“Um outro conceito aparece após a transformação global. É o conceito de humanidade enquanto um todo” (Environmental Change and International Law: New Challenges and Dimensions, Universidade das Nações Unidas, 1993)
No livro Perestroika (1987), Mikhail Gorbachev admite ter se inspirado na NEP (Nova Política Econômica), lançada por Lenin em 1921, quando a Rússia estava na iminência de um colapso econômico e social. Nas palavras do último líder da URSS: “Essa tarefa [de reforma econômica] foi realizada em junho de 1987, quando da sessão plenária do Comitê Central do PCUS, com a adoção dos ‘Fundamentos de uma reestruturação radical da gestão econômica’. Trata-se, talvez, do programa mais importante e mais decisivo em nosso país, em matéria de reforme econômica, desde que Lenin lançou sua Nova Política Econômica em 1921” (grifos meus).
Como mostra Anatoliy Golitsyn em New Lies for Old (1984), ao lançar a NEP Lenin tinha um objetivo de longo prazo. Como em tudo o que se passava na URSS, o próprio nome da nova política já era uma peça de propaganda enganosa, pois que o seu escopo real ia muito além da economia, definindo também os principais objetivos políticos e ideológicos do regime, tanto interna quanto externamente, bem como a estratégia do movimento comunista internacional.
Para o mundo, a NEP significava basicamente isto: a possibilidade de empresários estrangeiros abrirem negócios na URSS; a reorganização da indústria soviética em trustes, e a permissão da busca por lucro; a autorização para que pequenas empresas e propriedades pudessem ser adquiridas por indivíduos ou cooperativas; a permissão para que o dinheiro voltasse a circular, bem como para a existência de comércio privado; a flexibilização das restrições a viagens internacionais; o retorno dos exilados sob condição de anistia, e a permissão para que alguns cidadãos soviéticos pudessem emigrar; o desejo de uma coexistência pacífica com o Ocidente por parte da diplomacia soviética.
Para o Kremlin, a NEP devia não apenas promover a recuperação econômica do país, mas também impedir novas revoltas internas, expandir o comércio internacional, atrair capital e expertise estrangeiros, gerar reconhecimento diplomático por parte de países não comunistas, evitar conflitos com potências ocidentais, ajudar a explorar as contradições dentro e entre países capitalistas, neutralizar o movimento dissidente, e contribuir para promover a revolução mundial via movimento comunista.
Para Lenin, todavia, essa política ideológica agressiva só funcionaria se acompanhada pelo uso sistemático da desinformação (dezinformatsiya). E desinformação de uma modalidade específica, que Golitsyn define como “fraqueza e evolução” ou “moderação ideológica calculada”. Grosso modo, a técnica consiste em aplacar os temores dos adversários do comunismo internacional por meio da ocultação da própria força e do incentivo à confusão nas políticas dos adversários via disfarce das próprias políticas.
O objetivo era que as nações democráticas do Ocidente, tomando por genuínas a fragilidade e a evolução do mundo comunista, reagissem inadequadamente às ofensivas estratégicas comunistas e que, nessa confusão, fossem levadas a cometer erros de cálculo em suas relações com os comunistas. O grande papel da desinformação ao estilo “fraqueza e evolução” era mascarar os reais objetivos, estratégias e táticas da política externa comunista.
Como exemplo paradigmático dessa técnica de desinformação, a NEP projetou ao mundo uma aparente moderação da ideologia comunista. A tradicional retórica de violência revolucionária era desaconselhada, e a restauração do capitalismo na URSS, superdimensionada via propaganda. Nas relações diplomáticas e comerciais com o Ocidente, adotou-se uma linguagem sóbria e polida, com ênfase no desarmamento na coexistência pacífica. Tudo, é claro, para induzir as autoridades e os tomadores de decisão do mundo livre a acreditar que o regime comunista perdia o seu vigor revolucionário, tendo como destino inevitável a desintegração ou a absorção pelo sistema capitalista. Em suma, a NEP deveria ser vista como a primeira concessão relevante no processo de restaurar o capitalismo na Rússia.
Foi essa mesma técnica de desinformação, ainda mais aprimorada e sofisticada, que permitiu a Gorbachev e camaradas venderem internacionalmente a perestroika. E, como reconheceu explicitamente o filho de Stavropol, o sucesso do empreendimento dependia do mesmo tipo de flexibilidade dogmática e pragmatismo tático demonstrado por Lenin nos anos 1920. “É preciso proceder com uma transformação completa da reflexão social e política” – escreveu o velho Gorba. “E é aqui que precisamos nos voltar a Lenin. Ele possuía o raro talento de sentir, no momento certo, a necessidade de mudanças profundas, de um reexame dos valores, de uma revisão das diretivas teóricas e dos slogans políticos… É esse tipo de modelo dialético em matéria de pensamento político no qual nos inspiramos para pôr em andamento a perestroika”.
