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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Venezuela

“Choro de perdedor”

Lula - Maduro - Celac - Brasil - Venezuela
Lula e Maduro se encontram às margens da Cúpula da Celac em São Vicente e Granadinas, no Caribe. (Foto: Reprodução/Governo da Venezuela)

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“Cada experiência comunista é recomeçada na inocência.” (Alain Besançon, A Infelicidade do Século)

O apoio declarado de Luiz Inácio Lula da Silva à farsa eleitoral na Venezuela chavista – apoio que incluiu um deboche cafajeste dirigido à opositora María Corina Machado – causa um grande embaraço às Organizações Globo, que carregaram o lulopetismo no colo de volta ao poder. Isso porque a proximidade entre Lula e Nicolás Maduro lança luz sobre o nosso próprio teatro da democracia, similar em muitos aspectos ao venezuelano, e que teve nos estúdios e redações globais o seu produtor de maior destaque. Que Lula esteja se empenhando tanto em falsificar a imagem de Maduro e apresentá-lo como um democrata não deveria escandalizar um grupo de mídia que tem feito exatamente o mesmo com o mandatário brasileiro. Portanto, o escândalo recém-ostentado pelo jornalismo da Globo parece ser insincero e calculado.

A afetação de escândalo foi ilustrada, por exemplo, por um comentário muito indignado de Merval Pereira no programa Estúdio I, da Globo News. “É um acinte. Todo mundo sabe que a eleição [na Venezuela] não tem legitimidade, não tem candidato de oposição” – vociferou Merval.  “Não é possível que o Lula não saiba. Evidente que ele sabe, que a eleição já de largada não é correta, não é legítima. Ele não pode fazer esse comentário.”

De fato, é óbvio que Lula sabe da inexistência de oposição na Venezuela. Mas também é óbvio que Merval Pereira sabe que Lula não é um democrata, e que o seu apoio à ditadura venezuelana é antigo, sólido e inquebrantável. Quando, portanto, o jornalista diz em tom imperativo que o mandatário brasileiro não pode fazer esse comentário, certamente não é a surpresa que o motiva. Merval não é inocente. Portanto, falando em nome do empregador, seu objetivo parece ser o de recordar a aliança firmada entre a Globo e o lulopetismo ao longo da corrida eleitoral de 2022, e cobrar de Lula o compromisso de ao menos fingir ser um democrata. Afinal, a “defesa da democracia” contra o “fascismo” bolsonarista foi o mito fundador dessa aliança, a única justificativa para o abandono de qualquer resquício de ética jornalística por parte do grupo midiático em função do objetivo político comum. Uma vez comprometida essa peça de ficção, tudo o mais tende a derreter como cera ao sol.

Merval Pereira e seus companheiros de estúdio querem nos convencer de que o apoio petista ao chavismo é circunstancial e quase acidental. Mas a realidade é que Lula e Maduro são parceiros históricos, comparsas de um mesmo projeto de poder

Mas, se a minha interpretação está correta, conclui-se que, nesse caso, sim, seria preciso muita inocência para acreditar que o atual mandatário brasileiro seria mais leal à Globo – um grupo midiático que ele despreza e trata como um aliado de ocasião a ser usado ao seu bel prazer – do que a Nicolás Maduro, representante do regime que o PT ajudou a levar ao poder na Venezuela, e com o qual, no âmbito do Foro de São Paulo, tem mantido uma estreita aliança política há mais de 30 anos. Merval Pereira e seus companheiros de estúdio querem nos convencer de que o apoio petista ao chavismo é circunstancial e quase acidental. Mas a realidade é que Lula e Maduro são parceiros históricos, comparsas de um mesmo projeto de poder para toda a América Latina, por eles chamada de “Pátria Grande”. Lula não apenas pode fazer os comentários que fez contra a oposição venezuelana, como jamais deixou e jamais os deixará de fazer.

