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“They should not hear a word from me / Of selfishness or scorn, / If only I could find the door, / If only I were born” (G. K. Chesterton, By the Babe Unborn)
No magistral LTI: A Linguagem do Terceiro Reich (1947), o filólogo judeu Victor Klemperer (1881-1960), na condição simultânea de estudioso e vítima, registrou minuciosamente a corrupção da língua alemã promovida pelo regime nazista. Nas palavras do autor: “O nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de palavras, expressões ou frases, impostas pela repetição, milhares de vezes, e aceitas mecanicamente”.
Segundo Klemperer, as palavras podiam ser “como minúsculas doses de arsênico” que, engolidas de maneira despercebida, aparentavam ser inofensivas, até que, depois de um tempo, o efeito do veneno se fazia sentir. Donde a missão histórica que o cientista da linguagem impôs a si próprio: “Mostrar claramente o veneno da LTI [abreviação de Lingua Tertii Imperiie, do título original em latim] e advertir as pessoas contra ele parece-me mais do que uma mera mania de professor. Para um judeu ortodoxo, quando o preparo de um alimento escapa às normas preestabelecidas, tornando-o impuro, a purificação consiste em enterrá-lo. Deveríamos enterrar muitas palavras da linguagem nazista na vala comum por longo tempo. Algumas, talvez, para sempre”.
Uma das características da linguagem nazista que chamou a sua atenção foi o uso de eufemismos burocráticos para nomear os atos mais brutais e violentos – um traço comum, aliás, a todo regime totalitário, e notado por outros estudiosos do fenômeno. “Constam em meu levantamento os anúncios cheios desse eufemismo mentiroso que teve um papel tão importante na estrutura da LTI” – escreve Klemperer. “O destino dessas vítimas não era mais trágico do que o das lebres abatidas em uma caçada”.
A campanha em favor do aborto de uma menina com 23 semanas de gestação foi marcada por um festival de eufemismos e abstrações
Menciona-se o caso particular da correspondência enviada às casas dos judeus removidos aos campos de concentração, no portão das quais se afixavam bilhetes macabros do tipo: Aqui viveu o judeu fulano de tal. Klemperer observa: “Então o carteiro sabia que não precisava mais se preocupar em encontrar o novo endereço; o remetente recebia a correspondência de volta com o eufemismo: Adressat abgewandert [Destinatário partiu, emigrou]. De forma que esse significado particular e cruel de abgewandert consta da LTI, na seção dedicada aos judeus”.
Lembrei-me das análises de Klemperer ao observar as reações de jornalistas e militantes ditos “progressistas” (se ainda for possível distinguir uns dos outros) ao trágico caso da menina de 10 anos grávida em decorrência de um estupro cometido por seu tio. Como se pôde notar nas redes sociais e nos veículos da autoproclamada imprensa profissional, a campanha em favor do aborto do bebê (uma menina com 23 semanas de gestação) foi marcada por um festival de eufemismos e abstrações, em que abundaram fórmulas tais como “interrupção terapêutica da gravidez” e “direitos reprodutivos da mulher”. Excluídas outras soluções possíveis, algumas até menos arriscadas à integridade física e psíquica da menina (como, por exemplo, o parto via cesárea e, em caso de sobrevida, o encaminhamento do bebê para adoção), o aborto passou a ser tratado como panaceia, como um ato que pudesse anular todo o mal causado pela violência original, como um remédio – o único remédio – capaz de atenuar o trauma sofrido pela jovem vítima.
Encarnando o senso comum hegemônico na província dos estúdios e redações, um jornalista de extrema-esquerda, indignado com os manifestantes contrários ao aborto (a quem tratou como fanáticos religiosos), manifestou solidariedade “à vítima, aos médicos que suportaram a pressão e cumpriram seu dever e a todas e todos os que se mobilizaram contra o fanatismo e a estupidez”. Na condição de porta-estandarte dessa mesma visão de mundo, uma militante feminista, informada de que o aborto já estava em andamento, comemorou em frente ao hospital: “VITÓRIA” (sic).
Evidentemente, o referido caso é dramático demais para comportar respostas fáceis e imediatistas. Mas chamam a atenção esse abstracionismo e esse recurso ao eufemismo na retórica pró-aborto. E, sobretudo, o fato de que, em manifestações como as do jornalista referido acima, o bebê abortado – o “amontoado de células”, como dizem os abortistas – simplesmente desaparece de cena. Para falar como Klemperer, o seu destino é como o de uma lebre abatida em uma caçada. É como se, ao fim do procedimento, esse ser humano, essa pessoa, houvesse simplesmente abgewandert, “emigrado” – assim como os judeus removidos de casa, também vistos pelos nazistas como meros “amontoados de células”.
Eis, talvez, a maior perversidade no discurso abortista, papagueado por uma militância feminista demasiado jovem, sem experiência de vida, e desde cedo radicalizada por ideólogos: a tendência a se alienar da realidade sobre a qual se opina, e a se expressar numa linguagem artificial e padronizada. Manifestando-se o tempo todo, e mecanicamente, sobre o aborto, essa militância jamais se dedica a olhar para o que é (quid est, como na pergunta elementar da filosofia) um aborto.
