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A Ascensão de Luiz Inácio

Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas (Foto: )

“Que vemos nós por toda parte? Em amplos setores do clero e do laicato — mas é o clero que puxa o cordão — se acaso alguém pronuncia o termo ‘mundo’, logo se acende um fulgor de êxtase nos olhos do auditório” (Jacques Maritain)

Testemunhamos, há alguns dias, mais uma peça da iconografia sentimental da paixão de Luiz Inácio Lula da Silva, que, com recursos técnicos, meticulosidade e visão de longo prazo, a esquerda brasileira vem construindo a fim de extrair dividendos políticos da prisão de seu guru e líder máximo. Na última quinta-feira, dia 19, o teólogo comunista Leonardo Boff esteve na carceragem da Polícia Federal em Curitiba para uma “visita espiritual” ao corrupto condenado, encontro evidentemente não autorizado pela Justiça.

Provavelmente já contando com o desfecho inconveniente (afinal, prisão não é casa-da-mãe-joana, nem palanque político), o mais famoso “padre de passeata” do país caprichou na produção. De bengala, usando um suéter grená e um cachecol vermelho vivo, fez cara de Verônica piedosa e pose de fragilidade senil. Quem não o conhecesse diria se tratar de um pacato e inofensivo velhinho, quase um Papai Noel. Sentou-se nos bancos instalados na portaria do prédio e aguardou o clique do fotógrafo Eduardo Matysiak, também ele simpatizante da causa, e membro da equipe de produção desse drama kitsch. “Se eu pudesse eu pegava ele (sic) pelo braço e levava para os braços do Lula”, disse o fotógrafo sobre o fotografado.

Segundo Boff, seu propósito era prestar solidariedade a Lula e entregar-lhe “livros religiosos”. O toque de religiosidade que se buscava acrescer à peça dramática dava prosseguimento ao que já se tentara no vexaminoso ato ecumênico do dia da prisão, que muitos na imprensa acharam natural chamar de “missa” em homenagem a Marisa Letícia, e que acabou sendo o derradeiro comício do apenado. Na condição de oficiante do evento (que só se pode chamar de “missa” no sentido herético de missa negra), o bispo Angélico Sândalo Bernardino manchou a própria batina e conspurcou o sacerdócio. “Nenhuma prisão prende a mente e os ideais de um cidadão” – vociferou do alto do palanque, como se os ditos “ideais” pudessem servir de salvo-conduto para a prática de crime. Tinha razão o economista austríaco Joseph A. Schumpeter: a primeira coisa que um homem fará por seus ideais é mentir. A segunda, se esse homem for um sacerdote, é blasfemar.

No ato blasfemo em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos, o bispo teve ao seu lado todo um tropel de anticristãos, incluindo hereges como o próprio corrupto condenado (que, já tendo se declarado um homem sem pecados, chegou a dizer certa vez que, após sofrer críticas da oposição, seu corpo “estaria mais arrebentado que o de Jesus Cristo”) e comunistas ateus inveterados, que, meses antes, celebravam comovidos o centenário da Revolução Bolchevique de 1917.

Ora, desde o famoso documento expedido pelo Santo Ofício durante o pontificado de Pio XII, e que ficou conhecido como Decreto contra o Comunismo, a Igreja não cessou de condenar os católicos que professem essa religião política ou contribuam com partidos e organizações que a ponham em prática, como é o caso da Teologia da Libertação na América Latina. Todavia, para além das razões propriamente teológicas da condenação, que, posto serem seríssimas, podem soar arbitrárias para o público leigo ou não cristão (e sobre as quais eu recomendo este artigo esclarecedor do teólogo católico Mateus de Castro), há um elemento histórico por demais evidente para ser ignorado, e que torna escandalosa a simples presença de um sacerdote cristão no mesmo palco em que discursam devotos de Marx e Lenin, e infame, a proximidade da cruz sagrada com a foice e o martelo.

Nenhum regime superou o comunismo em termos de perseguição aos cristãos, nem mesmo a República Jacobina. Se, na França do século 18, os revolucionários puseram em prática a célebre exortação de Voltaire Écrasez l’Infame! (“Esmagar a Infame!”, ou seja, a Igreja), na Rússia de princípios do século 20 os bolcheviques lançaram-se à missão marxista de extirpar o “ópio do povo” da face da Terra. Durante a Revolução Francesa, tivéramos pela primeira vez na história o uso sistemático da blasfêmia e da paródia religiosa como arma política, fenômeno tão bem documentado no clássico do historiador Albert Mathiez As Origens dos Cultos Revolucionários (1904). Os bolcheviques levaram a prática ao extremo, procurando não apenas extinguir, mas usurpar os poderes religiosos e entregá-los ao Estado.

Poucos estudiosos descreveram tão bem o ataque bolchevique à religião quanto Orlando Figes. No seu monumental A Tragédia de um Povo (Record, 1999), ele registra que, de 1917 a 1921, aquele ataque se deu inicialmente por meio de intensa propaganda. As crenças dos camponeses eram ridicularizadas em panfletos e folhetins; os milagres cristãos eram tachados de mitos; os sepulcros contendo relíquias de santos eram abertos e profanados; os membros do clero, retratados como parasitas gordos. Quase todo jornal de província registrava periodicamente as atividades “reacionárias” dos padres da região. Toda literatura e música tidas por religiosas foram proibidas, incluindo as obras de Platão, Kant, Schopenhauer e Tolstoi, bem como cantatas e missas de Bach, o Réquiem de Mozart e as Vésperas de Rachmaninoff. Surgiu também uma arte iconoclasta, e já ali era possível topar, por exemplo, com pôsteres nos quais a Virgem Maria, grávida, sonhava com um aborto, algo que deixaria exultantes os entusiastas das nossas “Marchas das Vadias” e exposições do tipo Queermuseu.

A partir de 1921, a cruzada antirreligiosa bolchevique começou a passar das palavras à ação. Naquele ano, foi criada uma tal de União dos Ímpios, organização ateísta e cientificista dedicada a promover debates com membros do clero, visando a demonstrar a inexistência de Deus. Esses “debates” costumavam incluir a conversão encenada de algum sacerdote, subitamente convencido, após uma estadia nos porões da Cheka (a polícia secreta de Lenin), de que Deus não passava de uma invenção burguesa para iludir o proletariado.

Aproveitando-se da crise de abastecimento que assolava o país após a guerra civil, Lenin deu início a uma violenta campanha de fechamento de igrejas e execução de sacerdotes. Já em 1918, fora baixado um decreto extinguindo o direito à propriedade dos sacerdotes, tornando-os dependentes dos soviéticos, que eram agora proprietários e locadores das terras paroquiais. Em 1922, acusando-a de ignorar a crise, o ditador bolchevique determinou que a Igreja também pusesse à venda o seu patrimônio sacro, ciente de que o clero não acataria a ordem. Lenin tinha por objetivo lançar nos padres a pecha de avarentos insensíveis aos sofrimentos do povo. “Transformem ouro em pão” – era a manchete histriônica na imprensa chapa-branca (ou, no caso, vermelha), que buscava acirrar a fúria antieclesiástica. Num esforço desesperado de evitar o ultraje, um patriarca ortodoxo ainda se dispôs a angariar junto aos fiéis a quantia equivalente ao valor dos objetos sagrados. Esforço vão, já que o regime usara a crise como mero pretexto, sendo o seu real objetivo a destruição das igrejas.

Em fevereiro daquele ano, ordenou-se aos sovietes que confiscassem todos os valores encontrados nas igrejas, inclusive relíquias e objetos de culto. Bandos armados destruíram as paróquias, levando tudo o que achavam pela frente: ícones, cruzes, cálices, mitras etc. Os fiéis armavam-se como podiam para defender seus templos, numa luta desigual. As hostes bolcheviques tinham metralhadores, e com elas massacravam velhos e mulheres portando terçados e rifles enferrujados. Somente entre 1922 e 1923, registra Figes, mais de 7 mil religiosos foram assassinados, sendo metade dessa cifra composta por freiras. Na cidade de Shuya, um dos confrontos levou Lenin a ordenar sigilosamente o extermínio de todo o clero, maliciosamente associado à reação czarista. Essa ordem, que só veio a se tornar pública em 1990, é assim transcrita por Figes: “Cheguei à conclusão inequívoca de que devemos travar a mais decisiva e impiedosa guerra contra os clérigos que apoiam os Cem Negros [bandos contrarrevolucionários criados pela polícia czarista], acabando com toda a resistência e usando toda a crueldade, de forma que dela não se esqueçam por décadas. Quanto aos demais sacerdotes e membros da burguesia reacionária, o melhor é fuzilá-los”.

Em 2013, a então presidente Dilma Rousseff foi ao congresso nacional do PCdoB, um “partido irmão” do PT, em suas próprias palavras. Ali, ela discursou num púlpito situado logo abaixo de um gigantesco banner com a imagem do sujeito que proferiu as palavras acima citadas. Dilma, outrora integrante (jamais arrependida) do grupo armado marxista-leninista VAR-Palmares, cujo programa era explícito em construir a “ditadura do proletariado” no Brasil, estava presente na missa negra no Sindicato dos Metalúrgicos. Também presente estavam Manuela D’Ávila, a jovem marxista-leninista candidata à Presidência pelo PCdoB, e Guilherme Boulos, líder do MTST, e também candidato à Presidência pelo PSol. Além desses, é claro, havia muitos outros comunistas e revolucionários, para os quais, senão no discurso público, decerto nas conversas internas, a religião majoritária da população do país (salvo em sua versão herética e milenarista representada pela Teologia da Libertação) continua sendo vista como reacionária e nociva. É provável que todos ali, sem exceção, venerassem o líder bolchevique mumificado. E é a esse pessoal que o bispo Angélico Sândalo Bernardino não se vexou em dar as mãos, desprezando todo o horror que suas ideias impuseram aos cristãos russos. Diante disso, o mínimo que se poderia dizer de Bernardino é o mesmo que Nélson Rodrigues dizia de dom Hélder Câmara, o “bispo vermelho”: que ele só olha para o alto para saber se leva ou não o guarda-chuva. Ou, no caso, para ver se o seu messias já subiu aos céus no helicóptero da PF.

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