Gosto sempre de lembrar de um discurso de Lula feito em 2005, durante o seu primeiro mandato presidencial, por ocasião da comemoração dos 15 anos do Foro de São Paulo. Nesse discurso, disponível na Biblioteca da Presidência da República, o petista confessava a sua participação decisiva na ascensão de Hugo Chávez ao poder na Venezuela. Em suas palavras:

“E eu queria começar com uma visão que eu tenho do Foro de São Paulo. Eu que, junto com alguns companheiros e companheiras aqui, fundei esta instância de participação democrática da esquerda da América Latina, precisei chegar à Presidência da República para descobrir o quanto foi importante termos criado o Foro de São Paulo... Foi assim que nós, em janeiro de 2003, propusemos ao nosso companheiro, presidente Chávez, a criação do Grupo de Amigos para encontrar uma solução tranquila que, graças a Deus, aconteceu na Venezuela. E só foi possível graças a uma ação política de companheiros. Não era uma ação política de um Estado com outro Estado, ou de um presidente com outro presidente. Quem está lembrado, o Chávez participou de um dos foros que fizemos em Havana. E graças a essa relação foi possível construirmos, com muitas divergências políticas, a consolidação do que aconteceu na Venezuela, com o referendo que consagrou o Chávez como presidente da Venezuela. Foi assim que nós pudemos atuar junto a outros países com os nossos companheiros do movimento social, dos partidos daqueles países, do movimento sindical, sempre utilizando a relação construída no Foro de São Paulo para que pudéssemos conversar sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem qualquer interferência política.”

O sentido da confissão é explícito, comprovando que o projeto de poder dos membros do Foro, discutido interna e sigilosamente (“sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem qualquer interferência política”), sempre se sobrepôs aos interesses nacionais que presidentes eleitos como Lula, Chávez, Morales et caterva deveriam representar. Mais que chefes de Estado representando os interesses de seus países, eles eram companheiros (“só foi possível graças a uma ação política de companheiros. Não era uma ação política de um Estado com outro Estado, ou de um presidente com outro presidente”) agindo em função de um projeto transnacional de poder, e valendo-se dos cargos que ocupavam de modo a dispor dos recursos de seus países para esse fim. Foi sempre essa lógica que pautou a relação do lulopetismo com o chavismo, esses dois gêmeos siameses do socialismo latino-americano. Desde que Nicolás Maduro assumiu o poder pela primeira vez em 2013, Lula esteve sempre ao seu lado.

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Convém recordar também um episódio de fevereiro de 2011, relatado no livro Hugo Chávez, o Espectro: como o presidente venezuelano alimentou o narcotráfico, financiou o terrorismo e promoveu a desordem global, do jornalista Leonardo Coutinho. Confiante por haver feito praticamente sozinho a sua improvável sucessora na presidência do país, Lula convocou o então embaixador da Venezuela no Brasil, o chavista Maximilien Arveláiz, para uma conversa privada. Nela, disse ao venezuelano o seguinte: “Eu durmo tranquilo porque sei que Chávez está ali [na presidência], mas também, às vezes, perco o sono pensando que Chávez poderia perder as eleições de dezembro de 2012. Uma derrota de Chávez em 2012 seria igual ou pior que a queda do Muro de Berlim”.

Trata-se de uma fala muito significativa. Em primeiro lugar, por comprovar que, em perfeita sintonia com o movimento comunista internacional (e contrariando a visão da maior parte dos analistas políticos midiáticos no Brasil, para quem o lulopetismo nada tem a ver com comunismo), Lula sempre viu com pesar a queda do Muro de Berlim, daí seu propósito de criar o Foro de São Paulo junto com o camarada Fidel Castro, de modo a “recuperar na América Latina o que se perdera no Leste Europeu”. Em segundo, por revelar a que ponto os partidos e organizações membros do Foro mantinham uma relação de interdependência, imiscuindo-se desavergonhadamente nos assuntos internos uns dos outros, e submetendo os interesses nacionais dos países em que chegaram ao poder às exigências estratégicas dessa entidade política supranacional, que teve entre seus membros grupos terroristas e narcotraficantes, a exemplo das Farc e do Mir (Movimiento de Izquierda Revolucionária) chileno.

Preocupado, portanto, com uma possível derrota de Chávez, o camarada Lula não ficou só nas palavras. Sugeriu a criação no Brasil de um comando para a campanha chavista, que ele próprio coordenaria junto com José Dirceu, e do qual nasceu a ideia de enviar o publicitário João Santana para assinar a campanha de marketing chavista, em operação cujos detalhes seriam, mais tarde, revelados pela Lava Jato. Recorde-se que, em sua delação premiada, Mônica Moura, mulher de João Santana, revelou ter sido Lula o grande responsável por intermediar a relação do casal de publicitários com a cúpula chavista, na época representada na figura do então candidato a vice-presidente Nicolás Maduro. A negociação envolveu o pagamento, via caixa dois, de US$ 35 milhões pela campanha publicitária, parte dos quais bancada pela Odebrecht e pela Andrade Gutierrez, empreiteiras com contratos para obras na Venezuela. Mônica Moura contou à Justiça brasileira que chegou a receber maletas com dinheiro vivo das mãos de Nicolás Maduro em pessoa, inclusive dentro do Palácio Miraflores. Mas Merval Pereira pede a Lula que não diga palavras assim tão gentis sobre o amigo e companheiro bolivariano...

Outro marido traído, o último a saber, foi Guga Chacra, companheiro de estúdio de Merval Pereira. Também comentando sobre o apoio de Lula à ditadura de Maduro, disse ele que o presidente brasileiro “deveria pregar a defesa da democracia em qualquer circunstância”, porque defender a democracia no Brasil e endossar a farsa eleitoral na Venezuela “passa, naturalmente, uma sensação de hipocrisia”.

Lula não está sendo hipócrita. Hipócrita é quem condena a falsa democracia na Venezuela, mas a endossa no Brasil, fingindo que Lula e Maduro são anátemas, e não consortes de um mesmo projeto de poder e adeptos de uma mesmíssima concepção de “democracia”.

Mas Guga Chacra deve estar com um parafuso a menos. Lula não está sendo hipócrita. Ele defende para o Brasil exatamente o mesmo modelo de “democracia” que defende para a Venezuela, onde haveria até em excesso. Trata-se do conceito de “democracia” popular inerente aos regimes comunistas, que o trazem até no nome, como é o caso da atual Coreia do Norte (República Popular Democrática da Coreia) e era o caso da extinta Alemanha Oriental (República Democrática Alemã). Nesse significado especificamente comunista, “democracia” significa um regime de partido único, no qual até podem ocorrer eleições teatralizadas, desde que sem a presença de oposição, uma vez que os opositores estão todos mortos, presos ou – mediante aparelhamento de cortes eleitorais – inelegíveis. Aliás, a concepção da eleição como farsa foi manifesta explicitamente por Lula. Ainda em 2002, dias antes de sua primeira eleição para presidente, o petista confessou ao jornal francês Le Monde: “a eleição é uma ‘farsa’ pela qual é preciso passar para se chegar ao poder”.

Portanto, é preciso não se deixar iludir pela homonímia. A ideia comunista de “democracia” não se confunde com o conceito liberal de democracia. Ao contrário do que diz Guga Chacra, a fala do mandatário brasileiro (um comunista “com orgulho”, segundo o próprio) não deixa sensação de hipocrisia alguma, ao menos para quem conhece um pouco de história e de política. O que passa sensação de hipocrisia é o comportamento da Globo News, que condena a falsa democracia na Venezuela, mas a endossa no Brasil, fingindo que Lula e Maduro são anátemas, e não (o que de fato são) consortes de um mesmo projeto de poder e adeptos de uma mesmíssima concepção de “democracia”.

Observando o desespero da Globo em recauchutar o seu personagem democrata que se desfazia a olhos vistos, ousei prever, em meu perfil no X, qual seria o último recurso da assessoria de imprensa lulopetista: “Já estou antevendo o próximo movimento da Globo. Provavelmente, vai sacar a carta mágica do Luís Roberto Barroso: a Venezuela é uma ditadura de direita. E por isso, Lula e o PT, sendo democratas de esquerda, não deveriam apoiá-la. Anotem”. Batata! Para o serviço de afastar o ditador Maduro do campo lulopetista e tentar associá-lo à direita foi convocada Míriam Leitão, jornalista consagrada por suas habilidades em novilíngua, e por nos convencer de que tudo o que o regime faz de ruim – como a inflação, por exemplo – é, na verdade, bom.

