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“O problema que confrontamos é um problema filosófico, não é um problema científico. Ele requer esclarecimento conceitual, não investigação experimental. Não se pode investigar experimentalmente se cérebros pensam ou não, acreditam, fazem suposições, raciocinam, fazem hipóteses etc. até que se saiba o que significa um cérebro fazer tais coisas – isto é, até que sejamos claros sobre o significado dessas frases e soubermos o que (se é que algo) vale como um cérebro fazendo tais coisas e que tipo de evidências apoiaria conferir tais atributos ao cérebro” (Peter Hacker e Max Bennett, Fundamentos Filosóficos da Neurociência)
Num tempo em que a palavra “ciência” vem sendo tão mistificada no debate público – sobretudo por uma imprensa que, no geral sem muita intimidade com o objeto em questão, trata-o de forma idólatra, como se ciência fosse uma entidade abstrata, homogênea e atemporal, espécie de sacerdotisa secular que pudesse responder aos anseios de repórteres por certezas imediatas e manchetes espalhafatosas –, cabe refletir sobre o abismo existente entre a prática científica concreta e o discurso de divulgação científica. E, mais particularmente, sobre a diferença colossal entre a ciência enquanto tal e aquela ideologia moderna, de origem iluminista, que a toma por matéria-prima: o cientificismo.
Saindo da quarentena mental e deixando, por hoje, o coronavírus de lado – bem como a fetichização da ciência feita por jornalistas ignorantes e provincianos –, gostaria de discutir o assunto a partir da confusão que os próprios cientistas (felizmente, é claro, não todos) costumam fazer entre os dois registros: o da prática e o do discurso, o da realidade e o da ideologia.
Um geneticista no laboratório opera num registro onde o que existe não é a ciência genérica, mas os procedimentos e paradigmas específicos de sua atividade hiperespecializada. Ali, ele não é um “cientista”, mas, por exemplo, um geneticista, um geneticista especializado em doenças neurológicas, um geneticista especializado em doenças neurológicas em camundongos, um geneticista especializado em doenças neurológicas em camundongos albinos e assim por diante. No entanto, uma vez fora do laboratório – discutindo, digamos, políticas públicas de saúde –, esse mesmo especialista será reduzido (de bom ou mau grado) à condição de cientista genérico, principalmente se estiver em confronto com o religioso genérico, situação em que os jornais não hesitarão em estampar nas manchetes um confronto entre “ciência” e “religião”.
Muitos cientistas (felizmente, é claro, não todos) costumam fazer uma confusão entre os dois registros: o da prática e o do discurso, o da realidade e o da ideologia
Portanto, algo se passa na transição do laboratório à ágora, por assim dizer, que altera substancialmente o sentido de “ciência”. Como estudo de caso, recorro aqui a um pequeno vídeo com que topei na internet há algum tempo. Produzido pela Casa do Saber, conhecido centro extra-acadêmico de divulgação científica, o vídeo traz a neurocientista paulistana Claudia Feitosa-Santana discorrendo sobre o caso de um sujeito que, numa mudança súbita de personalidade e comportamento, tornara-se pedófilo.
Segundo o relato, descobriu-se posteriormente que o homem tinha um tumor no cérebro, sendo essa a provável causa do seu novo e criminoso comportamento. A partir dessa informação, a dra. Feitosa-Santana questiona: “Onde está o livre arbítrio?”. E, sem que o espectador possa sequer digerir a pergunta, conclui de supetão: “Esse caso, como muitos outros, abala a crença quase universal que nós temos em livre arbítrio... Para a neurociência, o livre arbítrio é uma ilusão”.
O restante do vídeo segue na mesma toada, recheado daquilo que, em lógica, recebe o nome de non sequitur: a elaboração de uma conclusão que não decorre das premissas. Talvez porque leigo no assunto, o raciocínio da neurocientista tenha-me soado assaz extravagante, e a um ponto tal que, diante dele, só consegui recordar o comentário que, consternado diante do artigo sofrível de um jovem aluno, o físico alemão Wolfgang Pauli foi incapaz de conter: “Não é apenas que não esteja certo. Não está nem mesmo errado!”
