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Afinal, o nazismo foi de direita ou de esquerda? – Prolegômenos a um debate menos chinfrim (parte 4)

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A partir do fim dos anos 1950, os dois maiores regimes políticos marxistas-leninistas do planeta, o da URSS e o da República Popular da China, entraram em rota de colisão, dando início a uma escalada de hostilidade mútua que, em 1969, culminaria num confronto armado na fronteira sino-soviética. Pretendendo-se cada qual a encarnação da verdade comunista, lançaram sobre o rival a pecha de “traidor da revolução”. Como não poderia deixar de ser, intelectuais orgânicos de ambos os lados não tardaram a fornecer uma aparência de “ciência marxista” à guerra de propaganda contra o adversário, que passou a ser alcunhado com a ofensa comunista predileta – sim, exatamente essa que o leitor está imaginando.

Enquanto os soviéticos caracterizavam o maoísmo como um “nacionalismo antiproletário e pequeno-burguês” (e, portanto, fascista), o outro lado do front de batalha fazia o mesmo, acusando a URSS pós-Stalin de haver se transformado num regime imperialista conduzido por uma “nova burguesia” interessada em restaurar o capitalismo mediante uma “ditadura fascista”. Passado quase meio século desde seu surgimento histórico, e a despeito do intenso debate que suscitou no período do entreguerras, o fascismo reaparecia no vocabulário político de maneira elástica e imprecisa, como mera categoria de acusação. E, por ironia da história, tendo agora por alvo justo aqueles regimes que se apresentavam ao mundo como representantes prototípicos do antifascismo.

Aquele abuso do conceito beneficiara-se do clima de opinião pós-Segunda Guerra, em que, de maneira consensual e ex post facto, as duas metades do campo aliado (o Ocidente democrático e a “Cortina de Ferro”) passaram a descrever a sua participação no conflito como uma vitória sobre o fascismo (conceito que abarcava o regime de Mussolini, o nacional-socialismo de Hitler e até mesmo o império de Hirohito no Japão). Desde então, a palavra fascismo passou a significar uma patologia política, sinônimo de barbárie e desumanidade, um juízo que muito beneficiou o campo comunista, cuja expertise no manejo acusatório do termo, e no consequente antifascismo autopromocional, vinha de longa data.

Com efeito, a despeito do regime de terror que vinha impondo desde o início de sua fundação, a URSS saiu da guerra com a imagem imaculada de vítima heroica do nacional-socialismo (o mesmo que, hoje sabemos, ela havia ajudado a se armar antes da guerra). Por muitos intelectuais no Ocidente, o Exército Vermelho passou a ser descrito como a força antifascista que se sacrificara pela humanidade. Não tardou, aliás, para que, graças ao seu anticomunismo, nomes como Winston Churchill e Charles de Gaulle passassem a ser descritos como “criptofascistas”. No imaginário do pós-guerra, tão automática se tornou a identificação entre o fascismo e o mal (e, complementarmente, entre o comunismo e o bem) que, como escreve Alan Besançon em A Infelicidade do Século: “Até a queda do comunismo na Rússia, era frequente que as vítimas dos maus tratos praticados pelos guardas soviéticos os tratassem de ‘fascistas’. Não passava pela cabeça chamá-los por seu verdadeiro nome – comunistas”.

No domínio da retórica política, portanto, o fascismo seguiu sendo um termo vago o bastante para ser manipulado contra adversários. Mas não se pode dizer que tenha tido sorte muito melhor na seara acadêmica. Ao contrário da autoconfiante classe falante brasileira (que, sem sequer ter demonstrado alguma vez a preocupação em defini-lo, não obstante já o situou inequivocamente à direita no espectro político), os maiores estudiosos do fascismo não se cansam de alertar quanto ao persistente problema da definição. Stanley G. Paine observa que a dificuldade advém do fato de que, ao contrário de democracia, liberalismo ou socialismo, o termo fascismo não contém nenhuma referência política explícita, ainda que abstrata. Saber que a palavra italiana fascio significa “feixe” ou “união” não nos diz muita coisa. Ademais, a palavra foi sempre usada muito mais por oponentes do que por adeptos do movimento.

Como escreveu o historiador Richard A. H. Robinson em seu livro Fascismo na Europa (1919-1945), publicado em 1981: “Por maiores tenham sido a quantidade de pesquisas e os esforços intelectuais dedicados ao seu estudo, o fato é que o fascismo permanece sendo o grande enigma para os estudiosos do século 20”. Uma opinião que levou Roger Griffin a gracejar em seu consagrado estudo A Natureza do Fascismo (1991): “Tamanho é o emaranhado de opiniões divergentes acerca do termo que virou quase uma regra de etiqueta abrir as contribuições ao debate sobre o fascismo com uma tal observação”. Logo, se é verdade que “parecemos não ter ainda uma ideia clara sobre o que é o fascismo” (como afirma outro grande especialista no tema, A. James Gregor), muito menos teríamos como classificá-lo seguramente à direita ou à esquerda (Nem Direita, Nem Esquerda é, aliás, o título de uma das obras do consagrado historiador israelense Zeev Sternhell, grande especialista em fascismo). Até o presente momento, a verdade é que pouco se avançou teoricamente na definição de fascismo (que continua sendo usado como referência vaga a qualquer coisa politicamente reprovável). Que dirá, então, na sua compreensão.

No Parlamento Europeu, discussões acerca do recrudescimento do “neonazismo” têm sido frequentes. Em tal contexto, os relatórios de comitês contra o racismo e a xenofobia descrevem o fascismo mediante fórmulas tais como “violência anti-judaica” ou “vandalismo racista”. Em compêndios sobre o tema, fala-se frequentemente em “brutalidade”, “desumanidade”, “desprezo pelo indivíduo”, “glorificação da violência”, “antissemitismo” e “ultranacionalismo xenófobo” como características comuns aos movimentos fascistas. Mas nada disso é particularmente útil para compreendermos o fenômeno, evidentemente. Não há hoje qualquer dúvida, por exemplo, de que Lenin e Stalin foram antissemitas viscerais (ver, por exemplo, os estudos de Richard Pipes e Gennadi Kostyrchenko); ou de que os regimes comunistas foram brutais; que glorificavam a violência; que desprezavam o indivíduo; e que, em muitos casos (como na URSS de Stalin, na China de Mao, na Iugoslávia de Tito, na Cuba de Fidel Castro), esposaram aquilo que poderíamos perfeitamente chamar de “ultranacionalismo xenófobo”. Portanto, não há nada de particularmente fascista naquelas características. A bem da verdade, em termos de violência e desumanidade, não seria exato agrupar o regime de Mussolini junto com o de Hitler. Com base nesse critério, o nazismo deveria ser posto na mesma prateleira do stalinismo e do maoísmo como os mais violentos e desumanos da história, comparado aos quais o fascismo italiano foi até brando (não por acaso, aliás, Hannah Arendt exclui o regime de Mussolini de sua lista de “sistemas totalitários”, devido à sua letalidade relativamente baixa).

Entre os anos 1960 e 1990, vários autores arriscaram definições abrangentes do assim chamado fascismo genérico. Comum a todos esses autores era uma nova perspectiva interpretativa, que recusava explicações mono causais (como a marxista) em favor de abordagens mais ecléticas. Dentre as obras que se destacam nesse contexto, temos, por exemplo, A Natureza do Fascismo, do já citado Roger Griffin, onde aparece uma definição de fascismo que acabou se celebrizando. Para Griffin, tanto o regime de Mussolini quanto o de Hitler podem ser concebidos como espécies de “um gênero de ideologia política cujo núcleo mítico, em suas variadas permutações, consiste numa forma palingenética de ultranacionalismo populista”. Com a expressão “palingenética”, o autor referia-se particularmente a um ideal de regeneração ou renascimento da pátria (e/ou da sociedade) após um período de alegado declínio ou disfuncionalidade.

Mas, por mais meritório tenha sido o esforço de Griffin, o fato é que, por demasiado esquemática e abstrata (como ele mesmo admite), sua definição não serviu para desfazer a névoa conceitual. Em primeiro lugar, porque, mais uma vez, nenhum dos traços definidores elencados por Griffin são exclusivos dos movimentos historicamente reconhecidos como fascistas. Toda iniciativa revolucionária (da França do Iluminismo até a Venezuela de Hugo Chávez) pode ser compreendida como palingenética. O mesmo se diga do populismo, característica comum a diversos movimentos e sistemas políticos, fascistas ou não fascistas. Sobre o ultranacionalismo, Griffin define-o como “uma forma de nacionalismo incompatível com as noções liberais e democráticas de igualdade básica de direitos civis e de respeito à autonomia política de outras nações e nacionalidades”. E, então, fica difícil entender a sua utilidade para a compreensão do fascismo genérico.

O pressuposto de que os movimentos fascistas são todos igualmente “ultranacionalistas” é difícil de sustentar. Como sugere A. James Gregor, o nazismo, por exemplo, era muito menos nacionalista que racista. “Hitler rejeitava o nacionalismo como uma armadilha e uma decepção”, explica. Os horrores nazistas foram resultado de mitos raciais, não propriamente de um apego às cores nacionais. Em contrapartida, o fascismo mussoliniano, esse sim de algum modo “ultranacionalista”, jamais teve o racismo como característica marcante.

Por outro lado, se estamos predispostos a reunir o nacional-socialismo alemão e o fascismo italiano com base em seu alegado “ultranacionalismo”, o que fazer com a China de Mao Tsé-tung? Se é verdade, como afirmou o cientista político americano Chalmers Johnson, que “o comunismo popular sem uma base no nacionalismo não existe”, teria sido a China ultranacionalista? E, em caso afirmativo, teria sido também “fascista”? Alguma vez a República Popular da China exibiu qualquer sinal respeito às “noções liberais e democráticas de igualdade básica de direitos civis” e à “autonomia política de outras nações e nacionalidades”? Respeitou a soberania do Tibete, por exemplo? O mesmo se diga da URSS. Em 1987, Mikhail Agursky demonstrou que o bolchevismo tivera sempre uma inspiração nacionalista, uma afirmação referendada por Walter Laqueur e outros sovietólogos. A URSS teria sido ultranacionalista, portanto? Por acaso respeitou “autonomia política” de nações como Polônia, Estônia, Moldávia, Romênia, Checoslováquia etc.? Se Stalin foi ultranacionalista e antissemita, foi também “fascista”?

Outro problema da análise de Griffin – bastante representativa sob esse aspecto – é o de ter permanecido contaminada com o teor moral das interpretações prévias (fossem marxistas, fossem liberais), herança intelectual das paixões pós-Segunda Guerra, levando o autor a incorrer no mesmo velho erro (tão bem apontado por Gregor, Payne, Sternhell, entre outros) de encarar o fascismo não como parte da dinâmica política do Ocidente moderno (digna, portanto, de uma atenção verdadeiramente científica), mas como mera patologia ideológica, espécie de elemento aberrante e reacionário na inexorável marcha humana rumo ao progresso civilizacional. No livro de Griffin, o fascismo aparece invariavelmente adjetivado como “narcisista”, “megalomaníaco”, “sádico”, “necrófilo” e “desumano”, como se essas fossem as suas características distintivas e definidoras. É como se, para ele e muitos outros estudiosos do fenômeno, compreender o fascismo fosse o mesmo que revelar o seu caráter inerentemente patológico e irracional, que o distinguiria de outros sistemas políticos contemporâneos. No entanto, num estudo da bestialidade política no século 20, fica difícil compreender por que razões eminentemente teóricas excluir a Rússia de Stalin, a China de Mao, o Camboja de Pol Pot. Voltaremos ao ponto no próximo artigo da série.

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