Pois Míriam Leitão publicou em seu blog no jornal O Globo o texto “O erro insistente de Lula de defender o governo claramente autoritário da Venezuela”. Nem discutirei o truque de retratar como um “erro” aquilo que é, na verdade, apenas o corolário de uma antiga aliança política, e que, portanto, do ponto de vista dos interessados, nada mais é que um acerto. Míriam Leitão sabe não ter se tratado de um “erro”. E, se ainda não o sabe a esta altura, tanto pior, pois teria obrigação de saber.

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Míriam questiona Lula por cometer esse “erro” nos seguintes termos: “Para ser democrática uma eleição tem de ter regras justas, e o regime chavista está desmontando toda a estrutura de disputas justas. Portanto, uma eleição precisa ser livre, antes, durante e depois”. Curiosamente, a jornalista não associa o processo eleitoral venezuelano com o que vem acontecendo no Brasil, onde não tivemos uma eleição justa em 2022 – uma vez que autoridades eleitorais agiram parcialmente, impedindo a circulação de informações contrárias ao candidato do Foro de São Paulo, e chegando a comemorar o fato de terem cumprido uma missão dada e derrotado o bolsonarismo – e certamente não teremos em 2026, haja vista que, tal como na Venezuela, a principal liderança de oposição está inelegível. Em vez disso, ela associa o procedimento ditatorial de Maduro a – pasmem! – Jair Bolsonaro. Escreve ela:

“O governo chavista está há 26 anos no poder. Foi eleito em 1998, e depois manobrou no poder para afastar qualquer competição eleitoral, começando exatamente pelo ataque em 2003 ao Conselho Nacional Eleitoral. Eu estive na Venezuela naquela época para reportar esse começo do sufocamento da democracia. Depois disso, com Hugo Chávez ou com Maduro, o regime da Venezuela implementou um projeto autoritário, bem semelhante aos projetos de autocratas em várias partes do mundo e que era o projeto de Jair Bolsonaro aqui. Não por acaso o primeiro alvo foi o TSE, como na Venezuela foi o CNE.”

Haja contorcionismo retórico! Ela sugere que Bolsonaro fez com o TSE o mesmo que Maduro fez com o CNE. Mas é precisamente o contrário. O TSE nunca foi “alvo” de Bolsonaro no sentido em que o CNE foi alvo de Maduro, e é um truque bem barato usar a mesma palavra para tentar igualar as duas situações. O TSE foi alvo de críticas de Bolsonaro e de seus apoiadores justamente pela parcialidade de seus integrantes, vários deles indicados por Lula e/ou simpáticos à causa lulopetista. Já o CNE foi alvo do aparelhamento chavista. O que Chávez e Maduro fizeram na Venezuela foi muito parecido com o que o PT também conseguiu fazer no Brasil, inundando os tribunais superiores com aliados políticos e até mesmo militantes do partido, situação hoje levada ao paroxismo, com a indicação de Cristiano Zanin (ex-advogado de Lula) e Flávio Dino (ex-ministro da Justiça do regime).

A jornalista do “entenda como o ruim é bom” encerra o artigo estranhando o fato de que, representando no Brasil a vitória da democracia, Lula use o seu prestígio para favorecer a ditadura na Venezuela. Em suas palavras: “Lula já defendeu a tese de que a democracia é relativa. Não. A democracia é um valor absoluto. E o Brasil acaba de passar por um grande estresse na nossa democracia para saber o quanto ela é valiosa. E foi em nome dela que Lula voltou ao poder”. Ao que parece, Míriam Leitão acredita mesmo na ficção que ela própria e seus companheiros de emissora criaram, segundo a qual o maior amigo dos ditadores em todo o mundo – e quem não lembra que o homem já havia qualificado como “choro de perdedor”, exatamente como fez com María Corina, os protestos dos massacrados opositores de Mahmoud Ahmadinejad no Irã, por ocasião das eleições fraudulentas de 2009? – é, em casa, um exímio democrata. Haja disposição para a falsificação da história!

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