Com efeito, para chegar a estar errado, o argumento apresentado no vídeo teria de melhorar bastante. E, muito embora a dra. Feitosa-Santana assuma aí a condição de porta-voz da neurociência, fica difícil compreender como essa ciência particular poderia conduzir necessariamente a uma conclusão que, por óbvio, não é científica, mas filosófica.
A neurociência é, sem dúvida, um ramo admirável da ciência, que muito contribui para a nossa compreensão do funcionamento do cérebro, inclusive com implicações práticas notáveis (como, por exemplo, no tratamento de doenças neurológicas). Portanto, antes que de neurocientífica, talvez fosse mais preciso chamar de neurocientificista essa tentativa de explicar, via impulsos neurais, todo o comportamento humano, bem como de decidir, com base numa perspectiva hiperespecializada e necessariamente limitada, uma questão filosófica tão perene e complexa quanto a do livre arbítrio.
Tal como o compreendo, o neurocientificismo é a forma que uma ideologia tipicamente moderna – o materialismo científico – assume no campo das ciências do cérebro. Essa ideologia remonta à virada do século 17 para o 18, quando se consolida a convicção de que “a totalidade da natureza é a realidade última: o universo não consiste em nada além de uma imensa coleção de matéria e movimento” – tal como, referindo-se especificamente a Descartes, resume Hegel em suas Lições sobre História da Filosofia.
Foi com aquele momento histórico em mente que, no seu A Ciência e o Mundo Moderno, o filósofo Alfred Whitehead batizou o fenômeno: “Essa posição persiste... ao longo de todo o período da cosmologia cientifica estabelecida, a qual pressupõe que a realidade última de uma matéria bruta irredutível, ou material, estende-se por todo o espaço em um fluxo de configurações. Em si, uma tal matéria é absurda, sem valor, sem sentido. Apenas faz o que faz fazer, seguindo uma rotina fixa imposta pelas relações externas que não emergem da natureza de seu ser. É essa pretensão que chamo de ‘materialismo científico’” (grifos meus).
Não são poucos os neurocientistas, psicólogos cognitivos e filósofos da mente que militam pelo neurocientificismo. No velho e inconclusivo debate mente-corpo, que também Descartes inaugurou, tomam sempre partido do segundo, reduzindo a consciência à estrutura física do cérebro. Com Ortega y Gasset, não seria exagero chamá-los de “novos bárbaros” – os especialistas que, conhecendo muito bem a sua “porciúncula” do universo, ignoram profundamente todo o resto. E, nesse sentido, como dizia o filósofo espanhol, conseguem ser piores que os ignorantes plenos, pois “se comportam nas questões que ignoram não como ignorantes, mas com toda a petulância de quem é um sábio em sua questão particular”.
Talvez seja mais preciso chamar de "neurocientificista" essa tentativa de explicar, via impulsos neurais, todo o comportamento humano
Há exemplos notáveis de neobarbarismo neurocientificista no universo intelectual contemporâneo. Pensemos, por exemplo, em alguém como o filósofo da mente Daniel Dennett, célebre por seu secularismo militante, pelo qual ficou conhecido, junto com Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens, como um dos “quatro cavaleiros do ateísmo”. No seu livro Consciência Explicada, de 1991, encontramos uma boa amostragem da cosmovisão neurocientificista, manifesta, por exemplo, em trechos como este: “Há apenas um tipo de coisa, a saber: a matéria – a substância concreta da física, da química, da fisiologia –, e a mente não passa de um fenômeno físico. Em suma, a mente é o cérebro... Podemos (a priori!) explicar todo fenômeno mental recorrendo aos mesmos princípios físicos, leis e materiais crus que servem para explicar a radioatividade, a deriva continental, a fotossíntese, a reprodução, a nutrição e o envelhecimento”.
Para um exemplo mais recente, podemos aludir ao neurocientista David Eagleman, que em seu Incognito: as vidas secretas do cérebro, de 2011, best-seller do The New York Times, sustenta basicamente os mesmos argumentos de Dennett em relação à determinação neurofisiológica da consciência. E, assim como ocorre com o raciocínio de seu colega mais velho, o de Eagleman também passa por uma curiosa mutação no decorrer mesmo de seu desenvolvimento: aquilo que principiara como afirmação de naturalismo epistemológico (a ideia de que só se pode conhecer o mundo físico) converte-se rapidamente em naturalismo ontológico – ou, dito de outro modo, em materialismo científico (a ideia de que só o que é físico existe).
Ainda que relativamente comum entre cientistas naturais, todavia, esse non sequitur não é um corolário inevitável da prática científica. A bem da verdade, alguns dos maiores cientistas da história recusaram a amarra filosófica do materialismo científico, jamais permitindo que o desejo de conhecer o funcionamento da natureza servisse de meio e pretexto para uma metafísica de segunda mão ou – como parece ser o caso para Dennett –, um martelo contra a fé religiosa.
Sobre a pretensa guerra entre a ciência e religião, aliás, ninguém menos que Max Planck, pai da física quântica, escreveu em 1938, em Religião e Ciência Natural: “A ciência e a religião lutam juntas uma batalha constante, perpétua, incansável contra o ceticismo e o dogmatismo, a descrença e a superstição. O fio condutor dessa batalha vem desde o passado e estende-se para o futuro: em direção a Deus!”
Se, portanto, nem todo cientista é um materialista científico, é certo que nem todo neurocientista é um neurocientificista. Raymond Tallis, por exemplo, prestigiado neurocientista clínico do Reino Unido, tem criticado veementemente o uso de sua especialidade para extrapolações filosóficas como as da dra. Feitosa-Santana. Em artigo intitulado “O que a neurociência não pode nos dizer sobre nós mesmos”, ele apresenta uma série de objeções consistentes à teoria neural da consciência, especialmente significativas por partirem das próprias premissas dessa teoria, dentre estas a de que o cérebro não passa de uma porção de matéria.
Tallis argumenta que um dos grandes problemas do reducionismo neurocientificista é a confusão pueril entre causalidade e intencionalidade. Um corpo se move devido ao choque com outro corpo – a isso chamamos causalidade. Mas nós, seres humanos, somos mais que apenas corpos reagindo a outros corpos. Somos aquilo que se convencionou chamar de agentes. Ademais de transmitir movimento, também o originamos. E a isso chamamos intencionalidade. Se, por um lado, é verdade que somos determinados por forças externas que não provêm da natureza do nosso ser (conforme a formulação de Whitehead citada anteriormente), também é verdade que a força está conosco. E não, não é preciso ser um mestre Jedi para conclui-lo.
Um bom modo de perceber por que a consciência não é redutível ao mundo físico-material é lembrar que ela é sempre consciência de alguma coisa, isto é, uma percepção direta. Experimentamos essa percepção como um reconhecimento da existência de algo material distinto de nós mesmos. Imaginemos, por exemplo, um copo pousado sobre uma mesa. A luz emana do copo, atravessa nossas retinas e ativa o nosso aparelho visual. A interpretação neurocientífica padrão diz que a nossa percepção do copo é o resultado dessa atividade neural – ou, mais ainda, que é a própria atividade neural.
O problema dessa interpretação é o seguinte: o mecanismo causal interno explica como a luz chega até o nosso cérebro, mas não como isso resulta num olhar para fora. Não dá conta do reconhecimento do copo como objeto nitidamente separado de nós, e que, da nossa perspectiva, está lá, enquanto nós estamos aqui. A noção de que somos conscientes de algo, de que a nossa consciência se dá sobre algo, e de que o percebemos como outra coisa que não nós mesmos, é o que chamamos de intencionalidade (que, portanto, não deve ser confundida com intenção).
Um bom modo de perceber por que a consciência não é redutível ao mundo físico-material é lembrar que ela é sempre consciência de alguma coisa, isto é, uma percepção direta
Não há nada na atividade do córtex visual (impulsos nervosos que nada mais são do que eventos materiais num objeto material) que o faça incidir sobre as coisas que vemos. Logo, a intencionalidade não pode ser explicada pela abordagem neurológica, capaz apenas de demonstrar uma cadeia causal fechada indo dos inputs sensoriais aos outputs motores. Mas essa é tão somente uma parte da experiência integral que consiste em ver o copo. Tudo o que o estudo do mundo material pode revelar são causalidades, jamais intencionalidades.
