“O Estado do Povo deve assegurar que apenas os saudáveis gerem filhos... Aqui, o Estado deve atuar como guardião de um futuro milenar... Deve colocar os meios médicos mais modernos a serviço desse conhecimento. Deve declarar inaptos para a propagação todos aqueles que estejam de alguma forma visivelmente doentes ou que tenham herdado uma doença e, portanto, possam transmiti-la.” (Adolf Hitler, citado por Robert Jay Lifton em The Nazi Doctors: Medical Killing and the Psychology of Genocide)
Apesar de não ter sido um bebê planejado, e a despeito da infância difícil, Carrie Buck levou uma vida adulta relativamente feliz. Casou-se duas vezes, cantou no coro da igreja e cuidou de pessoas idosas. Morreu em 1983, aos 76 anos, na cidade de Waynesboro, no estado americano da Virgínia. Apesar da resiliência, que a dotou de altruísmo o bastante para se dispor a ajudar os outros, por toda a vida Carrie padeceu de uma dor crônica da alma, que jamais a abandonou: por ordem do Estado, ela foi impedida de ter mais filhos.
Carrie era filha de uma prostituta. Em 1924, aos 17 anos, engravidou fora do casamento, após ter sido estuprada por um parente do pai adotivo. Para encobrir o fato vexaminoso, sua família adotiva declarou-a moral e mentalmente deficiente, depois do que ela foi compulsoriamente internada num asilo.
Embora tenha nascido na Inglaterra, a eugenia foi rapidamente importada para os Estados Unidos, onde, a partir de fins do século 19, floresceu mais do em qualquer outra parte
Naquele mesmo ano, o estado da Virgínia promulgara uma lei permitindo a esterilização forçada de “deficientes mentais”, a fim de garantir o bem-estar da sociedade. Os médicos do asilo, adeptos da ciência da moda, a eugenia, apontaram Carrie como uma excelente candidata para o programa de esterilização. Afinal, ela era “uma humana defeituosa”. Sua mãe também havia sido internada e o seu bebê de sete meses, de acordo com a avaliação dos especialistas, também não parecia “muito normal”. Era melhor para a sociedade que os genes de Carrie fossem removidos da história.
“Três gerações de idiotas são suficientes”, declarou o presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, Oliver Wendell Holmes, ao autorizar a esterilização involuntária de Carrie Buck. Sete de seus colegas selaram o destino reprodutivo de Carrie. A filha de Carrie – considerada muito inteligente por seus professores de escola – morreu por volta dos 7 anos, vitimada por uma doença intestinal.
A história de Carrie Buck é a mesma de 60 mil outras pessoas tidas por “defeituosas” (física, psíquica e moralmente) nos EUA entre as décadas de 1910 e 1960, e que, graças a esse diagnóstico, foram compulsoriamente esterilizadas. O diagnóstico e o tratamento foram decretados por apologistas da eugenia, por nomes influentes nas comunidades científica, artística e política da época. Essa então prestigiada ciência – a qual só mesmo “negacionistas” ousariam contestar – seguiu um caminho similar ao que, cem anos depois, seria trilhado pela bioética. Primeiro, tornou-se moda na academia. Em seguida, espalhou-se rapidamente, nos primeiros anos do século 20, entre a intelligentsia dos Estados Unidos, do Canadá, da Inglaterra (onde surgiu), da Alemanha e de outros países do Primeiro Mundo.
Em 1910, por exemplo, a eugenia era um dos tópicos mais frequentemente referenciados no Reader’s Guide to Periodic Literature. Em seus anos de auge, na década de 1920, tornou-se um movimento social e político muito influente. Cursos de eugenia eram ministrados em mais de 350 universidades e faculdades americanas, levando à aceitação popular generalizada dos seus princípios. A certa altura, a eugenia chegou a ser endossada em mais de 90% dos livros didáticos de Biologia do ensino médio. Como aconteceria mais tarde com a bioética, sociedades eugenistas foram formadas para a promulgação e discussão de teorias; jornais acadêmicos de eugenia foram editados; e fundações filantrópicas, como as fundações Rockefeller e Carnegie, abraçaram o movimento, financiando pesquisas e iniciativas de políticas eugenistas. Muitas das figuras notáveis da política, cultura e artes da época apoiaram a eugenia, incluindo Theodore Roosevelt, H. L. Mencken, Julian Huxley, George Bernard Shaw e Margaret Sanger, fundadora da ONG abortista Planned Parenthood.