Mas, se digo que, em relação à NEP, o uso da desinformação foi aprimorado e sofisticado na perestroika, é porque, ao contrário de Lenin, os comunistas dos anos 1980 tinham à sua disposição o pensamento de um dos maiores mestres na arte do direcionamento da opinião pública: Antonio Gramsci. Com efeito, para a projeção internacional da nova “imagem do inimigo” pretendida pelos últimos dirigentes soviéticos, calcada no padrão desinformativo de “moderação ideológica calculada”, o conceito gramsciano de hegemonia cultural vinha bem a calhar.
Como mostro em A Corrupção da Inteligência, a importância de Gramsci reside no fato de haver promovido uma guinada fundamental tanto na teoria marxista quanto no método de ação política da esquerda mundial. O marxista italiano percebeu que, dada a complexidade do desenvolvimento capitalista no mundo ocidental à sua época, o modelo marxista-leninista ortodoxo de tomada violenta do poder mediante um golpe de Estado, seguida do estabelecimento de uma “ditadura do proletariado” conduzida com mão de ferro por uma vanguarda revolucionária, tornara-se inadequado.
As condições do Ocidente – com o capitalismo bem mais desenvolvido, assim como suas superestruturas políticas – eram muito diversas das da Rússia (Oriente) em 1917, e exigiam do partido revolucionário uma tática mais sofisticada e de longo prazo que aquela adotada pelos bolcheviques. Foi então que, recorrendo a uma metáfora de estratégia militar, Gramsci afirmou a necessidade de substituir uma “guerra de movimento” por uma “guerra de posição”. E elaborou uma filosofia da história segundo a qual, ao longo do tempo, a luta revolucionária oscilava entre fases “ativas” e “passivas”. A revolução bolchevique fora um exemplo de revolução ativa, mas o novo contexto histórico-cultural impunha a necessidade de uma “revolução passiva”, conduzida por meio de pequenas rupturas, quase imperceptíveis, que se acumulariam de maneira gradual, num processo paciente de penetração na sociedade civil, ao qual Gramsci chamou de “hegemonia”.
No vocabulário gramsciano, a hegemonia se distingue do controle. Enquanto o segundo designa o domínio do aparelho de Estado, a primeira diz respeito ao direcionamento intelectual e moral da sociedade civil. Como, nas complexas sociedades capitalistas, o exercício contínuo da coerção (e, pois, da violência) é difícil e altamente custoso, faz-se necessário que a classe ou grupo político pretendente ao poder consiga difundir os seus valores entre outras classes e grupos, de modo de que estes aceitem viver sob domínio. Ou, antes, que estejam sob domínio sem nem mesmo perceber.
Há, pois, uma transformação qualitativa quando se passa do controle à hegemonia, da guerra de movimento à guerra de posição. Essa transformação corresponde a um predomínio do consenso sobre a coerção, embora ambos os meios se articulem no processo de ascensão comunista ao poder. A hegemonia, o consenso cultural, deve anteceder a conquista do Estado e, de preferência, sobreviver a ela. A proposta é que, quando os partidos comunistas conseguissem assumir o controle da máquina estatal, já houvesse toda uma cultura pronta para recebê-los consensualmente.
Na explicação do próprio Gramsci: “O exercício ‘normal’ da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação de força e consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública” (grifos meus)
O pensamento estratégico de Gramsci (também discípulo confesso do pragmatismo leninista) inspirou fortemente os ideólogos da perestroika. Como admitiu alhures Georgi Arbatov, prestigiado acadêmico soviético que esteve diretamente envolvido no processo: “Eu só respeito umas poucas obras e ideias marxistas, dentre as quais, além daquelas dos ‘pais fundadores’, incluo pessoas como Antonio Gramsci, Georg Lukács, Ernst Bloch e Herbert Marcuse”.
É claro que, originalmente, Gramsci formulara a necessidade do consenso ao nível nacional, e o que Gorbachev e camaradas fizeram foi transpor essa necessidade para o âmbito mundial, com a pretensão de criar consensos globais que justificassem a concentração de poder em suas mãos. Mas até nessa ampliação de alcance da hegemonia, alguns apparatchik viram a influência de Gramsci. Como justificou Alexander Prolov, colaborador próximo de Gorbachev: “Não podemos esquecer que são os verdadeiros marxistas como Gramsci que primeiro colocaram os problemas da humanidade em termos globais” (grifos meus).
Voilá! Com a exploração do conceito de “problemas globais” ou “ameaças globais” – fossem eles reais ou fabricados –, os soviéticos tinham a oportunidade de influenciar as organizações internacionais, integrar e disfarçar o bom e velho internacionalismo comunista no projeto globalista de erosão das soberanias nacionais e superação das disputas ideológicas. Como veremos no artigo da semana que vem, o último da série, o que agora estava em pauta já não eram os interesses da classe operária, mas a própria sobrevivência da espécie humana. E quem, em sã consciência, poderia ser contra isso?