Tocamos, assim, na pedra angular do vício positivista em ciência: a confusão entre o método de estudo e a realidade estudada. Como bem observa Tallis no artigo em tela: “Uma abordagem biofísica da consciência, que a vê unicamente como resultado de impulsos nervosos servindo de rota para a passagem de íons através de membranas semipermeáveis, é necessariamente uma contradição em termos”.
É preciso, pois, separar o método do objeto. Não há dúvida, por exemplo, de que a ciência biológica (o estudo da vida) avança, entre outras coisas, pelo exame minucioso de organismos mortos. Um anatomista estuda cadáveres humanos para compreender a fisiologia dos seres humanos vivos. Mas não pode e não deve esquecer jamais que um cadáver não é um ser humano vivo.
Mas passemos, por fim, ao exame de trechos pontuais da fala da dra. Feitosa-Santana, frequentemente baseada em deslizes lógicos como os acima citados, e chegando a deixar a impressão de se tratar menos de linguagem científica que de literatura infantil (que, como se sabe, é bastante rica em figuras de linguagem). Ressalvo que a ordem dos trechos da minha exposição não coincide necessariamente com a cronologia da fala no vídeo.
1. “A ressonância indicou um tumor numa região do cérebro que é responsável por regular o nosso comportamento social…”
Cada palavra aí precisaria ser mais bem definida. O que se quer dizer exatamente com “ser responsável por” nesse caso específico, que trata de uma pretensa relação causal entre uma região cerebral e um comportamento social? Qual o sentido preciso de “regular” nesse mesmo contexto? Mesmo que se aceite provisoriamente a premissa oculta de que as pessoas são os seus cérebros – ou seja, de que a consciência é determinada pela atividade neural –, restaria ainda uma pergunta: como um cérebro individual seria capaz de regular um comportamento social, que, por definição, depende da interação com outros cérebros? Sabe-se desde Émile Durkheim que uma sociedade – mesmo uma fantasiosa comunidade de cérebros – é sempre algo mais do que a mera soma de indivíduos dispersos e atomizados.
2. “O seu cérebro decide o que você vai fazer meio segundo antes de você achar que está decidindo por você mesmo”.
A neurocientificista refere-se aí ao conhecido “Experimento de Libet”, conduzido em 1983 pelo psicólogo Benjamin Libet, da Universidade da Califórnia. Com eletrodos na cabeça, voluntários eram instruídos a escolher entre flexionar o punho da mão direita ou o punho da mão esquerda. O instante do movimento era cuidadosamente anotado, e, além disso, os voluntários deviam comunicar o momento preciso em que tomavam a decisão de qual punho mexer. O experimento mostrava que impulsos cerebrais automáticos aconteciam uma fração de segundo antes do momento da decisão reportada pelos voluntários. E a conclusão retumbante era: o livre arbítrio é uma ilusão.
Como leigo, não tenho condições de avaliar minuciosamente os méritos e deméritos desse tipo de experimento. Para uma crítica especializada desse e de outros testes cognitivos, recomendo o artigo do neurocientista W. R. Klemm intitulado “Debates sobre o livre arbítrio: experimentos simples não são assim tão simples”. Sobre o Experimento de Libet, em particular, noto que o próprio Daniel Dennett, materialista inveterado, apontou-lhe falhas graves de procedimento. Uma delas, perceptível a qualquer não especialista, é a crença de que o momento da decisão de mexer um ou outro punho equivale à comunicação dessa decisão por parte do voluntário. Como objeta Dennett, Libet se equivocara ao supor que a decisão ocorre de forma instantânea e pontual, em vez de estendida no tempo.
Portanto, a fé cega que a dra. Feitosa-Santana parece depositar no Experimento de Libet é um tanto quanto constrangedora. Não mais constrangedora, contudo, do que a linguagem que utiliza para explicá-lo. Nós não temos livre arbítrio, diz ela. Mas, ao que parece, os nossos cérebros o têm. Afinal, a capacidade de decisão (“o cérebro decide”) é um atributo do livre arbítrio, e este, por definição, é uma propriedade da pessoa. Logo, é preciso ser uma pessoa para exercer o livre arbítrio.
Como um cérebro individual seria capaz de regular um comportamento social, que, por definição, depende da interação com outros cérebros?
Ora, uma das características da pessoa dificilmente abarcável em termos neurais é a capacidade de reunir uma multiplicidade de percepções, sensações e memórias numa única experiência. Assim, por exemplo, quando Proust leva aos lábios a colherada de chá com o pedaço amolecido de madalena, as migalhas que lhe tocam o palato e o aroma que lhe invade as narinas convocam no ato a lembrança do passado em Combray. Temos aí percepções, sensações e memórias sintetizadas numa experiência unificada e imediata.
Seria difícil compreender aquela experiência do ponto de vista da neurociência, cujo método, como vimos no primeiro trecho em destaque da fala da dra. Feitosa-Santana, consiste em repartir as percepções, sensações e memórias em diferentes “regiões” do cérebro. No entanto, todos esses elementos são dados simultaneamente à consciência, e não parece haver nada na fisiologia cerebral que, por si só, seja capaz de realizar síntese tão complexa. Estamos, então, diante do assim chamado “problema da ligação” (the binding problem), que a neurociência e a ciência cognitiva tiveram o mérito de suscitar, mas parecem longe de resolver.
Conforme as premissas da neurociência, portanto, o cérebro evidentemente não é uma pessoa. Trata-se, ao contrário, de uma porção de matéria, uma coisa, algo assim como uma grande esponja eletrificada, no interior da qual os neurônios se interconectam via sinapses. Porque, na hipótese ficcional de que o cérebro fosse uma pessoa, ele seria uma pessoa para lá de estranha: alguém assim como... o Bob Esponja!
Em sua fala, a dra. Feitosa-Santana recorre a uma figura de linguagem – no caso, a prosopopeia, ou personificação. Trata-se, aliás, de figura muito recorrente no discurso neurocientífico, pelo qual ficamos sabendo que o nosso cérebro pode “confundir-se”, “pregar-nos uma peça”, ou “esquecer-se” de algo.
Não há nada mais distante da nossa experiência imediata do que a ciência moderna
É claro que o recurso a figuras de linguagem para falar de ciência não é um mal em si mesmo. O problema surge quando se esquece de tê-lo feito, confundindo o literal com o figurado, e o processo de comunicar a ciência com o de produzi-la. O grande risco para o neurocientista, especificamente, é começar a extrair conclusões definitivas sobre o funcionamento do cérebro a partir dos recursos parciais utilizados para falar sobre ele.
Há um longo e controverso debate sobre o uso de figuras de linguagem na ciência, debate que surge com Aristóteles, passa por Thomas Kuhn e chega até os nossos dias sem que, aparentemente, a dra. Feitosa-Santana nem sequer se dê conta dele. Num livro clássico publicado na década de 1980, Metáforas da Vida Cotidiana, o linguista George Lakoff e o filósofo Mark Johnson argumentam que o nosso pensamento se estrutura necessariamente por meio de metáforas, e que a linguagem científica, como de resto toda linguagem, não foge à regra.
Lakoff e Johnson fundaram a chamada Teoria da Metáfora Conceitual, cujas implicações para a linguagem científica são interessantíssimas. Sua premissa central é a de que recorremos às metáforas para ordenar tudo aquilo que não pertence ao domínio da nossa experiência imediata. E não há nada mais distante da nossa experiência imediata do que a ciência moderna – que se constituiu, precisamente, dando as costas às assim chamadas “qualidades secundárias” (cores, sons, sabores, aromas etc.).
Com efeito, na medida em que a ciência progride, os fenômenos do mundo natural passam a ser descritos em termos cada vez mais quantitativos e abstratos. No caso específico da neurociência, dado que não temos acesso direto aos processos cerebrais, não é de se espantar que os neurocientistas apelem com tanta frequência a metáforas como forma de explicar o seu objeto. Como dissemos antes, até aí nada de mais. O problema surge quando o emprego da figura de linguagem passa a ser automático e inconsciente, a exemplo do que a dra. Feitosa-Santana faz com a prosopopeia.
