Lula condecorou Alexandre de Moraes com a Ordem do Rio Branco no mesmo dia do velório de Cleriston Pereira da Cunha.| Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República
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No dia do velório do preso político Cleriston Pereira da Silva, o Clezão, os agentes da ditadura que o vitimou se reuniram para uma cerimônia de autocongratulação e interbajulação, num evento bem típico de regimes totalitários, caracterizados pela farta distribuição de prêmios e comendas aos que nenhum mérito possuem em si mesmos, exceto o de sua utilidade à manutenção do poder. Sim, no exato instante em que a viúva inconsolável mal tinha forças para descrever a jornalistas o seu inútil “grito por socorro”, o mandatário do regime condecorava Alexandre de Moraes – sob cuja negligência Cleriston veio a falecer – com a medalha da Ordem do Rio Branco, concedida a quem o governo considere possuir “virtudes cívicas” e ter prestado “serviços meritórios”.

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Não se sabe exatamente a quais “virtudes cívicas” de Moraes referia-se o presidente egresso do sistema, nem tampouco o que seriam “serviços meritórios” no juízo de quem, há alguns meses, manifestou o desejo de “extirpar” os “animais selvagens” que lhe fazem crítica e oposição. De todo modo, a coincidência temporal entre o velório de uma vítima do Estado e a premiação do principal agente estatal responsável pelo desfecho trágico revela, no mínimo, uma insensibilidade perturbadora, e, no máximo, aquilo que o psiquiatra polonês Andrew Lobaczewski definiu classicamente como psicopatia no poder.

A coincidência temporal entre o velório de uma vítima do Estado e a premiação do principal agente estatal responsável pelo desfecho trágico revela, no mínimo, uma insensibilidade perturbadora

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O que podemos falar sobre a postura do condecorado em relação à situação do preso político que veio a falecer nas masmorras do regime, deixando mulher e duas filhas? É preciso lembrar que, desde janeiro, a defesa de Cleriston apresentara vários laudos médicos comprovando o delicado estado de saúde de seu cliente, o qual, caso não recebesse os cuidados adequados fora da prisão, corria risco de morte súbita. Os laudos e relatórios médicos estão aí para quem quiser ver.

Em maio, a defesa voltou a demonstrar o quadro clínico de Cleriston e, em virtude da urgência, demandar a sua prisão domiciliar. No fim de agosto, reconhecendo as comorbidades do preso, a Procuradoria-Geral da República (PGR) emitiu um parecer recomendando a sua liberdade provisória e a adoção de medidas cautelares. Embora tenha tido mais de 80 dias para analisar o documento, Alexandre de Moraes não o fez. Até o dia fatídico da morte de Cleriston, o condecorado por “serviços meritórios” e “virtudes cívicas” continuava sentado em cima do caso. E, para entendermos as razões da inação de Moraes – que não parecem ter sido o efeito passivo de um mero descaso –, penso ser útil recapitular algumas de suas declarações políticas mais ostensivas.

Em maio de 2022, por exemplo, no Congresso Brasileiro de Magistrados, Moraes fez um ataque frontal ao que chamou de “movimentos populistas” e “de extrema direita”. Na ocasião, declarou celebremente que “as plataformas e a internet deram voz aos imbecis” (referindo-se, obviamente, aos supostos integrantes dessa “extrema direita” e, em particular, aos apoiadores de Jair Bolsonaro).

Em agosto do mesmo ano, em participação na Conferência Sobre Democracia Defensiva, Moraes escancarou a sua atuação política ao afirmar a necessidade de “combater o avanço do populismo de extrema direita”, um movimento que, segundo o magistrado militante, se caracteriza pelo uso das redes sociais para compartilhamento de críticas ao sistema eleitoral e às instituições democráticas. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Moraes repetiria essa retórica política radical em outubro deste ano, no 2º Congresso Internacional de Direito Financeiro e Cidadania, quando chegou a dizer, em defesa do assim chamado “jornalismo profissional” domesticado contra as insubmissas redes sociais, que o Brasil viraria um país de primeiro mundo caso os celulares das pessoas fossem retirados durante um ano.

Em dezembro de 2022, no seminário STF em Ação, Moraes afirmou que “ainda tem muita gente para prender e muita multa para aplicar”. A fala – dita num tom de assumido regozijo e frenesi – vinha em seguida à explanação do colega Dias Toffoli sobre os processos na Justiça americana envolvendo acusados pela dita “invasão do Capitólio”. Menos de um mês depois, no fatídico 8 de janeiro de 2023, a “invasão do Capitólio” à brasileira, o magistrado teria a oportunidade de realizar a sua fantasia carcerária, que teve Cleriston como uma das vítimas.

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Dois dias depois do 8 de janeiro, discursando na cerimônia de posse de nova diretoria da Polícia Federal, Moraes referiu-se indistintamente aos manifestantes do 8 de janeiro como “terroristas”. Sob aplausos, falou em combater implacavelmente as “pessoas antidemocráticas”, com as quais “não se pode conversar de forma civilizada”, porque elas “não são civilizadas”. Em seguida, ironizou as reclamações dos presos políticos – “que até domingo faziam baderna” – sobre os maus tratos e as más condições do cárcere. “Agora reclamam porque estão presos, querendo que a prisão seja uma colônia de férias.”

As falas de Moraes nunca foram as de um juiz, mas as de um extremista político, prenhe de húbris, ódio e desejo de vingança contra críticos e adversários

Poderíamos citar outras frases de igual teor, reiteradamente repetidas por um magistrado que, assim como vários de seus colegas, não se vexa de sua atuação política e do uso que faz de seu cargo para a perseguição contra os que vê como seus inimigos. Em todos esses exemplos, jamais sequer vislumbramos nesse indivíduo as qualidades requeridas (por lei, inclusive) de um juiz, notadamente a temperança, a isonomia, o equilíbrio, o apreço pelo devido processo legal, o respeito pela dignidade humana dos que estão sob o seu juízo. Suas falas nunca foram as de um juiz, mas as de um extremista político, prenhe de húbris, ódio e desejo de vingança contra críticos e adversários.

A verdade é que Moraes e a maioria de seus pares nutrem raiva, nojo e desprezo olímpico por tipos humanos como Cleriston, que eles consideram “incivilizados”, “bárbaros”, “imbecis” e – ainda que jamais tenham cometido violência alguma – “terroristas”. Não, Cleriston não queria uma colônia de férias. Queria apenas que sua condição clínica fosse respeitada. Ele e sua família nunca quiseram privilégios, e sempre trabalharam duro, mantendo um pequeno comércio familiar. Cleriston, o Clezão, só queria voltar para casa, porque, como sempre afirmou, e como fica claro em seu processo, era inocente. Inocente foi preso, inocente foi torturado, inocente foi ignorado, e, finalmente, inocente foi morto pelo Estado brasileiro. Que Deus o receba, conforte a família e, na Eternidade, imponha a justiça que esse seu filho não obteve neste Vale de Lágrimas.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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