E o que é – ou, infelizmente, o que foi – o aborto nesse episódio particular de que vamos tratando? Para responder a essa pergunta, é preciso, antes, olhar – olhar! – para o que é um bebê com 23 semanas de gestação (a idade gestacional da criança abortada num hospital de Recife no último domingo). Tenha-se em mãos uma ultrassonografia nessa fase. Consulte-se um simples guia para gestantes. O que se encontra aí, afinal?
A morte do bebê – uma menina, tão vítima da situação quanto sua mãe – deu-se por envenenamento salino, processo que pode ser lento e extremamente doloroso para a vítima, provocando queimaduras na pele e nos pulmões
A 23ª semana de gestação é um marco no desenvolvimento dos sentidos e das emoções do bebê, que já tem o sistema límbico bem evoluído. Seus órgãos do ouvido interno amadureceram o bastante para poder enviar sinais ao cérebro, e a pequena criatura torna-se muito sensível aos sons produzidos pela mãe, particularmente o da sua voz. Trata-se de um momento crucial no desenvolvimento daquilo que, celebremente, o psicanalista John Bowlby (1907-1990) chamou de “apego”. Os movimentos do bebê tornam-se muito enérgicos, e a mãe sente com nitidez seus socos e chutes dentro da barriga. Aí, nesse seu universo protegido, com a coordenação muscular bem desenvolvida, o bebê se estica, rodopia, boceja, se espreguiça, soluça, tira sestas, acorda e recomeça tudo de novo. Em suma: faz praticamente, dentro do útero, aquilo que, fora, fazem todas as pessoas.
Nessa fase, a criança está praticamente formada, tendo já a aparência de um recém-nascido, apenas menor e mais magro, com aproximadamente 29 centímetros de altura (do cocuruto até o bumbum) e 500 gramas de peso. Há, inclusive, vários registros de prematuros nascidos com 23 semanas, e que, com os devidos cuidados médicos, conseguiram sobreviver. O mais recente deles foi Oliver Cash Lowther Ryan, nascido no condado de Kent (Inglaterra) durante a pandemia do coronavírus, e logo apelidado de “Rocky” (em referência ao Rocky Balboa de Sylvester Stallone).
Pois bem. Foi uma pequena pessoa como “Rocky” que, no último domingo, dia 16, naquele hospital de Recife, teve o seu coração perfurado por uma longa agulha, por onde se injetou uma solução de cloreto de potássio (KCl). A morte do bebê – uma menina, tão vítima da situação quanto sua mãe – deu-se, então, por envenenamento salino, processo que pode ser lento e extremamente doloroso para a vítima, provocando queimaduras na pele e nos pulmões. Segundo artigo publicado na Revista Americana de Ginecologia e Obstetrícia, o mecanismo letal induzido pelo KCl assemelha-se à hipernatremia (aumento de concentração de sódio no sangue), que causa espasmos, vasodilatação generalizada, edema (inchaço causado pela acumulação anormal de fluidos nos tecidos, especialmente nos tecidos subcutâneo e submucoso), congestão, hemorragia, choque, e, finalmente, a morte.
Se, diante da morte terrível de uma bebê de 23 semanas, uma militante feminista é capaz de gritar “Vitória!”, é porque a nossa sociedade colhe os frutos de uma amarga derrota civilizacional
O uso letal do KCl pode provocar tanto sofrimento à vítima que o Guia Brasileiro de Boas Práticas Para a Eutanásia de Animais não o autoriza sem uso prévio de anestesia: “O cloreto de potássio (KCl) é um íon cardiotóxico. O uso do KCl em um animal consciente causa a excitação das fibras nervosas do tipo C, o que promove extrema dor antes que ocorra a morte. Portanto, o KCl só pode ser utilizado após anestesia geral do animal”. Não seria talvez o caso de fazermos como Sobral Pinto, e recorrermos à lei de proteção aos animais em favor das vítimas do aborto por hipernatremia?
Foi isso, enfim, o aborto de que estamos tratando. Esse é o seu quid. Portanto, os eufemismos e abstrações usados por abortistas não passam, evidentemente, de instrumentos de propaganda criados para nos turvar a visão sobre a realidade concreta. São verdadeiros narcóticos da consciência. E, por mais difícil e dramática que tenha sido a situação sobre a qual nos debruçamos, o fato de que o destino do bebê nunca tenha sido sequer tangenciado pela arenga sentimentalista dos autoproclamados progressistas mostra que, com toda a sua pose piedosa, eles não passam de alienados e estúpidos morais, para os quais um senso básico de realidade equivale a fanatismo religioso.
E se, escudada pela ideologia contra a realidade de uma bebê de 23 semanas sendo morta daquela maneira terrível, a militante feminista é capaz de gritar “Vitória!”, é porque, justo ao contrário, a nossa sociedade colhe os frutos de uma amarga derrota civilizacional. Derrota, sim. Da realidade. Da vida. Da nossa própria humanidade. Parodiando aquele ex-ministro da Saúde famoso por confundir misticismo político com ciência, talvez devêssemos lamuriar incessantemente a nossa sina: derrota, derrota, derrota.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos