
“Toda escrita é uma campanha contra os clichês” (Martin Amis)
Peço licença aos leitores para iniciar este artigo parafraseando o famoso diálogo do filme O Sexto Sentido, em que o menino Cole Sear (interpretado por Haley Joel Osment) descreve ao psicólogo infantil Malcom Crowe (Bruce Willis) a sua aflitiva capacidade de ver gente morta. No que concerne à minha aflição particular, seria o caso de trocar “gente morta” por clichês. Sim, eu vejo clichês. Com que frequência? O tempo todo.
No debate público brasileiro contemporâneo, todavia, ver clichês não requer nenhuma aptidão para o sobrenatural. Abra o jornal, e um clichezinho falastrão lhe cobrirá de perdigotos. Entre na internet, e um clichezão corpulento lhe pisará o pé. Ponha no telejornal local, e contemple o espetáculo da multidão de clichês na hora do rush. Ao contrário dos fantasmas, os clichês brasileiros são corados, espaçosos e prenhes de materialidade. Assim como os fantasmas, eles se divertem. Se, nos tempos do descobrimento, como escreveu Gilberto Freyre, o europeu saltava em terra “escorregando em índia nua”, ele hoje escorrega em clichê nu. Até mesmo os literatos hão de desembarcar com cuidado, sob pena de atolar o pé em frase feita. Não existe pecado estilístico do lado de baixo do Equador.
O mais recente clichê a me assombrar apareceu no Twitter, numa discussão comezinha sobre a seguinte postagem no perfil da revista Isto É: “A cantora Pabllo Vittar é a Brasileira do Ano na Música”. Como eu apontasse o surrealismo editorial de renegar a concordância de gênero (“a cantora Pabllo Vittar…”) em favor do politicamente correto – um vício pós-modernista comum, fundado sobre a crença no poder da palavra de transfigurar a realidade –, um internauta mui lacrador e deveras prafrentex confrontou-me com esta pérola: “A língua não é fixa. Ela se adapta, evolui”.
Ora, porra! – proferi mentalmente, diante de tão portentoso acacianismo, o já famoso bordão de Olavo de Carvalho. No que tem de verdadeira, a frase é banal. Qualquer bípede dotado de telencéfalo desenvolvido e polegar opositor (inclusive a ex-presidente Dilma Rousseff) sabe que a língua tem uma dimensão histórica, transitória e sujeita a transformações ao longo do tempo. Portanto, sim: realmente, a língua não é fixa. Mas quem diabos disse que era, ó raios? Ninguém em sã consciência (nem mesmo a ex-presidente Dilma Rousseff) imagina que o português falado hoje, por exemplo, seja idêntico ao que se falava no século 17.
Mas, decerto tendo ouvido aquela obviedade formulada em jargão pseudocientífico por algum medalhão acadêmico, o meu Conselheiro Acácio virtual imaginou estar anunciando uma novidade espantosa, acessível apenas a iniciados nalguma ciência esotérica. Exibindo aquele típico provincianismo universitário brasileiro, o sujeito bateu-se em luta quixotesca contra um senso comum que só existe em sua cabeça, apressando-se em desvelar mistérios há muito conhecidos por toda a gente. Nisso, comportou-se tal qual o soldado japonês Hiroo Onoda, quem, tendo descoberto que a Segunda Guerra terminara havia quase 30 anos, durante os quais ele vivera alheio à passagem do tempo numa montanha nas Filipinas, ficou muito espantado e ansioso por espalhar a notícia. Não deve ser coincidência, aliás, o fato de que Onoda tenha vivido uma temporada no Brasil.
