“É preciso implementar o terror – secreta e urgentemente. Na terça-feira, decidiremos se será feito por meio da SNK [o conselho dos Comissários do Povo] ou de algum outro modo”
– Lenin, memorando a N. N. Krestinsky, secretário do comitê central do partido bolchevique, 3 de setembro de 1918.
Não completou sequer uma semana desde que o candidato Jair Bolsonaro foi vítima de um atentado em Juiz de Fora (MG) e o país já começa a esquecer e normalizar o ocorrido, como também já esquece e normaliza o incêndio que destruiu o Museu Nacional, objeto da minha última coluna. Sim, o líder das pesquisas eleitorais é esfaqueado diante de nossos olhos por alguém que se declara seu inimigo político, fica entre a vida e a morte (seu estado, apesar de estável, continua grave), e a corrida presidencial retoma o seu ritmo imperturbável, depois de declarações protocolares dos demais candidatos, como se reinasse a plena normalidade em nossa assim chamada democracia. O Brasil é, dentre os países do mundo, o que menos aprende com erros e tragédias. Diante de nossa eterna perplexidade, eles são reeditados de tempos em tempos, sempre em versão piorada, numa espiral descendente rumo ao inferno.
Ocorre que, para quem vem acompanhando com atenção a história recente, o atentado a Bolsonaro surge apenas como o episódio mais dramático e extremo de uma longa sucessão de ataques verbais, ameaças de morte e agressões físicas promovidas pela esquerda contra os que elege como adversários políticos e ideológicos. Se o que se passou com o Museu Nacional foi, como reza o clichê, uma “tragédia anunciada” (sendo que o problema foi justamente o de não ter sido anunciada), não menos anunciado (e, infelizmente, não denunciado a tempo) foi o ataque a Bolsonaro. Como registrou a página Ódio do Bem – que vem se destacando por seu trabalho investigativo de salvar e arquivar manifestações de ódio político da esquerda nas redes sociais, quase sempre ignoradas pela imprensa e pelo setor de segurança das própria redes –, poucos dias antes do crime, jovens militantes de esquerda postaram no Twitter mensagens como: “Seria daora (sic) demais o Bolsonaro ser assassinado aqui em Juiz de Fora”, “Bolsonaro em Juiz de Fora dia 6, vou ter a chance de dar a primeira facada da minha vida”, “Acho que quando o Bolsonaro vier para Juiz de Fora alguém podia matar ele (sic)”, ou “O Bolsonaro vai vir pra (sic) Juiz de Fora. É uma ótima oportunidade pra (sic) gente sequestrar ele (sic) e fazer umas torturas usadas na ditadura e depois matar com um tiro na testa, quem topa?”
Depois de consumado o que parte considerável da esquerda nacional vinha desejando abertamente, mensagens de negação, deboche e mesmo comemoração do crime pulularam nas redes, a maioria provenientes de apoiadores de partidos como PT e PSOL. “Nem para morrer esse lixo serve”, “Tomara que morra”, “Por que esse desgraçado não morreu?”, “Na próxima, damos um tiro” – foram algumas de centenas de manifestações de igual teor. Longe de postadas apenas por figuras anônimas ou desconhecidas, o foram também por pessoas em posições de poder e influência, como a professora Taisa Helena Pascale Palhares, do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciência Humanas) da Unicamp, que postou: “Sou totalmente contra a violência, mas faltou acabar o serviço”. Ou o jornalista Ricardo Feltrin, do portal UOL, que, com emojis de risadinha, compartilhou postagens debochadas sobre o atentado. Questionado por um usuário do Twitter, o jornalista respondeu com arrogância: “Me processa”.
Bolsonaro não foi o primeiro nem será o último a ser fisicamente atacado por militantes de esquerda, que, por acreditarem piamente encarnar a justiça histórica, reivindicam para si o direito à prática de violência contra adversários prévia e incessantemente desumanizados, no debate público, por rótulos infamantes tais como “reacionários”, “fascistas”, “golpistas” ou “coxinhas”. Lembremos, por exemplo, do caso recente do candidato do PSL professor Galdino, que foi parar no hospital após ser espancado por três homens aos gritos de “abaixo Bolsonaro e seus apoiadores”. Do empresário que, em frente ao Instituto Lula, teve traumatismo craniano ao ser empurrado contra um caminhão por militantes petistas. Da jovem espancada na Federal de Goiás por militantes da União da Juventude Socialista. Do professor da Federal do Piauí que, por ser contrário às ditas “ocupações” das universidades por partidos e movimentos de esquerda, teve de sair escoltado pela polícia do campus em que dava aula, sob ameaças de linchamento. De outro professor, da Federal de Pernambuco, que teve sua sala depredada e pichada com dizeres tais como “Stalin matou foi pouco”. De membros do MBL atacados por militantes do MTST em frente ao Congresso Nacional, que chegaram a usar palitos para furar as vítimas. De Janaína Paschoal cercada num aeroporto, sendo xingada de “fascista” e “golpista”. Ou, recuando bastante no tempo, de Mário Covas, adoentado, sendo agredido por petistas convocados por José Dirceu para “bater nos adversários nas ruas e nas urnas”.
Esses e outros atos de ódio não são manifestações isoladas e espontâneas de uns poucos malucos radicais. Ao contrário, são, no plano ideológico, o desdobramento necessário e esperado da mitologia fundadora da “luta de classes”, que prevê uma guerra implacável e definitiva da qual só uma classe sairá vitoriosa e pronta para redimir a humanidade; e, no plano prático, da incitação promovida por altos quadros dos partidos de esquerda no Brasil. Quem não lembra de Lula convocando o “exército de Stédile” e mandando “dar porrada nos coxinhas”? Ou do presidente da CUT, que, de dentro do Palácio do Planalto, e na presença da então presidente Dilma Rousseff, convocou a militância para sair às ruas “entrincheirados, com armas na mão” contra o impeachment? Ou da deputada petista Benedita da Silva clamando por um “derramamento de sangue” redentor? Ou de Guilherme Boulos, candidato à presidência pelo PSol, ameaçando incendiar o país em caso de impeachment de Dilma e prisão de Lula?
Quando, num congresso reunindo os partidos brasileiros de esquerda, o militante comunista e professor da UFRJ (nessa ordem) Mauro Iasi propôs abertamente o fuzilamento de direitistas e conservadores, não falava da boca para fora. Comprova-o o fato de ter citado o dramaturgo Bertolt Brecht, conhecido entusiasta dos paredões de fuzilamento montados por Stalin na URSS para expurgar a revolução dos elementos “reacionários”. Convém lembrar que, ademais de calorosamente aplaudida pela audiência, a manifestação de Iasi contou com o endosso formal e oficial do reitor da universidade, esse mesmo Roberto Leher, militante do PSol, sob cuja desastrada administração o Museu Nacional foi destruído pelo fogo. Assinando nota em nome do conselho universitário, Leher manifestou seu desagravo ao professor comunista, a quem foram prestados “apoio” e “solidariedade” em face do “assédio criminoso e covarde que (sic) vem sendo alvo”. Sim, naquela inversão revolucionária tão típica entre vítimas e agressores (essa mesma que ora culpa o “discurso de ódio” do Bolsonaro pela facada sofrida), o reitor não viu nada demais no desejo de fuzilar opositores políticos, mas se escandalizou com o protesto eventual dos virtuais fuzilados. Para a esquerda revolucionária, é sempre a denúncia de seus crimes que causa profunda indignação, não os crimes eles mesmos. Descrevendo certa feita o famoso “discurso secreto” proferido por Kruschev em 1956, o historiador Eric Hobsbawm falava da “brutal e implacável denúncia dos delitos de Stalin”. Seu colega Tony Judt não deixou passar batido o ato falho revelador: “Note-se que é a denúncia contra Stalin que recebe os epítetos (‘brutal’ e ‘implacável’), não os seus ‘delitos’”.
A violência da esquerda revolucionária não é acidental, mas um corolário inevitável de uma concepção milenarista-soteriológica de política, encarada não como atividade provisória (e, portanto, necessária e perpetuamente negociada), mas como solução definitiva para os problemas humanos, meio de construção de uma utópica sociedade perfeita, livre dos elementos “malignos”, “impuros” ou “reacionários” que impedem o seu advento. Essa concepção se traduz naquilo que o filósofo Eric Voegelin chamou de fé metastática: a crença de que, com a chegada da vanguarda revolucionária (ou “progressista”) ao poder, a realidade será inteiramente transfigurada e redimida, resultando numa espécie de paraíso terreno (a sociedade “sem classes”, ou “sem machismo”, “sem homofobia” e demais variações contemporâneas). Dessa escatologia política deriva a ética peculiar do revolucionário de esquerda, resumida perfeitamente numa conhecida formulação de Trotsky: “a moral deles é diferente da nossa”. No Brasil, petistas, psolistas, pecedobistas e correligionários não cansam de dar provas disso. Assim como Raskolnikov, eles se convenceram (e, de dentro de seus quartéis-generais, as universidades, vêm convencendo centenas de milhares de estudantes) de que, por serem excepcionalmente virtuosos, hão de gozar eternamente de uma espécie de “direito ao crime”.