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Todo mundo sabe que, quando uma novela ou uma série começa a perder audiência, seus produtores são tentados a apelar às mais baixas paixões dos espectadores, aumentando, por exemplo, a quantidade de cenas de sexo e violência. Quando o enredo deixa de convencer e atrair o público, apela-se também a mais mentiras e desdobramentos inverossímeis. Quando os atores já não acreditam no projeto e veem desfazer-se o vínculo com a personagem, suas atuações tornam-se mais grandiloquentes, histriônicas e canastronas. Em suma, quando os responsáveis por realizar uma obra de dramaturgia perdem a mão, acontece precisamente o que não pode acontecer: quebra-se o encanto e o público desperta, passando a prestar mais atenção nos mecanismos de bastidor e nos truques executados para a obra acontecer do que na própria trama.
Eis o que, precisamente, está acontecendo nesta peça de ficção intitulada democracia brasileira. A trama está cada vez mais ridícula e apelativa. Os atores, cada vez mais canastrões. E o roteiro convence cada vez menos gente. O leitor há de lembrar, por exemplo, de quando o desembargador aposentado Sebastião Coelho, atuando como advogado de um dos presos do 8 de janeiro, chamou os ministros do STF de “as pessoas mais odiadas do país”. Em resposta, o ministro relator Alexandre de Moraes, disse que apenas uma “minoria de extremistas” não gostava da corte. Mas uma pesquisa recente do instituto Atlas Intel mostra que Moraes está errado. Na verdade, a maioria dos brasileiros hoje desaprova o tribunal. 47,3% chegam a dizer que o país “vive sob uma ditadura do Judiciário”. Mas, mesmo entre os que não acreditam em ditadura, 16,7% acham que os juízes “cometem abusos e ultrapassam suas atribuições”. Somando-se as duas categorias, temos 64% dos entrevistados que, se não chegam a odiar, certamente reprovam o comportamento dos atuais ministros. Entre os que aprovam, a porcentagem é de apenas 20,9%. E são 15,2% os que não souberam ou não quiseram responder.
Compreende-se que, irritados com o belo espetáculo da vida real na Avenida Paulista, os dramaturgos da democracia inabalada percam mais e mais a mão, mostrando-se cada vez mais irritados, apelativos e canastrões
Mas, se antes eram só os brasileiros os incomodados com uma produção de tão baixa qualidade, que faz tão pouco caso da inteligência do espectador, agora o mundo inteiro parece começar a se dar conta do que acontece por trás das coxias e dos bastidores do nosso teatro (cada vez mais mambembe) de democracia. Há algum tempo, por exemplo, o mandatário brasileiro tem encarnado o personagem do líder mundial pacifista, alguém com o dom pretensamente miraculoso de encerrar todas as guerras no mundo convidando as partes para resolverem suas pendengas tomando uma cervejinha no boteco. Mas, durante uma das cenas que, segundo o seu fã-clube, decerto lhe garantiria o Nobel da Paz, deu-se a catástrofe. O cenário tombou e o figurino se desfez, deixando o ator em maus lençóis. Pois, no justo instante da fala mais importante, abriu-se lhe a calça pelos fundilhos, caíram-lhe os suspensórios, e borrou-se lhe a maquiagem. Diante do público atônito, o grande pacifista que faria a paz no Oriente Médio deu lugar ao antissemita vulgar, inimigo de Israel e aliado dos terroristas do Hamas. As vaias foram ensurdecedoras.
Por esses dias, quem também abusou da paciência do público nacional e internacional foi a Polícia Federal. Seguindo péssimas instruções de algum dos diretores da peça da democracia, a instituição outrora respeitada e admirada por prender corruptos resolveu deter e interrogar por quatro horas um jornalista estrangeiro, o português Sérgio Tavares, que desembarcara no aeroporto internacional de Guarulhos (SP) para cobrir o Ato pela Redemocratização ocorrido na Avenida Paulista no último dia 25. Diante da péssima repercussão internacional do caso – que não combinava com a trama da “democracia inabalada” com que os produtores têm buscado comover o público –, a Polícia Federal divulgou uma nota por meio de sua assessoria de imprensa, justificando a medida como um procedimento padrão de fiscalização do “visto de trabalho” do profissional de imprensa.
A nota não convenceu ninguém. Em seu perfil no X, por exemplo, o jurista André Marsiglia contestou o argumento da PF: “O jornalista português Sérgio Tavares não parece ter passado por protocolo padrão nenhum. A justificativa de que precisava de um visto de trabalho, como muitos mostraram, é irrazoável e, ainda que não fosse, não explica seu interrogatório de horas sobre publicações que fez sobre o Brasil”.
Com efeito, a justificativa não parava de pé, a começar pelo fato de que, segundo a lei brasileira (ao contrário do que afirmara a PF por meio de sua assessoria de imprensa), “cidadãos da União Europeia que viajem ao Brasil para exercer atividade jornalística estão isentos de visto para estadas de até 90 dias, desde que a atividade não seja remunerada por fonte brasileira”. Eis o que consta no próprio site do Ministério das Relações Exteriores. Uma vez que Tavares é cidadão da União Europeia, não é remunerado por fonte brasileira e certamente ficaria menos que 90 dias no país, não lhe era exigido apresentar visto algum.
Atrapalhando ainda mais a trama, o jornalista português detido ilegalmente publicou um vídeo em suas redes sociais anunciando que acionará a instituição policial brasileira no Tribunal Penal Internacional, e apresentando provas de que a PF mentiu ao justificar o procedimento inusitado. Sérgio Tavares afirma que, durante o seu interrogatório – do qual apresenta documento comprobatório, assinado pelo delegado que, constrangido por interpretar um papel ruim, o interrogou –, em nenhum momento lhe foi perguntado sobre o pretenso visto de trabalho. Em vez disso, perguntaram-lhe sobre opiniões políticas que ele havia manifestado sobre eventos da nossa vida política e sobre autoridades públicas brasileiras, incluindo Flávio Dino e Alexandre de Moraes. Mais uma vez, a situação desandara, e a encenação concebida para comover o público a ponto de o fazer crer estar diante de uma defesa heroica da democracia brasileira revelou o mundo real por trás da ficção: um jornalista estrangeiro detido e intimidado por conta de suas opiniões políticas, procedimento típico das ditaduras mais caricatas e totalitárias.
Para piorar a vida dos dramaturgos autores da ficção da democracia inabalada, o evento de domingo na Paulista tornou gritante o contraste entre essa democracia de papel machê e a democracia real, de carne e osso, com povo na rua. Ao contrário da produção chinfrim – na qual a pose de democratas não resiste aos esgares de ódio político mal disfarçados por um figurino puído e uma maquiagem borrada, agradando apenas o pequeno fã-clube presente nos convescotes palacianos –, a democracia real tem audiência. E, cansada de assistir a uma pantomima grotesca e repetitiva, essa audiência resolveu mostrar como se faz, reunindo-se às centenas de milhares para pedir os itens básicos de um regime democrático, totalmente ausentes na trama antes descrita: liberdade de expressão, separação de poderes, devido processo legal, isonomia, representatividade etc. Compreende-se que, irritados com esse belo espetáculo da vida real, os dramaturgos da democracia inabalada percam mais e mais a mão, mostrando-se cada vez mais irritados, apelativos e canastrões. Do jeito que as coisas andam, aliás, não custa muito para que os ciumentos mandem a polícia adentrar a plateia munida de cassetetes, a fim de punir uma audiência que ousou lhe roubar o palco e lhe ofuscar o brilho...
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos