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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Eutanásia

A sacralização cristã da vida humana e os efeitos inevitáveis de sua recusa

Hôtel-Dieu de Paris, em gravura datada de cerca de 1500: crença cristã na sacralidade da vida humana impulsionou ações de caridade e cuidado com os doentes. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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“Todos os que me odeiam amam a morte.” (Provérbios, 8,36)

Era o alvorecer do século 4.º, e as coisas não iam bem para o imperador Constantino, cujo exército padecia de fome e doença. Alistado à força nas legiões aos 20 anos de idade, o tebano Pacômio testemunhava com perplexidade a atitude de alguns de seus companheiros, que contrariava os costumes e a moral da época. O jovem soldado via-os oferecer comida e assistência aos necessitados, inclusive inimigos, socorrendo-os de forma indiscriminada, fosse qual fosse sua procedência. Curioso por saber que gente era aquela, descobriu-os cristãos. Interessado em saber mais sobre a natureza de tão excêntrica religião, capaz de inspirar tamanha compaixão – sentimento estranho à filosofia moral pagã, mesmo entre aqueles, como os estoicos, inclinados à prática de alguma caridade –, Pacômio começou a instruir-se na fé e, mais cedo do que imaginava, já havia tomado o caminho da conversão.

Logo nos primeiros séculos da era cristã, Pacômio – ou São Pacômio, como é hoje conhecido – notou precocemente algo que a história só viria a confirmar: o cristianismo foi, sozinho, a força civilizacional responsável por universalizar e consagrar a instituição da caridade. Contrariando o famoso adágio, quando em Roma, os cristãos não fizeram como os romanos. Ou seja: não se conformaram aos padrões pagãos de moralidade. Como explica o célebre historiador William E. H. Lecky, insuspeito de simpatia pela Igreja Católica:

“Não se pode sustentar nem na prática, nem na teoria, nem nas instituições fundadas, nem no lugar que a ela foi atribuído na escala dos deveres, que a caridade ocupasse na Antiguidade um lugar comparável àquele que atingiu no cristianismo. Quase todo o socorro era prestado pelo Estado, muito mais por razões políticas do que por sentimentos de benevolência; e o costume de vender crianças, os inumeráveis enjeitados, a presteza com que os pobres se candidatavam a gladiadores e as frequentes vagas de fome mostram como era grande a extensão dos miseráveis que ficavam esquecidos.”

A concepção cristã segundo a qual toda vida humana é sagrada era totalmente inédita e estranha à cosmovisão clássica, que não valorizava o ser humano de modo intrínseco, universalista e incondicional

A peculiar atitude cristã para com os desafortunados, que tanto chamou a atenção de Pacômio e de vários de seus contemporâneos, decorre da premissa segundo a qual toda vida humana é sagrada. Eis aí uma concepção totalmente inédita e estranha à cosmovisão clássica, que não valorizava o ser humano de modo intrínseco, universalista e incondicional, chegando mesmo a ter por desprezíveis as vidas daqueles que, a exemplo dos estrangeiros e dos escravos, fossem natural e socialmente excluídos da categoria de “cidadãos”. No universo antigo, o indivíduo só era digno de valor caso fizesse parte da engrenagem política e na medida em que pudesse contribuir ao seu funcionamento, quase como se o fim de sua existência fosse engrandecer o Estado. Fora disso, tinham-no por descartável e substituível como qualquer utensílio danificado.

“O espirito com que se tratava a doença e o infortúnio não era o de compaixão” – escreve o historiador da medicina Fielding H. Garrison –, “e cabe ao cristianismo o crédito pela solicitude em atender o sofrimento humano em larga escala”. Esse foi um dos motivos do verdadeiro choque cultural provocado pelo contato dos primeiros cristãos com o sistema moral pagão, quando práticas como o infanticídio, o abandono de recém-nascidos, o aborto, o sacrifício humano e o combate de gladiadores, até então tidas por absolutamente triviais, começaram a ser frontalmente condenadas por aqueles novos súditos do Império, para os quais a vida humana era inerentemente sagrada.

Sobre o sanguinolento “esporte” das arenas, por exemplo, escreveu o historiador William Stearns Davis que “ele ilustra à perfeição o espírito inclemente e o desprezo pela vida humana subjacentes à pompa, ao esplendor e às pretensões culturais da grande era imperial”. Coube ao cristianismo a missão de condená-lo moralmente e, por obra de imperadores cristãos como Teodósio I e seu filho Honório, bani-lo definitivamente. Quanto a isso, vale citar Lecky mais uma vez: “Dificilmente haverá reforma tão importante na história moral da humanidade quanto a supressão das lutas gladiatoriais, um feito que se deve atribuir quase exclusivamente à Igreja Católica”.

Mas, para além dessas práticas culturais humanamente degradantes então usuais na Antiguidade, os cristãos dos primeiros séculos, sempre orientados pelo princípio da sacralidade da vida, repudiaram uma outra: o suicídio. Antes e durante o tempo de Cristo, o baixo valor atribuído à vida humana por parte dos romanos não tinha implicações apenas no trato com a vida de terceiros, mas também com a própria. Assim, parcialmente inspirados no estoicismo grego, muitos romanos consideravam o suicídio como uma espécie de honra e privilégio (ver, sobre isso, History of the Later Roman Empire, de J. B. Bury). Eis por que o suicídio era usual em todos os estratos sociais, e vários pensadores e políticos romanos, notadamente os de inclinação estoica, não apenas elogiavam o suicídio como chegaram mesmo a cometê-lo. É o caso, entre outros, de Catão, Petrônio e Sêneca, além de vários imperadores.