Embora tenha nascido na Inglaterra pelas mãos de Francis Galton, primo de Charles Darwin, a eugenia foi rapidamente importada para os Estados Unidos, onde, a partir de fins do século 19, floresceu mais do em qualquer outra parte. Em 1899, por exemplo, o Journal of the American Medical Association já havia publicado um artigo defendendo o uso da recém-desenvolvida vasectomia como “tratamento cirúrgico” destinado a impedir a reprodução de seres humanos indesejáveis, dentre eles “criminosos habituais, alcoólatras crônicos, imbecis, pervertidos e indigentes”. Em 1902, um médico de Indiana chamado Harry Sharp defendeu a aprovação de leis de esterilização obrigatória para todos os internados em prisões, reformatórios e casas de indigentes. Em 1907, acatando a sugestão de Sharp, o estado de Indiana tornou-se o primeiro a aprovar uma lei de esterilização baseada na eugenia. Em 1912, já eram oito estados com leis de esterilização forçada. Poucos anos depois, o número já havia chegado a 30 estados, incluindo a Virgínia de Carrie Buck.
Uma das mais famosas apologistas da eugenia e do controle populacional nos EUA foi Margaret Sanger, fundadora do movimento abortista contemporâneo
A maior parte das pessoas pensa que os horrores da medicina assassina do Holocausto surgiram com os nazistas. Enganam-se. Na verdade, o caminho para o mal médico foi traçado muito antes de Hitler sequer despontar como uma nuvem negra no horizonte político-cultural alemão. No extraordinário livro War Against the Weak: Eugenics and America’s Campaign to Create a Master Race, diz o historiador Edwin Black:
“Nestas páginas, você descobrirá a triste verdade de como as justificativas científicas que impulsionaram os médicos assassinos em Auschwitz foram primeiramente elaboradas em Long Island, no empreendimento eugenista da Carnegie Institution em Cold Spring Harbor. Você verá que, durante o regime pré-guerra de Hitler, a Carnegie Institution, por meio de seu complexo em Cold Spring Harbor, propagandeava entusiasticamente o regime nazista e até distribuía filmes antissemitas do Partido Nazista para escolas secundárias americanas. E você verá as conexões entre as grandes doações financeiras da Rockefeller Foundation e o estabelecimento científico alemão que iniciou os programas eugenistas que foram concluídos por Mengele em Auschwitz (...) Eventualmente, o movimento eugenista dos Estados Unidos se espalhou também para a Alemanha, onde atraiu o fascínio de Adolf Hitler e do movimento nazista. Sob Hitler, a nova ciência ultrapassou os sonhos mais ambiciosos dos eugenistas americanos. O Nacional-Socialismo transformou a busca americana por uma ‘raça nórdica superior’ no impulso de Hitler por uma ‘raça ariana mestra’. Os nazistas gostavam de dizer que ‘o Nacional-Socialismo não é nada além de biologia aplicada’ e, em 1934, o Richmond Times-Dispatch citou um eugenista americano proeminente dizendo que ‘os alemães estão nos vencendo em nosso próprio jogo’”.
