| Foto: Benjamin Hartwich/Pixabay
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“Eu percebi claramente, e fazia anos, que a distância crescente, agora abissal, entre a população e os que falavam em seu nome, políticos e jornalistas, devia necessariamente levar a algo caótico, violento e imprevisível” (Michel Houellebecq, Submissão)

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Em abril de 2017, a Fundação Perseu Abramo, think tank petista, divulgou o resultado de uma pesquisa sobre o imaginário político dos moradores das periferias de São Paulo. Espantados e contrariados, os autores da pesquisa descobriram aquilo que qualquer inteligência saudável, fora do opressivo e bolorento conjugado mental em que se meteu a esquerda tupiniquim, já podia intuir: os pobres tendem a ser mais liberais e conservadores que os ricos. No espectro político nacional, estes tendem à esquerda (tanto faz se comunista, socialista fabiana, festiva ou identitária); aqueles, à direita.

Em dezembro de 2016, o Ibope já publicara uma pesquisa semelhante (e com semelhante reação), na qual apontava o aumento do conservadorismo do povo brasileiro. À época, o tema foi discutido no programa Estúdio I, da Globo News, em que, num tom que alternava entre perplexidade e condescendência, a apresentadora e os convidados procuravam mil e uma explicações para o resultado, que lhes parecia antinatural.

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O aumento do conservadorismo da população só pode ser compreendido relativamente à intensificação do progressismo das nossas “elites” culturais

Aquela perplexidade, típica da classe falante nacional como um todo, deriva de um problema muito simples: os jornalistas e opinadores midiáticos parecem ter passado incólumes pela teoria da relatividade. Sim, ali no estúdio da Globo News, bem como em tantas outras províncias progressistas espalhadas pelo país, os insights de Albert Einstein não repercutiram – ao contrário, por exemplo, do uso masculino de saias, das crianças “transgênero” e demais obsessões do jornalismo lacrador e prafrentex.

Particularmente, os nossos formadores de opinião ainda não descobriram uma coisa chamada movimento relativo. Quando olham para o aumento do conservadorismo do brasileiro, imaginam estar num ponto fixo de observação, sem perceber que também eles estão em movimento – no caso, em sentido contrário. Pois a verdade é que aquele aumento de conservadorismo só pode ser compreendido relativamente à intensificação do progressismo das nossas “elites” culturais.

Se, para os integrantes do Estúdio I, o povo brasileiro parecia estar se afastando rumo à direita, é porque eles próprios estão se afastando rumo à esquerda. A sensação de distância é intensificada pela soma dos vetores dos dois “corpos” movendo-se em direções opostas – o povo, para um lado; a classe falante, para o outro.

Minha hipótese é a seguinte: aquela distância cultural tende a aumentar ao longo das próximas décadas, porque ambos os comportamentos (o conservadorismo do povo e o progressismo da elite) têm se reforçado mutuamente, numa modalidade de interação que proponho chamar de cismogênese complementar.

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O conceito de cismogênese foi desenvolvido pelo antropólogo anglo-americano Gregory Bateson (1904–1980) em seu livro Naven, de 1936. Inspirado nos princípios da cibernética, ele cunhou o termo para explicar a complexa dinâmica social manifesta no ritual que dá nome ao livro, e que é praticado pelos iatmul, povo habitante das terras baixas do médio Rio Sepik, em Papua Nova Guiné.

Evidentemente, este não é o espaço para tratarmos de tão exótica cerimônia, que comporta elementos de travestismo e a observância de brincadeiras jocosas entre parentes masculinos de gerações distintas, incluindo simulações parodísticas de relações sexuais entre “tios maternos” (wau) e “sobrinhos” (laua). O leitor interessado pode buscar a referência por conta própria.

A classe falante não compreende que ela própria é parte do problema e que, talvez ainda menos que os políticos, tampouco representa os valores e a visão de mundo do brasileiro médio

Fiquemos por ora apenas com a noção de cismogênese, cujo sentido pode ser antecipado já na própria etimologia. O termo resulta da junção das palavras em grego para “ruptura” (skhisma) e “origem” (genesis). Em tradução literal, portanto, teríamos algo como “origem da ruptura”.

Na definição do autor, trata-se de um “processo de diferenciação nas normas do comportamento”, aplicável tanto a indivíduos quanto a coletividades. O processo é cumulativo, consistindo na interação entre partes que reagem mutuamente ao comportamento umas das outras. Assim, se um indivíduo A se comporta de tal maneira a induzir uma reação em B, essa reação afetará o comportamento posterior de A, que induzirá nova reação de B, e assim sucessivamente, numa gradação que, em estado avançado, pode gerar uma profunda ruptura quanto à forma original da interação.

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Bateson distingue duas modalidades de cismogênese: a simétrica e a complementar. A primeira se dá entre partes equivalentes que reproduzem um mesmo tipo de comportamento, caracterizando-se, portanto, pela presença da rivalidade. O exemplo mais claro é o da corrida armamentista durante a Guerra Fria. A cada exibição de poder bélico por parte dos Estados Unidos, a União Soviética respondia da mesma forma, o que incitava uma nova exibição americana, seguida por uma resposta soviética ainda mais ostensiva, num escalonamento interativo que, por pouco, como sabemos, não resultou numa hecatombe nuclear.

A cismogênese complementar, por sua vez, ocorre entre partes assimétricas numa determinada interação, de modo a que o comportamento X de uma delas induza ao comportamento Y da outra, que levará a uma intensificação de X, logo a uma intensificação correspondente de Y, e daí em diante. Esse padrão relacional poderia ser ilustrado com a imagem de um casal em que um dos cônjuges exibisse um comportamento assertivo, enquanto que o outro, um comportamento submisso. Nessa interação, a submissão deste alimentará a assertividade daquele, que resultará em mais submissão e, consequentemente, em mais assertividade, até o ponto em que, no limite, a situação fique insustentável, culminando no fim do casamento.

Importa ter em mente que, seja pela via da simetria, seja pela da complementaridade, a cismogênese tende ao colapso da interação. Assim, um padrão de relacionamento que começa de maneira sutil, e aparentemente sem consequências, pode com o tempo levar a uma crise de grande dramaticidade.

É o que se passa hoje na relação (ou, dir-se-ia, ausência de relação) entre o povo brasileiro e a sua classe falante, que obedece a um padrão de cismogênese complementar no qual o aumento do progressismo de uma induz ao aumento do conservadorismo do outro, que leva a mais progressismo por parte daquela, seguido de mais conservadorismo por parte deste, e por aí vai.

O cidadão comum está por sua própria conta e risco na esfera da cultura

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Não sabemos onde isso tudo vai terminar, mas é possível supor que não em coisa boa. Muito tem se falado acerca de uma tal “crise de representatividade” na democracia brasileira. Os que costumam usar o termo integram precisamente aquela classe falante de que vamos tratando, e, por isso mesmo, reduzem a sua aplicação à esfera do Estado e da política partidária. Não compreendem – e parece haver algo de estrutural nessa incompreensão – que eles próprios são parte do problema, e que, talvez ainda menos que os políticos, tampouco representam os valores e a visão de mundo do brasileiro médio.

Como em tantos outros domínios, o cidadão comum está por sua própria conta e risco na esfera da cultura, só lhe restando apelar ao repertório tradicional de símbolos que, de algum modo, ainda restaram de eras passadas, nas quais a distância entre os consumidores e os formadores de opinião (e de valores, e de gostos, e de hábitos) não se fizera ainda tão abissal.

Pondo tudo na balança, resta que, apesar dos riscos, talvez haja algo de alvissareiro naquela perspectiva de ruptura. Afinal, o povo brasileiro não terá mesmo muito a lamentar quanto ao eventual colapso de uma relação com uma elite cultural que, do alto das cátedras, das redações, dos estúdios e dos palcos, não cansa de manifestar por ele o mais profundo e inabalável desprezo.