Tão glamourizado chegou a ser o suicídio no mundo romano que o adágio “Abra suas veias!” passou a ser usual entre os membros da nobreza, quase como uma marca de distinção. Diante desse quadro perturbador, que havia começado a acometer cristãos ansiosos pelo martírio, vários pais da Igreja, como Clemente de Alexandria, Lactâncio, Gregório de Nazianzo e Eusébio de Cesareia, começaram a pregar contra o suicídio. E, por volta do ano 305, a Igreja condenou-o formalmente no Sínodo de Elvira. Em A Cidade de Deus, Santo Agostinho resume a posição canônica com palavras duras, e retira da prática qualquer resquício de glória ou dignidade:

“Grandeza de espírito não é o termo correto para designar alguém que se mata por lhe ter faltado coragem para enfrentar o sofrimento ou as injustiças dos outros. Na verdade, revela-se fraqueza em uma mente que não pode suportar a opressão física ou a opinião estúpida da plebe. Nós atribuímos muito justamente grandeza de espírito a quem tem a fortaleza de enfrentar uma vida de miséria em vez de fugir dela, e de desprezar os juízos dos homens, antepondo-lhes a pura luz de uma boa consciência”.

Entre as práticas culturais humanamente degradantes então usuais na Antiguidade, os cristãos dos primeiros séculos, sempre orientados pelo princípio da sacralidade da vida, repudiaram também o suicídio

O trecho ajuda a revelar as premissas filosóficas fortes, porém quase sempre ocultas, dos que, hoje, desprezam o princípio cristão da sacralidade da vida humana e defendem o suicídio assistido (de que tratou meu último artigo) como formas de aliviar o sofrimento. A primeira premissa é a de que o sofrimento é algo como que antinatural, que destituiria a vida de todo sentido. O corolário é que a vida deve ser concebida como pura ausência de sofrimento, e que seu sentido último consiste em não sofrer. A segunda premissa é a de que, sendo a vida não mais que uma espécie de acidente natural, que se encerra absolutamente com a extinção física da matéria, a morte impõe ao sofrimento (igualmente concebido de modo materialista) um fim definitivo. Por óbvio, ambas as premissas integram uma cosmovisão imanentista radicalmente avessa à escatologia cristã, que concebe uma alma imortal e um sentido (espiritual, antropológico e escatológico) para o sofrimento terreno.

Cabe-nos, então, retornar à pergunta da jornalista australiana Margaret Wente a respeito da expansão do MAiD, o programa estatal canadense de suicídio assistido, pergunta com a qual encerrei o artigo anterior. “Queremos mesmo ser tratados – e tratar os outros – como se os humanos fossem dispensáveis?” – pergunta Wente, imediatamente após confessar-se perturbada com presentes tentativas de banalização “dessa forma macabra de terapia médica”. Mas a resposta já havia sido dada pela própria autora no começo de seu artigo na Quillette.

Aplaudindo a causa e reprovando o efeito, Margaret Wente não vê contradição entre celebrar a radical secularização das mentalidades canadenses, e em especial a recusa da sacralidade da vida humana, e lamentar a sua consequência inevitável, a mercantilização da morte e a descartabilidade do ser humano

“Hoje, o Canadá é majoritariamente um país secular, avesso a ideais religiosos sobre a sacralidade de cada alma criada por Deus” – ali escrevera Wente, dizendo-se grata por essa circunstância cultural, e justificando o seu entusiasmo inicial com o programa instituído pelo governo de Justin Trudeau, que ela e a maioria dos canadenses viram como “uma vitória moral progressista sobre entraves médicos conservadores e retrógrados”. Sim, é justamente por ser um país secular, avesso ao princípio cristão da sacralidade da vida humana, que o Canadá pode agora banalizar e – a exemplo do beautiful people romano na Antiguidade – glamourizar o suicídio assistido. Aplaudindo a causa e reprovando o efeito, a jornalista não vê contradição entre celebrar a radical secularização das mentalidades canadenses, e em especial a recusa da sacralidade da vida humana, e lamentar a sua consequência inevitável, a mercantilização da morte e a descartabilidade do ser humano.

Imersa em secularismo ambiente tal qual um peixe no oceano, Wente não percebe que a sua perturbação com a evolução do MAiD é a mesma experimentada pelos primeiros cristãos com a naturalização do suicídio entre os pagãos. E, portanto, não percebe que somente o cristianismo, jamais o niilismo secularista, pode servir de antídoto civilizacional à onipresente cultura da morte, hoje manifesta em múltiplas facetas, e sempre revestida das mais piedosas intenções. E não, não é preciso ser devoto da fé católica para notá-lo. Basta reconhecer a importância civilizacional – notadamente na esfera da moral – do cristianismo, e dizer como a filósofa Simone Weil: “Eu não sou católica, mas considero os princípios cristãos como algo a que uma pessoa não pode renunciar sem se aviltar”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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