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Afinal, o nazismo foi de direita ou de esquerda? – Prolegômenos a um debate menos chinfrim (parte 2)

Foto: Arquivo/autor desconhecido (Foto: )

O grande romancista Arthur Koestler, conhecido ex-militante do KPD, o partido comunista alemão (Kommunistische Partei Deutschlands), explicou certa vez a estratégia traçada por Stálin e Willi Münzeberg (o gênio do agitprop comunista) para tornar o bolchevismo mais palatável internacionalmente: “A noção de que alguma vez pregáramos a revolução e a violência deveria ser ridicularizada como um espantalho, refutada como uma calúnia espalhada por reacionários maliciosos. Já não nos referíamos a nós mesmos como ‘bolcheviques’, nem mesmo como comunistas – e o uso público da palavra era agora reprovado dentro do partido. Éramos apenas honestos, humildes e pacíficos antifascistas, defensores da democracia”.

A estratégia difundiu-se e consagrou-se na cultura política de esquerda de todo o mundo, sendo amplamente utilizada até os dias de hoje, como mostra a atuação dos movimentos sociais autoproclamados Antifa (“antifascistas”). Ela consiste em ocultar o próprio projeto de poder (quase sempre totalitário) sob a fachada de uma bandeira virtuosa qualquer, usualmente a do o antifascismo e a da defesa da democracia.

No último sábado, vimos a estratégia ser posta em prática aqui no Brasil, quando militantes do movimento “Ele Não” foram às ruas mascarar o seu apoio irrestrito ao projeto ditatorial lulopetista de retomada do poder sob o pretexto de combater o alegado machismo do candidato Jair Bolsonaro, líder das pesquisas de intenção de voto.

Para se compreender aquela estratégia de propaganda política, e o porquê de ela ter sido tão bem-sucedida ao longo das últimas décadas, é preciso voltar ao ponto em que paramos no artigo da semana passada. Como vimos ali, as primeiras interpretações sobre o fascismo surgiram de dentro do marxismo-leninismo, quando nada porque o próprio fenômeno em si tem essa mesma origem. E, muito embora a rixa entre eles houvesse sido motivada menos por grandes divergências doutrinárias do que por uma discordância pontual sobre a participação da Itália na guerra, os comunistas procuraram desde o início negar a origem revolucionária (e marxista) comum que partilhavam com os fascistas, empurrando conceitualmente esses últimos para a “direita” e o “reacionarismo”. Portanto, nota-se que as primeiras tentativas de compreensão do fascismo surgiram inextrincavelmente misturadas com um juízo moral acerca do fenômeno que se pretendia compreender.

Com efeito, diante daquele novo e impactante movimento político, os comunistas italianos e de toda a Europa recorreram ao cânon literário marxista, acreditando poder encontrar nas teses altamente especulativas do neo-hegelianismo de Marx e Engels a fundamentação teórica ex post facto para o juízo moral que, no calor da luta política, já haviam formado sobre o fascismo. Como não poderia deixar de ser, todavia, a realidade complexa não se deixava acomodar facilmente à cama de Procusto marxista, tendo de ser retalhada à medida da teoria. E que teoria era essa? Dedicarei este segundo artigo da série a recordá-la, pois só assim teremos um entendimento mais claro de como foi possível aos marxistas retratar o fascismo como um movimento “reacionário”, concepção que, em larga medida, continua influindo na linguagem política contemporânea.

Uma das “sagradas escrituras” consultadas pelos marxistas do pós-guerra foi Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), texto em que, pela primeira vez, e de maneira concisa, Marx apresentava os fundamentos do materialismo histórico. Para o filósofo de Trier, como se sabe, a história consistia basicamente na interação entre “forças produtivas” (os meios materiais de produção de bens necessários à subsistência do homem) e “relações de produção” (as relações sociais que presidem a distribuição daqueles bens). Enquanto as primeiras se mantêm compatíveis com as segundas, há estabilidade social. Quando, ao contrário, as forças produtivas começam a se desenvolver para além dos limites das relações de produção vigentes, a mudança social torna-se inevitável.

Para Marx, cada uma das classes antagônicas em que se dividia a sociedade capitalista do seu tempo – a burguesia e o proletariado – encarnava um daqueles elementos produtivos. Na qualidade de guardiã das relações de produção, a burguesia era a classe “reacionária”. O proletariado, ao contrário, ao encarnar o dinamismo das forças produtivas, era a classe “progressista”. Em dado estágio do desenvolvimento histórico, as relações de produção convertem-se em grilhões das forças produtivas. Como, no sistema capitalista, os bens produzidos são distribuídos em função do lucro e da propriedade privada, eles só atendem aos interesses da classe dirigente, detentora dos meios de produção. E, na medida em que o ciclo produtivo só responde às exigências daquela, as forças produtivas não podem se desenvolver plena e livremente, levando o sistema à estagnação e, finalmente, ao colapso.

Em O Capital, encontramos a conhecida teoria marxiana do valor (mais tarde reduzida a pó por Eugen von Böhm-Bawerk e Ludwig von Mises). De acordo com ela, apenas o “trabalho vivo” – o esforço físico do proletário – era capaz de criar valor. Já o “trabalho morto” – o capital constante (instrumentos de produção, investimento na fábrica, custos de aluguel, ativos fixos em geral) – seria incapaz de fazê-lo. Do valor gerado pelo trabalho vivo, uma parte é empregada como capital variável, ou seja, a remuneração mínima necessária à subsistência do trabalhador e à consequente manutenção de sua força de trabalho. O valor que sobra após o pagamento dos salários e os gastos com meios de produção é o que Marx chamou celebremente de “mais-valia” – o lucro do capitalista. Chegamos aqui ao ponto que realmente nos interessa. Na medida em que se altera a “composição orgânica do capital” (a relação entre capital variável e capital constante), diz Marx, há uma queda correspondente da taxa de lucro (a relação entre a mais-valia e a soma dos capitais constante e variável). E, quando a taxa de lucro se aproxima de zero, todo o sistema começa necessariamente a ruir.

Aquela é a “lei” do materialismo histórico, tão imperativa e necessária para os marxistas quanto a da gravidade ou a da seleção natural. Segundo essa lei, o modo capitalista de produção é inerentemente disfuncional e, em termos de posição na marcha inevitável da história, reacionário. Apenas uma revolução proletária “progressista” poderia redimir o futuro, instaurando uma “sociedade sem classes” na qual o lucro e a propriedade privada seriam extintos, bem como, junto a eles, as guerras, as privações e as injustiças. Como numa espécie de retorno ao Jardim do Éden de antes da Queda, a humanidade trocaria o reino da necessidade pelo da liberdade, onde o homem poderá “caçar de manhã, pescar na parte da tarde, cuidar do gado ao anoitecer, fazer crítica após as refeições” (segundo a célebre profecia de A Ideologia Alemã). Eis a escatologia trajada de “ciência” que por tanto tempo encantou a intelligentsia do Ocidente, parte da qual jamais abandonou a utopia.

Ao tempo da Segunda Internacional, e sobretudo depois da morte de Engels (1896), aquela crença secular no “milênio” da sociedade sem classes entranhou-se no espírito dos herdeiros de Marx, inspirando as primeiras interpretações do fascismo por toda a Europa. Poucos dias após a Marcha sobre Roma de 1922, por exemplo, o marxista austríaco Julius Braunthal já publicava no jornal do partido social-democrata um artigo intitulado “O golpe dos fascistas”, em que, empregando o jargão doutrinário ortodoxo, com todas as suas evocações moralistas, classificava o fascismo como “reacionário”, uma “brutal expressão do desejo de dominação por parte das classes proprietárias”. Sem qualquer fundamentação na realidade concreta, o autor ainda descrevia o movimento como sendo “uma contrarrevolução em estilo moderno, violenta e militarista”. Pouco importava que a revolução bolchevique houvesse sido ainda mais “violenta e militarista”. Que os bolcheviques tivessem feito mais vítimas na Rússia do que os fascistas em qualquer parte. Uma vez que surgira na Itália como oposição à “revolução proletária”, o fascismo só poderia ser contrarrevolucionário, ou seja, contrário ao necessário progresso histórico. E embora houvesse, à época da Marcha sobre Roma, mais trabalhadores nas fileiras do fascismo que nas do bolchevismo ao tempo da revolução de Lênin, ainda assim o movimento foi tido por reacionário, e os trabalhadores que o endossavam, por vítimas de sua própria “falsa consciência”.

Depois de Braunthal, outro marxista austríaco, de nome Julius Deutsch, deu continuidade àquela linha interpretativa, sugerindo, também a partir de juízos morais apriorísticos, que o fascismo era uma força “a serviço da reação dos capitalistas sedentos por lucro”. Mais tarde, ele enriqueceu sua tese, afirmando que o movimento também atraíra para suas fileiras uma pequena burguesia “fanatizada” e uma parcela de adolescentes seduzidos pelo “misticismo obscuro” da retórica fascista. Além de ferramenta do capitalismo, o fascismo passava a ser visto também como essencialmente irracional – uma interpretação que entraria em voga desde então. Para Deutsch, a conclusão pela irracionalidade do fascismo decorria do seguinte parti pris marxista: em termos puramente racionais (ou seja, conformes ao materialismo histórico), os trabalhadores do mundo deveriam ser fatalmente atraídos pela revolução proletária que os libertaria da exploração. Não fazia sentido que pusessem paixões nacionalistas acima de seus interesses de classe. Se o faziam, era porque não agiam racionalmente.

Logo após a chegada de Mussolini ao poder, o quarto congresso mundial da Terceira Internacional Socialista consagrou definitivamente aquela moldura interpretativa, cujos detalhes variavam e se adaptavam na medida em que a realidade contraditava a teoria. A princípio, por exemplo, o fascismo foi declarado como “instrumento” da “reação contrarrevolucionária” dos “capitalistas agrários” da planície padana contra as massas trabalhadoras. Em seguida, não apenas dos capitalistas agrários, mas de toda a burguesia. Depois, com o marxista húngaro Gjula Sas (que usava o pseudônimo Giulio Aquila), era a “burguesia industrial”, ou os “magnatas da indústria pesada”, que passavam a manejar o instrumento. Já para o Partido Comunista Italiano, o fascismo não servia propriamente à burguesia industrial, mas a uma “oligarquia agrária e industrial”. E assim sucessivamente, cada teórico marxista identificava um novo elemento das “classes dirigentes” como o “verdadeiro mestre” do fascismo. Em 1923, a marxista alemã Clara Zetkin reforçava a tese, no relatório que enviou ao Comintern em junho daquele ano. Intitulado “A luta contra o fascismo”, o documento sacramentou a versão oficial de que o fascismo era produto de uma reação da direita contrarrevolucionária. Mas, como veremos no próximo artigo, a rigidez dessa moldura interpretativa começou a incomodar até mesmo alguns membros da Terceira Internacional, para os quais havia muitos fatos que simplesmente não se acomodavam a ela.

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