“Concordamos em não dizer nada sobre o assunto, e os chineses ficaram gratos por nossa discrição” (Hillary Clinton, Escolhas Difíceis, 2014)
Tenho dito e escrito (como, por exemplo, neste artigo) que entre o atual governo americano e o Partido Comunista Chinês (PCC) há uma promiscuidade raras vezes vista no universo das relações internacionais. Ocorre que essa relação perigosa não vem de agora. Para que os leitores tenham a exata dimensão de sua profundidade, vou lhes contar uma história, que, embora noticiada na imprensa, o foi apenas superficial e parcialmente. À época, seus detalhes mais escabrosos não vieram à luz, mas hoje podem ser conhecidos no livro Deceiving the Sky: Inside Communist China’s Drive for Global Supremacy, sobre o qual já comentei aqui nesta coluna.
Trata-se da história de Wang Lijun, alto oficial do PCC e, na época do ocorrido, vice-prefeito da megacidade de Xunquim, localizada no sudoeste da China. No dia 6 de fevereiro de 2012, Lijun informou a oficiais do partido em seu escritório estar indo para uma reunião de negócios no consulado britânico. Seu destino, contudo, era outro. Disfarçado de mulher – pois, àquela altura, era vigiado pela cúpula do partido, com a qual entrara em atrito –, ele conseguiu escapar do cerco ao seu apartamento, entrou em seu carro e rumou para a cidade de Chengdu. Depois de uma viagem de quase cinco horas, chegou ao endereço pretendido: o número 4 da Rua Lingshiguan, sede do consulado americano.
Quatro dias antes, Lijun havia sido destituído da chefia da Secretaria de Segurança Pública de Xunquim (cargo que acumulava com o de vice-prefeito), e posto sob investigação, um sinal claro de que sua batata estava assando. Embora continuasse sendo vice-prefeito, perdera poder e prestígio, ficando sem motorista e guarda-costas. Era hora de fugir. Tendo acesso a documentos ultrassecretos e informações políticas privilegiadas sobre a cúpula comunista em Pequim, Lijun estava disposto a se valer desse tesouro de inteligência para salvar a própria pele.
Graças à subserviência dos democratas, perdeu-se um dos dissidentes chineses potencialmente mais valiosos, munido de um conhecimento sem precedentes das entranhas do Partido Comunista, de sua corrupção e centros de poder
Uma vez dentro do consulado americano, sentiu-se aliviado. Recebido pelo cônsul, um funcionário do Departamento de Estado e um agente da CIA, contou temer por sua vida e informou dispor de informações sigilosas sobre corrupção e assassinato envolvendo a cúpula do PCC, em particular Bo Xilai, secretário regional do partido em Xunquim. Lijun prometeu revelar tudo o que sabia aos consulares americanos, e entregar-lhes a pilha de documentos em chinês que levara consigo, documentos que, segundo ele, eram explosivos. Em troca, solicitava asilo político.
A oferta era extraordinária, uma vez que Wang Lijun era o oficial chinês de mais alta patente a desertar para os EUA. E havia se arriscado muito para conquistar a condição de asilado. Sua declaração sobre o risco de vida, bem como sua oferta do valioso material de inteligência, foi comunicada ao Departamento de Estado em Washington. Os funcionários consulares pediram a Wang que aguardasse. Enquanto a resposta de Washington não vinha, foi-lhe permitido acomodar-se num cômodo do consulado para passar a noite.
Em Xunquim, a polícia política de Bo Xilai não tardou a rastrear o paradeiro do fugitivo. Xilai sabia que a deserção de Lijun representava um risco fatal à sua carreira política, daí não ter poupado esforços para encontrá-lo e silenciá-lo. Numa medida desesperada, o secretário regional despachou 70 veículos blindados mais algumas dezenas de carros de polícia para Chengdu, onde centenas de guardas armados cercaram o perímetro em torno do consulado americano. A demonstração de força era um claro recado para Washington. Numa violação das normas de imunidade diplomática, o veículo de um diplomata americano chegou a ser parado e revistado pela polícia de Xilai, cujo temor era de que o inimigo político tentasse furar o cordão escondido em algum carro que saía do consulado. Mas Lijun permanecia ali, entocado e supostamente seguro.
Qual, então, não terá sido sua surpresa ao saber que seu pedido de asilo foi negado pelo governo de Barack Obama? O presidente americano e o seu vice, Joe Biden, ficaram horrorizados ao descobrir que Lijun se refugiara no consulado americano apenas dias antes da visita de Xi Jinping (então vice-presidente e futuro sucessor de Hu Jintao) aos EUA. De acordo com fontes do jornalista Bill Gertz, o autor de Deceiving the Sky, Biden decidiu pessoalmente passar por cima dos funcionários dos departamentos de Estado e de Justiça e forçar a recusa do pedido de asilo.
A recusa violava o US Refugee Act de 1980, e ignorava convenções internacionais de direitos humanos sobre o tratamento devido a refugiados em risco. Três telegramas enviados pelo consulado ao Departamento de Estado ressaltavam a pergunta crucial reiteradamente feita a Wang Lijun, cuja resposta afirmativa constituía pré-requisito para a concessão de asilo: Você teme por sua vida? E, a cada vez que se lhe dirigiam a questão, Lijun respondia inequivocamente: Sim! O dissidente estava certo de que Bo Xilai tentaria eliminá-lo, sobretudo por conta de informações concernentes ao assassinato de Neil Heywood, empresário britânico encontrado morto num quarto de hotel em Xunquim, em novembro de 2011. Segundo Lijun, a esposa de Xilai, a senhora Gu Kailai, estava diretamente implicada no envenenamento da vítima.
Em Washington, Michael E. Posner, então secretário-assistente para Democracia, Direitos Humanos e Trabalhistas, e Kurt Campbell, secretário-assistente para o Extremo Oriente, reuniram-se por teleconferência com outros funcionários do Departamento de Justiça e do Conselho de Segurança Nacional, sendo todos favoráveis à concessão de asilo. No fim das contas, todavia, prevaleceu a palavra de Anthony Blinken, assessor de segurança nacional de Biden, que decretou a negação do pedido, sob a desculpa de que Lijun estava, ele próprio, envolvido numa rede de corrupção. Posner ainda argumentou que isso não importava e que, de acordo com as circunstâncias, a lei de 1980 devia ser aplicada. Mas seus apelos foram em vão.
Com o asilo negado, o dissidente viu-se obrigado a negociar sua rendição às autoridades de Pequim (antes que à milícia de Bo Xilai, que certamente o executaria). Adotando uma pusilânime política de apaziguamento com a China, e traindo sua própria tradição, os EUA deixaram Lijun à própria sorte, rumo a um destino certo de prisão ou até mesmo morte. O episódio foi, sem dúvida, um dos maiores fracassos da inteligência americana em toda a sua história. Perdeu-se um dos dissidentes potencialmente mais valiosos, munido de um conhecimento sem precedentes das entranhas do PCC, de sua corrupção e centros de poder. Como escreve Gertz: “Wang Lijun teria fornecido uma mina de ouro de inteligência às agências americanas de espionagem, que lutam há décadas para encontrar alguém como ele, com acesso aos segredos mais íntimos da obscura casta governante da República Popular da China”.
Não é absurdo especular que, tivesse o material oferecido por Lijun sido aproveitado, o projeto chinês de governo mundial não estaria tão avançado como hoje se encontra. Mas, pelo jeito, esse não era o plano de Biden, Obama, Clinton e companhia. E o que antes era “apenas” apaziguamento hoje se poderia perfeitamente chamar de sujeição.