“Desci ontem ao Pireu…” (Platão, A República, 327a)
Creio que todo estudante de humanas tenha passado por situação parecida ao entrar na faculdade. Comigo, lembro-me nitidamente, foi logo na primeira semana. Era o primeiro horário, por volta de 8 da manhã, e algumas dezenas de calouros sonolentos, entre os quais este escriba, lotavam uma grande sala em formato de auditório, fazendo ranger os bancos de madeira. Recém-admitidos naquele sacrossanto ambiente, críamo-nos privilegiados, e, ingênuos, apurávamos os sentidos à espera de revelações oraculares.
O primeiro oráculo do dia chegou com mais de uma hora de atraso. Os oráculos ali gozavam de estabilidade plena, e sua genialidade, ademais, permitia-lhes o poder de síntese, dispensando-os do imperativo pequeno-burguês de cumprir à risca a carga horária estipulada (quanto mais depois daquele memorável rega-bofe da noite anterior!). Pondo-se de pé atrás da grande mesa frontal, puxou a cadeira, mas não sentou, preferindo pousar ali a sua pasta de couro estilo carteiro. Com gestos longos e como que ensaiados, espanou a poeira do tampo com o dorso da mão direita. Com a mesma mão, ergueu os óculos à testa calva antes de comprimir, com o polegar e o indicador em pinça, os cantos dos olhos fechados contra a base do nariz. A claridade da manhã parecia fustigá-lo como a um vampiro.
Foi só aí, depois desse ritual de uns bons três minutos de duração, que nos dirigiu o olhar, contemplando os bancos de alto a baixo, com o mesmo vagar dos gestos. Perante o nosso silêncio de expectativa, dignou-se enfim a falar. E suas primeiras palavras, se bem recordo, foram estas: “Bom dia, senhores. A partir de agora, sua primeira e mais importante lição é uma só: esqueçam tudo o que aprenderam até hoje!”
Ao ouvir a mensagem, proferida com tanta autoridade, o noviço experimenta a sensação de adentrar um mundo novo, exclusivo e misterioso. Um mundo de conhecimentos esotéricos capaz de elevá-lo acima da realidade ordinária do lado de fora da sala. Começa-se ali a adquirir o temor reverencial e bovino diante não do conhecimento, mas dos símbolos externos e ornamentais da hierarquia acadêmica. É hora de assimilar os maneirismos, as entonações, as boutades, as opiniões corretas, o jargão, a postura corporal, tudo, enfim, que possa transmitir desde logo a aparência de conhecimento.
Naquela mesma noite, na hora do jantar, o noviço acadêmico ouve com condescendência os comentários do avô, debocha das opiniões da mãe, corrige as expressões do pai e bate boca com o papagaio. Mal passou no vestibular e, todavia, já é um intelectual, por haver absorvido na própria personalidade a lição fundamental, quiçá a única que venha a interessá-lo em sua futura trajetória acadêmica: tudo o que aprendera antes estava errado.
“Precisamos ir além do senso comum” – é o dogma consagrado entre os nossos cientistas sociais, a ponto de haver se tornado quase a definição mesma de suas disciplinas. Para muitos, com efeito, fazer ciência social é sinônimo de contrariar o senso comum, que muitas vezes nada mais é que bom senso puro e simples. Ainda quando o senso comum exprime verdades autoevidentes, o acadêmico típico vai arrumar um jeito de negá-las em favor de uma explicação decerto mais complexa (e frequentemente mais errada).
Ainda não descobri ao certo as razões mais recentes do fenômeno, que continuo investigando, mas talvez uma das causas remotas seja a forte influência que, desde meados do século 19 e ao longo das primeiras décadas do 20, a vida intelectual francesa exerceu sobre a brasileira. Essa influência foi particularmente sensível na formação de nosso ensino superior, cujo marco inicial data de 1934, com a fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, toda inspirada na herança cultural iluminista.
Uma das características mais notáveis do tipo novo de intelectual surgido na França do século 18 (em gradual substituição à figura do escolástico medieval) é o seu distanciamento em relação às questões práticas da administração pública. Muitos autores têm ressaltado esse traço, que distingue o intelectual francês da época, por exemplo, de seu colega do outro lado do Canal da Mancha. Em O Antigo Regime e a Revolução, Alexis de Tocqueville observa:
“Enquanto, na Inglaterra, aqueles que escreviam sobre o governo e aqueles que governavam estavam misturados – os primeiros introduzindo na prática as novas ideias, os últimos ajustando e circunscrevendo as teorias em função dos fatos –, na França o mundo político restava como que dividido em duas províncias separadas e incomunicáveis. Na primeira, administrava-se; na segunda, estabeleciam-se os princípios abstratos sobre os quais toda a administração deveria se fundar. Aqui, eram tomadas as medidas particulares indicadas pela rotina; lá, eram proclamadas as leis gerais, sem que jamais fossem levados em conta os meios pelos quais aplicá-las: a uns, a condução dos negócios; aos outros, o direcionamento das inteligências.”
E, antes de Tocqueville, Edmund Burke já havia identificado esta crucial diferença:
“Os homens de letras e os políticos franceses diferem muito nestes pontos de todo o nosso clã de esclarecidos. Os primeiros não têm respeito pela sabedoria de outrem, mas têm, em contrapartida, a maior confiança em sua própria sabedoria. Para eles, basta que uma ordem de coisas seja antiga e já se tem uma razão suficiente para destruí-la.”
Com efeito, se o mundo intelectual anglófono nos legou a filosofia do common sense – com os britânicos Thomas Reid, William Hamilton ou G. K. Chesterton, e os americanos John Dewey e Irwin Edman –, a França do Iluminismo foi a pátria das grandes abstrações e das ideias gerais, pairando muito acima do chão onde pisam, sangram e morrem os homens comuns. A concepção francesa de intelectual sempre foi confessadamente elitista, avessa à tradição e à sabedoria popular. “A massa genérica de homens não foi feita para promover, e sequer compreender, esta marcha progressiva do espírito humano”, escreveu Diderot. E ainda: “Desconfie do julgamento da multidão em matéria de raciocínio e filosofia; sua voz é a da malícia, da tolice, da desumanidade, da irracionalidade e do preconceito”.
Os philosophes acreditavam formar uma “igreja invisível”, na definição de Diderot, um “corpo de iniciados”, na de Voltaire. Viam-se como a própria encarnação dos ideais abstratos de liberdade, igualdade e fraternidade, como senhores da opinião pública. “A opinião governa o mundo e os filósofos governam a opinião”, disse certa vez D’Alembert. “As gentes do espírito é que detêm o poder na França”, completou Duclos. E, poderíamos acrescentar, também no Brasil.
Penso ser salutar à vida intelectual brasileira contemporânea trocar o arraigado abstracionismo elitista de matriz francesa pela tradição anglo-americana do senso comum. Quanto a esta, contudo, convém não confundi-la com alguma sorte de populismo filosófico. A crítica ao elitismo francês não implica que deva haver, como resposta, uma identidade absoluta entre o conhecimento do intelectual e o saber popular. Assim como não convém alienar-se da realidade concreta, tampouco deve o intelectual servir-lhe de mera caixa de ressonância. Antes que de concepções abstratas apriorísticas (cama de Procusto em que a experiência é forçada a se acomodar), deve-se partir do ponto em que todos estão, dos símbolos e experiências por todos partilhados. Só então cabe ao intelectual descompactar esse senso comum, pondo em xeque as premissas jamais questionadas e as confusões conceituais da doxa (opinião corrente). Afinal, como ensina Platão em A República, a filosofia começa com a descida do filósofo ao Pireu (ou à caverna), não com sua imaginária estadia no Olimpo.