Os tiranos de antigamente fechavam redações de jornal, destruíam tipografias e expulsavam livreiros da cidade – os de hoje querem desligar plataformas digitais nas quais bilhões de pessoas compartilham regularmente seus pensamentos, sentimentos e opiniões, além de, obviamente, muitos fatos ocultados pelo assim chamado “consórcio” midiático. As diatribes furiosas do narcoditador venezuelano Nicolás Maduro contra o X e o WhatsApp, por exemplo, são formuladas exatamente nos mesmos termos com os quais, também no Brasil, magistrados, políticos e pseudojornalistas alérgicos à liberdade de expressão defendem a censura na internet (e, em relação ao X em especial, as elites progressistas britânicas têm demonstrado o mesmo tipo de “Muskfobia”). Os pretextos, sobretudo, são idênticos: a internet não pode ser terra sem lei, é preciso combater o “discurso de ódio”, as “fake news” e os ataques às instituições perpetrados por “fascistas” e “populistas de extrema-direita” etc. Os objetivos, idem: consolidar (ou restaurar) o monopólio sobre a circulação de notícias, opiniões e interpretações dos acontecimentos históricos e políticos. “Editar um país inteiro” – eis como um dos integrantes do exército da censura formulou celebremente a sua missão autoatribuída, a qual, obviamente, não tem qualquer respaldo nas leis vigentes, mas soa muito justa e razoável a espíritos pretensamente “ungidos”.
Mas, apesar de suas ressonâncias óbvias no universo da política, e dos efeitos nocivos sobre a civilização em geral, no artigo de hoje eu gostaria de abordar o aspecto mais anímico e individual do autoritarismo. Porque a busca pelo monopólio da fala não se revela apenas em grandes projetos políticos ditatoriais, como os da Venezuela, Nicarágua, Cuba, Brasil e outros representantes do que Hugo Chávez chamava de “socialismo do século 21”. Ao contrário, ele se revela nas mais comezinhas interações sociais, subvertendo até mesmo atividades nas quais conceder a palavra ao outro não se limita a uma questão de boa educação ou exercício pessoal de tolerância, mas constitui um dever profissional. Uma entrevista recente com um dos candidatos à prefeitura de São Paulo ilustra o meu ponto.
Na última terça-feira, o apresentador José Luiz Datena, candidato a prefeito de São Paulo pelo PSDB, foi entrevistado por Natuza Nery, do G1. “Entrevistado” é força de expressão, uma vez que, como já se tornou hábito entre os sacerdotes da moral e da verdade outrora conhecidos como “jornalistas”, os eventos tradicionalmente chamados de “entrevistas” converteram-se num ambiente de campo de reeducação política, no qual o suposto entrevistador desempenha o papel de reeducador e o suposto entrevistado, o de reeducando. Daí que o estúdio do G1 tenha se transformado num púlpito para a pretensa jornalista ministrar ao candidato – cujo comportamento esperado é o de aluno bem-comportado – as últimas lições em moralismo ideológico e regras de etiqueta politicamente corretas. Tudo ali é arquitetado para Natuza Nery – representando a voz do progressismo – falar, e o entrevistado (exceto o que, por acaso, seja politicamente alinhado à entrevistadora) ouvir.
Já se tornou hábito entre os sacerdotes da moral e da verdade outrora conhecidos como “jornalistas” que os eventos tradicionalmente chamados de “entrevistas” se convertam num ambiente de campo de reeducação política
Nesse contexto, Nery exasperou-se quando Datena, comunicador experiente e notório falastrão, descumpriu o acordo esperado e ousou falar por si mesmo, antes que apenas fornecer aspas ilustrativas para as teses da jornalista-sacerdotisa. Recorrendo à cultura woke e identitária, sacou a carta feminista. “O senhor já ouviu falar de uma expressão chamada manterrupting? É quando o homem não deixa a mulher falar” – apelou a reeducadora, provando mais uma vez que o recurso à estratégia sentimental do “lugar de fala” tem sempre, na verdade, a função imperativa de colocar o interlocutor no seu devido lugar de cala.
Datena poderia ter respondido que, antes que “man-interrupting”, o que ele estava exercendo era a boa e velha prática mútua do “person-interrupting” – uma outra forma de descrever o que outrora se chamava simplesmente de diálogo. Mas não o fez. Natuza Nery, por sua vez, não queria diálogo, mas monólogo. E, posto que Datena tenha tentado se justificar alegando que responderia da mesma forma se o entrevistador fosse homem, ele já havia sido apanhado na armadilha verbal, colocando-se na posição de presa da retórica woke. “Nunca peça desculpas a uma turba sedenta por sangue” – diria Jordan Peterson a Datena. Ao que eu acrescentaria: nunca se explique para um guerreiro da justiça social, alguém possuído pela ideologia progressista de superioridade moral e pelo complexo de ser histórico. Ao fim e ao cabo, a linguagem woke é uma atualização da velha sofística grega, que, assim como faz esse monstruoso cruzamento contemporâneo entre marxismo e pragmatismo, também usava a palavra como arma de guerra.
