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“[Cristo] despojou os principados e as autoridades, expondo-os em espetáculo em face do mundo, levando-os em cortejo triunfal”

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 – Carta de São Paulo aos Colossenses

Um dos assuntos mais discutidos da última semana foi a declaração do general Antonio Hamilton Mourão, candidato a vice-presidente de Jair Bolsonaro, acerca das pretensas raízes históricas de nossas mazelas contemporâneas, por ele atribuídas à “cultura de privilégios” herdada dos ibéricos, à “indolência dos indígenas” e à “malandragem dos africanos”. Embora infeliz, pois tributária de uma antropologia arcaica e racialista incorporada ao senso comum, a fala está longe de exibir toda aquela malignidade que, com os seus habituais farisaísmo e seletividade, a grande imprensa tratou de lhe imputar. A mesma imprensa que, diga-se, não parece muito escandalizada com o fato de um preso condenado por corrupção apresentar-se como candidato à presidência da república, uma aberração ética que os nossos jornalistas não se cansam de naturalizar (isso, é claro, quando não estão afagando outro candidato à presidência, espécie de réplica do anterior, famoso por invadir propriedades e apoiar ditaduras socialistas sanguinárias).

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Com uma imprensa como a nossa, que calcula muito bem suas espetaculares exibições de indignação moral conforme conveniências político-ideológicas, não é de surpreender que uma declaração infinitamente mais grave que a do General Mourão, proferida por um ministro do STF, não tenha tido repercussão midiática alguma, embora estivesse disponível nas redes sociais e no YouTube a quem quisesse ver. Refiro-me à fala do ministro Luís Roberto Barroso em palestra proferida no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, no último dia 3 de agosto, que versava sobre a proposta de legalização do aborto até a 12.ª semana de gestação.

Em determinado momento da sessão de perguntas, o ministro foi questionado sobre o fato de o STF estar usurpando uma prerrogativa do Congresso, cujo posicionamento contrário à mudança na legislação atual sobre o aborto corresponde ao da esmagadora maioria da sociedade brasileira por ele representada. Depois de brandir o tradicional argumento pró-aborto, segundo o qual é discutível que um feto de menos de 12 semanas de gestação possa ser considerado uma vida humana, Barroso (o juiz que, assim como a fada da história, tem muitas ideiazinhas próprias), foi além, ao defender o “direito fundamental” da mulher ao aborto. Disse ele:

Admitindo que haja vida, e, portanto, trabalhando sobre a sua premissa [dirigia-se a um interlocutor pró-vida], se você se mover, como eu me movo, por uma ética kantiana, e se a sua vida depende do sacrifício da minha liberdade individual, e eu não quero sacrificar minha liberdade individual, você perde” (confira o trecho).

Esse tipo de declaração ajuda a explicar o porquê de termos atualmente a pior suprema corte da história brasileira, formada por material humano de baixíssima qualidade moral e intelectual, compensada por caras, bocas, pseudo-erudição e muita retórica empolada. Tudo na fala de Barroso é fingimento e pose, que mal ocultam a precariedade lógica (para não falar da imoralidade intrínseca) sobre a qual se funda tão ignóbil raciocínio.

Peço que o leitor releia atentamente a transcrição acima. Mesmo admitindo a hipótese de que o aborto implique a eliminação de uma vida humana, o sujeito não a considera suficiente para refrear sua apologia à liberdade individual, para ele um valor absoluto e superior a todos os outros. O fato de que, logicamente, uma pessoa precise antes estar viva para gozar de liberdade plena não parece em nada abalar-lhe a convicção de que o direito à liberdade é mais fundamental que o direito à vida. “Se a sua vida depende do sacrifício da minha liberdade individual” – afirma, sem corar, o magistrado –, “você perde”. Perde o que, afinal de contas? A vida, bem entendido.