Segundo a neurocientista da Casa do Saber, o cérebro – compreendido, recorde-se, como mera porção de matéria – é dito controlar a pessoa. Paradoxalmente, no entanto, essa mera porção de matéria é, ela mesma, descrita figurativamente como uma pessoa – algo assim como uma minipessoa, capaz de tomar decisões e exercer o seu livre arbítrio. Donde uma consequência curiosa, porque, se o cérebro pode ser descrito como uma minipessoa, esta, por sua vez, também há de ter um cérebro, que será compreendido como uma mini-minipessoa, cujo cérebro será concebido como uma mini-mini-minipessoa, e assim sucessivamente, numa regressão em fractal que, em lugar de resolver o problema, apenas o retroage indefinidamente. Via o raciocínio da dra. Feitosa-Santana, em suma, o cérebro parece adquirir a forma de uma matrioska russa.
O uso irrefletido desse tipo de retórica configura aquilo que, no livro Fundamentos Filosóficos da Neurociência, de 2005, o filósofo Peter Hacker e o neurocientista Max Bennett chamam de “falácia mereológica”, que consiste em facultar a partes propriedades que pertencem a todos. Por sua vez, a falácia mereológica (de méros, palavra grega para “parte”) é uma espécie do gênero de vício semântico que o filósofo Gilbert Ryle definiu como “erro categorial” (category mistake): a atribuição a um ente de características que, por sua própria natureza, ele jamais poderia ter.
Como explicam Hacker e Bennet em referência à neurociência em particular: “Predicados psicológicos que são aplicados ao ser humano (e outros animais) como um todo não podem ser aplicados inteligivelmente às suas partes – como, por exemplo, o cérebro”. Dizer, portanto, que o cérebro decide é como dizer que a perna anda, que o nariz espirra ou que o pulmão tem asma.
3. “Esse caso [o do pedófilo com tumor cerebral] desestrutura toda a organização da nossa sociedade. Do Legislativo ao Judiciário, nós somos baseados na crença de que temos 100% de livre arbítrio e somos donos das nossas escolhas.”
Eis o trecho mais delirante do vídeo, que veicula uma opinião com consequências potencialmente nocivas para um sistema judiciário já tendente à bandidolatria, e demasiado hostil à noção de responsabilidade individual dos criminosos.
Se somos reles autômatos reagindo a impulsos neurais, é simplesmente absurda a ideia de sermos presos por crimes que porventura venhamos a cometer
Dizer que a conclusão sobre o caráter ilusório do livre arbítrio “desestrutura” a organização da nossa sociedade é, na verdade, um eufemismo. Levada ao seu corolário lógico, essa conclusão simplesmente inviabiliza a vida social. Sem a noção de responsabilidade moral individual, por exemplo, todo o nosso arcabouço jurídico-penal perde o sentido. Por que haveríamos de punir quem não pode responder por seus atos? Se somos reles autômatos reagindo a impulsos neurais, é simplesmente absurda a ideia de sermos presos por crimes que porventura venhamos a cometer. Na verdade, apenas o cérebro – que, ao contrário de nós, tem capacidade de escolha – poderia sê-lo.
Por outro lado, isso equivale a dizer que todo comportamento criminoso poderia ser cirurgicamente neutralizado, assim como se extirpa um tumor. Seria o caso de imaginar que, caso a neurociência avance o suficiente a ponto de identificar com precisão que área determinada do cérebro corresponde a tal e qual comportamento, estaremos às portas da Utopia – um lugar sem crime e sem comportamentos socialmente indesejáveis. Uma ideia não muito razoável, convenhamos.
Esse é o grande problema de quando o cientista esquece dos limites epistemológicos impostos pela própria especialidade científica. E de quando, pior ainda, a sociedade como um todo parece esquecê-los, exigindo da ciência respostas que, por sua própria natureza, ela não pode dar, sob pena de se desnaturar e tornar-se uma autoridade espúria.
O que, aliás, me faz lembrar de uma tirada impagável de Dinesh D’Souza, que, num dos seus muitos debates contra ateístas contemporâneos de destaque (e talvez, se a memória não me trai, tenha sido contra o próprio Daniel Dennett), não conseguiu reprimir um gracejo em reação às grandiloquentes elucubrações cientificistas do interlocutor. “Eis o que acontece quando deixamos um cientista sair do laboratório” – disse o intelectual indo-americano para as gargalhadas do público.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos