteligência. Deve, sobretudo, rejeitar os termos do debate tal como têm sido postos. Livre do jogo de aparências e interesses mesquinhos que o cercam, e tendo dedicado tempo a devorar estoicamente seleta bibliografia, o interessado no assunto não tardará a perceber o seguinte: a opinião heterodoxa segundo a qual o nazismo é inequivocamente de esquerda (interpretação simplista baseada em imprecisão conceitual, bem como no desprezo por diferenças significativas entre o nazismo e o socialismo de matriz marxista) não é mais embaraçosa do que a ortodoxia, a que “todo mundo sabe”, segundo a qual ele é inequivocamente de direita (interpretação também carente de justa definição prévia, e que padece do problema simétrico e inverso, qual seja o de ignorar semelhanças fundamentais entre o nacional- e o internacional-socialismo).

O fato é que um assunto de tamanha complexidade não é coisa para palpiteiros e amadores. E, claro está, não pode ser equacionado pelo decreto informal de um burocrata a quem, mesmo sendo alemão, não se deve conceder a priori tamanha autoridade intelectual, assim como a um burocrata brasileiro não se deve necessariamente conferir o título de expert em história do Brasil. Até porque, ao recorrer ao argumento da ausência de “vozes sérias” classificando o nazismo como de esquerda, o referido burocrata alemão diz, quando muito, uma meia-verdade, ignorando que alguns dos mais importantes estudiosos dos movimentos de massa do século 20 (nomes como Leszek Kolakowski, Vassily Grossman, Jacob L. Talmon, Eric Voegelin, Hannah Arendt, Friedrich Hayek, Erik von Kuehnelt-Leddihn, Hans Maier, Juan J. Linz, Alain Besançon, Pierre Chaunu, Eric Hoffer, George Orwell, Richard Overy, Robert Conquest, John Gray, Stanley Payne, A. James Gregor, entre muitos outros) também tendem a rejeitar a associação fácil e imediata entre nacional-socialismo e direita, como se se tratasse de movimento essencialmente anátema ao socialismo marxista. Mutatis mutandis, esses autores chegaram à conclusão de haver mais semelhanças que diferenças entre os dois tipos de socialismo, justificando que ambos fossem tratados como espécies de um mesmo gênero de fenômenos revolucionários, às vezes agrupados sob o conceito de “totalitarismo” (Arendt, Orwell, Conquest, Hayek), às vezes sob o de “religião política” (Voegelin, Meier, Linz), ou mesmo de “milenarismo político” (Talmon, Gray). Ademais, no meio acadêmico especializado, a dicotomia esquerda vs direita tem sido amplamente contestada como ferramenta heurística adequada à compreensão de movimentos como o nazifascismo. Nas palavras do cientista político A. James Gregor, professor emérito da Universidade da Califórnia (Berkeley) e um dos maiores especialistas contemporâneos em fascismo: “Por mais conveniente e instrutiva seja a distinção entre direita e esquerda no âmbito da política local, ela é amplamente irrelevante no tratamento dos movimentos revolucionários que moldaram o cenário internacional nos últimos 100 anos”. Como se vê, o autor não teve a sorte de aprender com os notáveis especialistas da redação de O Globo que a identificação entre nazismo e direita é um “consenso” absoluto, que só um idiota ousaria contestar.

Pretendo, a partir deste que deverá ser o primeiro de uma série de artigos dedicados ao assunto, recolocar o debate no trilho certo, compartilhando com os leitores algo do que aprendi ao longo de quase uma década de estudo sobre as ideologias revolucionárias modernas. Para se compreender adequadamente o fenômeno, é preciso antes de tudo lidar com a longa história das interpretações do nazifascismo – ou daquilo que, na literatura especializada (ver autores como Roger Griffin, Robert O. Paxton, Stanley Payne, entre outros), se convencionou chamar de “fascismo genérico”, de modo a diferenciá-lo do fascismo de Mussolini propriamente dito. Além disso, há de se enfrentar o complexo problema das definições conceituais, sem as quais todo esforço comparativo se torna um trabalho de Sísifo.

“Ao fim do século 20, é provável que fascismo continue sendo o mais vago dos principais conceitos políticos” – escreveu o historiador Stanley Payne logo no primeiro parágrafo de Uma História do Fascismo (1914-1945), obra de referência sobre o tema, manifestando uma inquietação que tem perturbado pesquisadores profissionais durante décadas, mas que não parece ser nem sequer concebida pelos jornalistas brasileiros. Payne acrescentou ainda: “Fascista tem sido uma das pechas políticas mais recorrentemente utilizadas, normalmente como sinônimo de ‘violento’, ‘brutal’, ‘repressivo’ ou ‘ditatorial’. No entanto, se fascismo não significar nada além disso, provavelmente seria preciso classificar os regimes comunistas, por exemplo, como os mais fascistas de todos, destituindo a palavra de qualquer especificidade funcional”.

Abordando, com o máximo de profundidade permitido pelos limites de um texto jornalístico, aqueles dois elementos do problema – o do histórico de interpretações e o das definições –, pretendo fornecer aos leitores os instrumentos para um juízo fundamentado sobre o debate, sem me esquivar do dever de, ao fim do trajeto, apresentar a minha própria conclusão pessoal. O objetivo é incentivar os leitores a que não se deixem pautar nem pelos falsos consensos impostos a fórceps por uma classe falante habituada a mascarar a própria ignorância mediante o controle hegemônico dos meios de formação da opinião pública; nem, tampouco, por contestações superficiais, pouco embasadas e politicamente tendenciosas.

Quem afirma seguramente que o nazismo foi um movimento de extrema-direita deveria, no mínimo, antes de repeti-la por aí feito um papagaio, conhecer a origem dessa interpretação. Suspendendo, por ora, uma apreciação do seu mérito, convém lembrar que ela nasce dentro do campo intelectual marxista-leninista, e que, portanto, é politicamente marcada desde o início, sendo tributária das premissas gerais do materialismo histórico. O contexto para o surgimento dessa interpretação é a guerra intestina irrompida no seio do marxismo italiano por ocasião da Primeira Guerra Mundial, uma cisão que opôs os “marxistas renegados” (Mussolini e seguidores) aos marxistas ortodoxos – os primeiros favoráveis à entrada da Itália na guerra; os segundos, mais fiéis ao internacionalismo socialista, contrários. O fascismo surgia como uma “heresia do socialismo” (aliás, assim como o bolchevismo, segundo o historiador Richard Pipes).

Aquela luta fratricida foi tão intensa que, eventualmente, a vertente ortodoxa começou a negar peremptoriamente as origens marxistas dos primeiros fascistas, passando a atribuir a “deserção” de seus antigos quadros à venalidade pessoal e ao oportunismo. O próximo passo na lógica da negação foi conceber o próprio fascismo como um todo, justamente com os seus “apóstatas” marxistas, como venal e oportunista. Daí para a formulação final de que o fascismo era um “instrumento da burguesia” ou do “capital financeiro” foi um pulo. Imediatamente após a famosa Marcha sobre Roma de 1922, os marxistas-leninistas italianos puseram-se a produzir vasta literatura teórica pretendendo explicar o caráter necessariamente “reacionário” e “direitista” do fascismo, uma literatura que acabaria dando forma às concepções de toda a intelligentsia esquerdista ocidental acerca do fenômeno. A interpretação encaixou-se tão bem nos esquemas conceituais preconcebidos de tantos marxistas europeus que, por mais de um século, se manteve como parte inerente da sabedoria folclórica da ciência política. A partir de então, o fascismo seria para sempre concebido como uma patologia política, uma excrescência “de direita, reacionária e desumana”, ao passo que o marxismo-leninismo seria tido por “de esquerda, progressista e humanista”. Como veremos nos próximos artigos, mesmo que essa visão não tardasse a ser contestada dentro da própria tradição intelectual marxista, ela continua até hoje sendo reproduzida no senso comum midiático, como o confirma a querela em torno do vídeo da embaixada alemã.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.