Sim, por um lado, a afirmação do meu interlocutor é de fato banal, de uma obviedade quase pornográfica. Por outro lado, contudo, há nela um considerável componente de engodo. Para começar, na sugestão de que a língua evolui necessariamente com o passar do tempo. Temos aí uma falácia progressista característica, que consiste em confundir transformação com aprimoramento, como se o fato empírico de que as coisas mudam implicasse que mudam sempre, e de modo contínuo, para melhor. Mas há engodo, sobretudo, na incapacidade de levar em consideração a natureza dual da língua, que se compõe, de fato, de uma parte transitória, diacrônica e suscetível à ação do tempo, mas também de uma parte permanente, sincrônica e estável. Se não tivesse nada de fixo a orientar a variação ao nível da fala, uma língua perderia seu senso de continuidade temporal, bem como sua unidade cultural, tornando-se menos e menos comunicativa com o passar dos anos. Numa mesma comunidade linguística, cada grupo social ou mesmo cada indivíduo pode ter suas particularidades vocabulares, mas não a sua própria gramática.
Ao evocar aquela dupla natureza da língua, trazemos à baila a célebre dicotomia langue vs. parole (“língua” vs. “fala”), cunhada por Ferdinand de Saussure, um dos pais fundadores da linguística estruturalista. Enquanto a langue, fenômeno coletivo, é um sistema homogêneo de signos cuja coerência interna é possível abstrair sob a forma de uma gramática, a parole apresenta-se como assistemática, heterogênea e mutável, consistindo no ato individual de falar. A langue, em suma, é a linguagem enquanto sistema. A parole, a linguagem enquanto uso. A primeira estabelece um eixo vertical das relações intrínsecas entre os elementos do sistema. A segunda, um eixo horizontal relativo à temporalidade da fala.
Fazendo uma analogia com a música, pode-se dizer que a parole corresponde à série melódica, enquanto a langue equivale à estrutura harmônica. Uma melodia não se constrói de maneira aleatória e desordenada, mas sobre as fundações de uma harmonia – sistema de relações entre os intervalos sonoros, que configuram a tonalidade da música. Se as notas da melodia se sucedem, incontinenti, através dos compassos, o tom da música (a não ser que estejamos falando de música atonal) não pode mudar com a mesma frequência, sob pena de destruir a estrutura harmônica que orienta a variação melódica. A harmonia é a “gramática” que sustenta a liberdade criativa dos “falantes” (no caso, melodistas e improvisadores).
Assim como a harmonia e a melodia, a langue e a parole são complementares e interdependentes. Uma é forma; a outra, substância. Se a parole corresponde ao aspecto inovador da linguagem, a langue manifesta a sua natureza conservadora. Nas palavras do próprio Saussure: “A língua é necessária para que a fala seja inteligível e produza todos os seus efeitos; mas esta é necessária para que a língua se estabeleça”.
Ocorre que clichês do tipo “a língua não é fixa” costumam ignorar o aspecto estrutural e mais permanente da linguagem, como se esta fosse uma moeda de uma só face – a face da parole. Não por acaso, esses clichês tendem a ressurgir de tempos em tempos na boca de linguistas metidos a justiceiros sociais, bem como na de seus papagueadores na imprensa, que atacam a gramática normativa por seu pretenso elitismo, e caracterizam o ensino da norma culta como “preconceito linguístico”. Violando uma regra básica do método científico, e encantados com a estonteante heterogeneidade da parole, esses luminares pretendem extrair uma nova norma revolucionária a partir do simples fato da variação linguística. Para isso, é claro, não hesitam em mandar às favas as concordâncias número-pessoais (“Nós pega o peixe”) e de gênero (“A cantora Pabllo Vittar”). São adeptos da fala sem língua, da melodia sem harmonia. Não é de se estranhar, portanto, que exibam um senso estético tão peculiar, elevando à condição de fenômeno musical cantores que, mudando involuntariamente de tom a cada compasso, transformam sons em ruídos, notas em gritos, melodia em agonia.
Após denúncia ao STF, aliados de Bolsonaro ampliam mobilização por anistia no Congresso
Bolsonaro tinha esperança de fraude nas urnas, diz Cid na delação; veja vídeo na íntegra
Bolsonaro aposta em Trump para uma “virada de jogo” no Brasil; acompanhe o Sem Rodeios
Motor dá sinal de fervura, mas o presidente quer acelerar