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A referência à ética kantiana, na qual Barroso diz se mover, é um completo embuste. Não sei ao certo que Kant é esse a que se refere, mas não deve ser o mesmo, o filósofo nascido em Königsberg, que tenho na estante aqui de casa. Porque, ao contrário do que parece imaginar o douto magistrado, a liberdade em Kant jamais foi definida à moda libertária, apenas pela negativa, como ausência de obstáculo para fazermos o que bem quisermos. Para o filósofo, não há real liberdade quando agimos em função da mera satisfação de nossos desejos e paixões. Isso seria obedecer a uma determinação que ele chamava de heteronômica, ou seja, que se nos impõe desde fora. A verdadeira liberdade, ao contrário, é aquela advinda de ações autônomas, que, em vez de simples meios para a realização de fins externos (a lei natural, os impulsos, os instintos, as paixões, os vícios etc.), constituem finalidade própria e intrínseca. Para Kant, a capacidade de agir com autonomia é o que confere à vida humana sua dignidade particular, donde se extrai um dos dogmas fundamentais da ética kantiana: as pessoas devem ser tratadas como fins em si mesmos.

A ética que Barroso chama de “kantiana” lembra muito mais aquela contra a qual, justamente, Kant dedicou boa parte do seu Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), a saber: a ética utilitarista de Jeremy Bentham. Em seu Princípios da Moral e da Legislação (1780), publicado cinco anos antes da Fundamentação, Bentham elaborou a doutrina central do utilitarismo, segundo a qual a moralidade consiste em maximizar a utilidade, ou seja, aumentar o prazer e reduzir a dor. A dor e o prazer são definidos pelo jurista inglês como os “mestres soberanos” dos nossos juízos, deles advindo os conceitos de “certo” e “errado”. Na ética utilitarista benthamniana-barrosiana, fazer o bem confunde-se com sentir-se bem.

Nada poderia ser mais contrário à filosofia moral de Kant, para quem uma ação só adquire valor moral se motivada pelo dever – fazer o certo porque é certo, e não por ser agradável ou útil. À razão meramente instrumental, Kant contrapõe a razão prático-moral, definida como uma razão prática pura, que cria suas leis a priori, a despeito de quaisquer objetivos empíricos. As implicações para uma antropologia moral são formuladas pelo filósofo nos seguintes termos:

“Somente o homem considerado como pessoa, isto é, como sujeito de uma razão prático-moral eleva-se acima de qualquer preço; pois, como tal (homo noumenon), tem de ser avaliado não meramente como meio para outros fins, nem mesmo para seus próprios fins, mas como fim em si mesmo, isto é, como quem possui uma dignidade (um valor intrínseco absoluto) pela qual constrange todos os outros seres racionais do mundo a ter respeito por ele, podendo medir-se com qualquer outro dessa espécie e avaliado em pé de igualdade”.

Em resumo, a ética de Barroso não remonta a Kant, mas a Bentham. E, antes mesmo que a Bentham, ao sofista Cálicles, o malicioso interlocutor de Sócrates no Górgias, de Platão.  Em oposição ao filósofo, o sofista julgava que o sucesso de uma empreitada já lhe conferia, por si só, um valor moral, sendo a força, em última instância, o fundamento do justo. Ao passo que Sócrates tinha por objetivo elevar a alma humana acima de sua natureza puramente animal, distinguindo entre o bem e o útil, o justo e o prazenteiro (antecipando, nesse sentido, algo da ética kantiana), Cálicles agia como uma espécie de precursor do utilitarismo, postulando um contínuo entre homens e animais, ambos igualmente sujeitos às suas naturezas respectivas, entregues, portanto, à lógica crua da maximização do prazer e diminuição da dor. E, a despeito de sua fantasia de humanista piedoso, com sua retórica politicamente correta em favor da liberdade absoluta das mulheres, é de Cálicles, não de Kant, que Barroso é discípulo. Na ética anti-kantiana, hedonista e irresponsável na qual se move, não haveria mal algum em se sacrificar uma vida humana mais fraca em prol da liberdade individual da mais forte. Cálicles – para quem “a justiça ordena que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles” – não diria melhor.

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