Como sugere Robert Jay Lifton em The Nazi Doctors: Medical Killing and the Psychology of Genocide, no cerne do empreendimento nazista estava a destruição da fronteira entre cura e assassinato. Os nazistas basearam a sua justificação para o assassinato médico no conceito de “vida indigna de ser vivida” (lebensunwertes Leben), sobre o qual já discorri aqui nesta coluna. Apesar de o terem levado ao extremo – com o assassinato em massa –, os nazistas não criaram o conceito, que está intimamente associado à cultura científica eugenista e darwinista social. Nas palavras de Lifton:
“Programas de esterilização coercitiva não eram exclusivos da Alemanha nazista. Eles existiram em grande parte do mundo ocidental, incluindo os Estados Unidos, que têm um histórico de esterilização coercitiva e, às vezes, ilegal, aplicada principalmente às classes mais desfavorecidas da sociedade. Foi nos Estados Unidos que uma forma relativamente simples de vasectomia foi desenvolvida em uma instituição penal por volta do início do século. Este procedimento, juntamente com o crescente interesse pela eugenia, levou, em 1920, à promulgação de leis em 25 estados que previam a esterilização compulsória de criminosos insanos e outras pessoas consideradas geneticamente inferiores.”
Uma das mais famosas apologistas da eugenia e do controle populacional nos EUA foi Margaret Sanger, fundadora do movimento abortista contemporâneo. Tal como outros eugenistas fervorosos – e em flagrante contraste com a visão conservadora e cristã –, Sanger opunha-se vigorosamente aos esforços de caridade para elevar os oprimidos e os desfavorecidos. No livro The Pivot of Civilization, por exemplo, a líder abortista argumentava ser preferível que os despossuídos e os famintos ficassem sem ajuda, para que as cepas eugênicas superiores pudessem se multiplicar sem a competição dos “não aptos”. Ela referia-se repetidamente às classes mais baixas e aos não aptos como “lixo humano” indigno de assistência, e repetia com orgulho o tópos eugenista segundo o qual as “ervas daninhas” humanas deveriam ser “exterminadas”.
Como mostra o historiador Michael Burleigh em Death and Deliverance: ‘Euthanasia’ in Germany, c. 1900 to 1945, apesar de todos os horrores praticados pelos médicos nazistas, a verdade é que muitos dos que participaram do programa nazista de eutanásia e esterilização forçada – o Aktion T4 – saíram impunes dos julgamentos que se seguiram à guerra, incluindo os famosos Processos de Nuremberg. Hans Heinze, por exemplo, tornou-se diretor de uma clínica de psiquiatria infantil em 1954, só chamando a atenção das autoridades em 1962. Seus supostos problemas de saúde mantiveram-no fora dos tribunais até a sua morte, em 1983 (mesmo ano da morte de Carrie Buck). Seu colaborador no Comitê do Reich, Werner Catel, fugiu dos russos em 1946. Um ano depois, tornara-se diretor de um hospital pediátrico em Mammolshain, nos Montes Taunus. Em 1954, era professor de Medicina Pediátrica na Universidade de Kiel. Publicou um livro que defendia a “morte piedosa” de bebês moral e fisicamente defeituosos. Em 1964, numa entrevista surpreendentemente simpática na revista Der Spiegel, que mencionava a sua “grande reputação em toda a Europa”, Catel esforçou-se para defender suas opiniões sobre o infanticídio. “Acredite em mim” – disse ele. “Em cada caso é possível distinguir essas criaturas sem alma daqueles que se tornarão humanos. Os médicos teriam de dizer aos pais que ‘essas criaturas não podem ser ajudadas’, que ‘nunca se tornarão uma pessoa’. Esses bebês eram ‘não pessoas, mas simplesmente seres produzidos por pessoas’; eram, de fato, ‘monstros’”. Sim, foi essa a palavra utilizada pelo nazista impune e, ainda em 1964, tratado como especialista.
Em 1979, o atual mandatário brasileiro concedeu uma famosa entrevista à revista Playboy, na qual disse admirar Adolf Hitler pelo “fogo de se propor a fazer alguma coisa e tentar fazer”. Questionado pelo repórter, disse não admirar as ideias de Hitler, mas a sua “disposição, força e dedicação”. No entanto, a recente declaração eugenista sobre a suposta “monstruosidade” inata de um bebê fruto de estupro, e sobre a consequente necessidade de sua eliminação, sugere que a admiração talvez não se restringisse apenas a isso. E sugere mais ainda ter sido o Brasil, enquanto nação, quem pariu um monstro.
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