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Afinal, o nazismo foi de direita ou de esquerda? – Prolegômenos a um debate menos chinfrim (parte 6)

Foto: U.S. Signal Corps photo (Foto: )

“O mal de todo esquerdista desde 1933 foi ter querido ser antifascista sem ser antitotalitário” (George Orwell)

No vocabulário da ciência política, a palavra totalitarismo designa uma classe de ideologias e sistemas de governo surgidos de maneira inédita e exclusiva no século 20. Foi ali, na Europa do primeiro pós-guerra, que se começou a delinear uma forma de poder político cujo alcance e intensidade não haviam sido nem sequer concebidos em eras passadas, um poder capaz de submeter sociedades inteiras a um partido-Estado que, em sua onipotência, onisciência e onipresença, impunha-se aos homens como uma paródia satânica de Deus. Desfazendo de modo traumático as ilusões liberais do século anterior, que vislumbraram um incremento constante e progressivo das liberdades humanas, a tecnologia do controle exercido por governantes sobre governados atingiu um grau assombroso de sofisticação, indo muito além da mera sujeição física para adentrar o terreno (até então inviolável) das consciências individuais. Criou-se a instituição da polícia de pensamento – um tema consagrado na literatura por autores como Huxley, Koestler, Zinoviev e Orwell.

Com efeito, não há tirania ou despotismo da Antiguidade, por mais brutal e implacável, que tenha se aproximado do nível de controle exercido pelos regimes totalitários modernos. O poderoso Império Romano, por exemplo, pareceria um jardim de infância se comparado aos regimes conduzidos por Hitler e Stalin. Como explica o historiador Paul Johnson: “A lei romana podia ser brutal e era sempre incansável, mas, ainda assim, impunha-se a uma esfera relativamente limitada da conduta humana. Muitos campos de atividade econômica e cultural eram deixados de fora de seu alcance. Além do mais, mesmo onde a lei estabelecia regras, nem sempre era diligente. Tendia a dormir, a menos que as infrações chamassem sua atenção por sinais externos de desordem: queixas vociferantes, quebras de paz, tumultos. Nesse caso, ela alertava, e, se seus avisos fossem negligenciados, agia com ferocidade até que o silêncio se impusesse novamente; após o que voltava a dormir. Sob domínio romano, um homem sensato e circunspecto, por mais subversivos que fossem seus pontos de vista, podia não apenas sobreviver e prosperar como até propagá-los”. Eis aí a grande e crucial diferença: o Estado totalitário não dorme jamais. Nele, alguém com ideias subversivas não apenas não tem meios de prosperar como tampouco de sobreviver. Caso não seja destruído fisicamente, decerto o será psiquicamente, não podendo jamais propagar, e nem mesmo guardar para si, pensamentos rebeldes.

O conceito de totalitarismo surgiu, portanto, como resultado do esforço de descrever essa nova modalidade de exercício de poder político, que termos clássicos tais como “tirania” e “despotismo” já não davam conta de abarcar. Para o estudioso da política, um termo técnico é tanto mais teoricamente rentável quanto mais cronologicamente próximo estiver dos fenômenos por ele designados. Com base nesse critério, deve-se reconhecer que totalitarismo é um caso privilegiado, tendo surgido pouco depois da “coisa” assim denominada. Na verdade, o que nasceu primeiro foi o adjetivo “totalitário”, só mais tarde substantivado. Ele expande-se na década de 1920, no começo de maneira positiva e autorreferente, propagado a partir do fascismo italiano, como quando, já em 1925, por exemplo, Mussolini exalta junto aos seus correligionários a “nossa feroz vontade totalitária”.

Embora não tivesse ainda alcançado o status de tipo ideal conceitual, já se discernia na palavra o ineditismo de seu significado para a história das ideias políticas. Por um lado, exprimia desde sempre o primado da vontade política, a notável capacidade decisória individual do ditador contemporâneo, que se via (e era visto) como uma espécie de divindade terrena, senhor da vida e da morte. Por outro, sugeria o paroxismo da ideia de Estado. A “vontade totalitária” já não designa apenas o poder absoluto do déspota insubmisso às leis, mas a imposição de um Estado pantagruélico que controla completamente as vidas social e privada dos cidadãos, subsumindo-os em seu próprio seio.

Mas, na Europa do entreguerras, o adjetivo “totalitário” não se limita à retórica política de fascistas e simpatizantes, ganhando terreno também no campo erudito, onde adquire tonalidades ao mesmo tempo mais analíticas e mais críticas. Em seu famoso ensaio A Mobilização Total, publicado em 1930, Ernst Jünger (1895-1998) já utiliza as palavras total e totalität para caracterizar a mobilização dos povos por seus Estados durante a Primeira Guerra Mundial. Ao unir o espírito da guerra com o da técnica, diz o filósofo alemão, o grandioso conflito prefigurou formas inéditas de dominação política.

A partir da década de 1930, a noção de totalitarismo (quando não mesmo a palavra) começa a aparecer com frequência na linguagem especializada, notadamente nos primeiros esforços de comparação entre fascismo e comunismo, ou, mais precisamente, entre a emergente Alemanha de Hitler e a União Soviética de Stalin. Em 1934, o neologismo já figura no verbete “Estado” da Encyclopedia of the Social Sciences, caracterizando os Estados de partido único, incluindo a URSS. Em 1936, Élie Halévy (1870-1937) profere na Sociedade Francesa de Filosofia uma célebre palestra que, mais tarde, daria origem ao livro A Era das Tiranias. Embora ainda preso à terminologia da filosofia política clássica (o uso de “tirania” é representativo nesse sentido), Halévy já se inseria na moderna análise comparativa entre os regimes soviético, fascista e nacional-socialista, seguindo a intuição teórica, comum a seus contemporâneos, de que, na qualidade de espécies de um mesmo gênero de fenômeno político, esses regimes não podiam ser bem compreendidos isoladamente. E, conquanto o autor não usasse o adjetivo “totalitário”, alguns dos debatedores presentes à sua exposição (como o filósofo Maurice Blondel, por exemplo) o fizeram.

Como vimos em artigos anteriores, o panorama da ciência política mudou radicalmente ao fim da Segunda Guerra, acompanhando o clima de opinião da época. Se, no entreguerras, o surgimento do conceito de totalitarismo esteve intimamente ligado à livre comparação entre as ditaduras fascistas e a ditadura soviética, ambas tidas por inimigas comuns (posto que rivais entre si) das democracias liberais, essa comparação tornou-se moral e intelectualmente suspeita no segundo pós-guerra, na medida em que, na condição de aliada na vitória, a URSS recebera o certificado de “antifascista”, passando de algum modo a se incorporar metonimicamente ao campo democrático. Por razões originalmente diplomáticas, portanto, o regime soviético foi conceitualmente retirado de sua condição anterior de primo-irmão do nazifascismo. Este último, por sua vez, graças à monstruosidade ostensiva do Holocausto, foi isolado de seus antigos pares, passando a ser visto como fenômeno sui generis e incomparável – a encarnação exclusiva do “mal absoluto”. Qualquer tentativa de compará-lo com outros sistemas políticos foi tomada como violação de uma espécie de tabu, cuja forte carga emocional consistia no medo (compreensível, sobretudo, no caso das vítimas diretas do nacional-socialismo) de que, uma vez perdida a dimensão de excepcionalidade do macabro empreendimento nazista, também a sua malignidade pudesse ser de algum modo relativizada ou banalizada, resultando na abertura de uma temerária brecha para uma eventual reedição. Como afirma o historiador Martin Malia (1924-2004) em sua contribuição a uma coletânea de artigos dedicados a uma discussão moral e comparativa dos genocídios do século 20: “Tamanha tem sido a desproporção entre a atenção devotada aos crimes nazistas e a devotada aos crimes comunistas que um duplo padrão de julgamento moral emergiu; de fato, a desproporção transformou a comparação em si mesma num sinal de mau gosto político”.

De fato, a partir dos anos 1950, e especialmente após a morte de Stalin em 1953, formou-se uma espécie de senso comum na intelligentsia ocidental de esquerda, qual seja, a de que o conceito de totalitarismo fora concebido como uma ferramenta ideológica criada pela metade “capitalista” da Guerra Fria com um objetivo político definido: denegrir a União Soviética por meio de sua equiparação com a Alemanha nazista. Tendo assumido sozinho o papel de inimigo da liberdade, o nazifascismo serviu como o tapete sob o qual Stalin, brandindo sua carteirinha de “antifascista”, escondeu toda a sujeira do regime soviético. Como François Furet argumenta magistralmente no clássico O Passado de uma Ilusão (1995), aquele antifascismo de propaganda acabou transbordando da política para a historiografia, que, interditando a crítica ao comunismo, acabou bloqueando também uma compreensão adequada de seu “gêmeo heterozigoto” (na expressão de Pierre Chaunu): o nazifascismo. Nas palavras de Furet: “A ideia inteiramente negativa de ‘antifascismo’ supria a impossibilidade de aventar algo de positivo que pudesse unir as democracias liberais ao comunismo stalinista. Ela era vaga o bastante para permitir que Stalin esmagasse a democracia em toda parte em que suas armas a haviam levado, e precisa o suficiente para condenar como blasfematória qualquer comparação entre o seu regime e o de Hitler”.

Depois de comentar sobre esse tabu historiográfico, Furet faz a importante ressalva: “A intrépida Hannah Arendt teve a audácia de não levar isso em conta”. Veremos, na semana que vem, como Arendt e outros intelectuais de espírito livre (Franz Neumann, Eric Voegelin, Carl J. Friedrich, Zbigniew Brzezinski e Alain Besançon, para citar apenas alguns deles) ousaram retomar o conceito de totalitarismo e insistir na importância da comparação para o entendimento dos dois grandes colossos totalitários do século passado. No qual deve ser o último artigo da série, apresentarei também a minha visão pessoal sobre o tema.

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