Com efeito, sabemos desde Platão que o mal sofista dizia respeito, sobretudo, a um uso nocivo e insidioso da linguagem. Poucos o resumiram melhor que o filósofo Josef Piper, que abordou o assunto em seu ensaio Abuso da Linguagem, Abuso do Poder. Pieper demonstra aí que a ameaça representada pelos sofistas advinha de seu modo de cultivar as palavras com excepcional atenção aos aspectos formais e puramente estéticos, transformando a linguagem num domínio especializado à parte, e não, como concebida por Platão, o meio comum pelo qual o espírito humano se manifesta.
Para Platão, a linguagem humana tinha duas características principais. Em primeiro lugar, ela comunica a realidade. Quando falamos, queremos nomear e identificar algo que é real, e cuja existência transcende o domínio da palavra, não tendo sido criado por ela (como reza a maldição pragmatista). Em segundo lugar, essa realidade da qual falamos deve ser comunicada a alguém, o que nos leva à segunda característica da linguagem, o fato de ser essencialmente interpessoal. E, se Platão escolheu o gênero diálogo para expor o seu pensamento, decerto não o fez por acaso, mas para reforçar, pela forma mesma, aquilo que afirmava o conteúdo.
Essas duas características da linguagem humana – que, seguindo a célebre formulação do filósofo Martin Buber, poderíamos resumir nos pares Eu-Isso e Eu-Tu – eram o alvo preferencial dos sofistas, cujo ácido retórico corroía justamente a relação das palavras com o real e a sua essência comunicativa. E é para esse potencial corrosivo que, nos diálogos platônicos, Sócrates está o tempo todo chamando a atenção do leitor.
Para o sofista, a linguagem não guardava relação necessária com o real, sendo, ao contrário, concebida como um sistema autocontido, ou seja, como fundamentalmente retórica. Em vez de atentar para o que dizer, o sofista estava mais interessado em como dizer. “A retórica não deve conhecer como as coisas são em si mesmas”, explica Sócrates no Górgias (459c), “mas descobrir algum mecanismo persuasivo de modo a parecer, aos ignorantes, conhecer mais do que aquele que tem conhecimento”.
Ao fim e ao cabo, a linguagem woke é uma atualização da velha sofística grega, que, assim como faz esse monstruoso cruzamento contemporâneo entre marxismo e pragmatismo, também usava a palavra como arma de guerra
Em dispensando o referente, a retórica do sofista impossibilitava o diálogo. Daí que a oposição entre diálogo e retórica, ou entre o discurso do filósofo e o discurso do sofista, seja recorrente na fala de Sócrates. Platão preocupava-se especialmente com a passagem do diálogo ao monólogo, da palavra a serviço da verdade para a palavra a serviço de um poder tirânico. Porque, no fim das contas, o fetiche sofístico pela perfeição formal, sua paixão estetista pelo dom sedutor da palavra, ocultava algo bem menos inocente: o desejo de comandar o interlocutor, que, de sujeito numa conversa entre iguais, tornava-se objeto da vontade de poder do sofista.
É precisamente isso que Sócrates leva Górgias a confessar, ao lhe perguntar sobre o bem específico gerado por sua arte (ou seja, a retórica), ao que o vaidoso sofista responde: “Aquele que é, Sócrates, verdadeiramente o maior bem e a causa simultânea de liberdade para os próprios homens e, para cada um deles, de domínio sobre os outros na sua própria cidade” (Górgias, 452d).
Como dissemos no início, para Platão a linguagem humana era interpessoal. Mais do que isso, ela era fundamentalmente intersubjetiva, ocorrendo necessariamente entre dois sujeitos individualmente considerados (no caso, o filósofo e o seu interlocutor). Diz Sócrates: “Eu sei como apresentar uma única testemunha do que digo, aquela com a qual eu discuto, mas dispenso a maioria, e sei como dar a pauta da votação a uma única pessoa, mas não dialogo com muitos” (Górgias, 474a).
Ao contrário, a palavra do sofista – e a do militante woke, pretenso representante de identidades grupais – dirige-se sempre a uma audiência coletiva, sobre a qual procura exercer o seu poder de persuasão. É o que explica Górgias, naquele estilo cabotino tão típico dos sofistas: “O retor é capaz de falar contra todos e a respeito de tudo, de modo a ser mais persuasivo em meio à multidão” (Górgias, 457b). Ao que Sócrates ironiza: “Ou em meio a ignorantes” (Górgias, 459a).
Essa é uma das características que levou Platão a concluir que a retórica – por ele descrita como mera técnica “de produção de graça e prazer” (Górgias, 462c) – é uma perversão da comunicação, tanto quanto a tirania é uma perversão da política. Como sugere Piper, para o sofista que fala, o ouvinte deixa de ser uma pessoa, convertendo-se em presa. Trata-se de um discurso em que a dignidade do ouvinte é completamente desprezada, em que o objetivo não é a comunicação, mas a manipulação. Já não há qualquer diálogo, mas domínio e submissão. E é nesse ponto que o abuso sofístico da palavra prepara o terreno para o abuso tirânico do poder político. Afinal, como notaram tantos e tantos observadores do fenômeno totalitário do século 20, toda patologia política começa com uma patologia da linguagem. E, diria eu, todo regime coletivista e totalitário começa com almas individuais autoritárias.
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